segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2019)



Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2019, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05  Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Parasita, de Bong Joon-ho (foto acima);

02. Assunto de Família, de Hirokasu Kore-eda;

03. Dogman, de Matteo Garrone;

04. Era Uma Vez em…Hollywood, de Quentin Tarantino;

05. A Vida Invisível, de Karim Aïnouz;

06. Graças a Deus, de François Ozon;

07. O Bar Luva Dourada, de Fatih Akin;

08. Uma Mulher Alta, de Kantemir Balagov;

09. Em Trânsito, de Christian Petzold;

10. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Varda por Agnès, de Agnès Varda;
- A Árvore dos Frutos Selvagens, de Nuri Bilge Ceylan;
- Guerra Fria, Pawel Pawlikowski;
- Vermelho Sol, de Benjamin Naishtat;
- Yomeddine- Em Busca de um Lar, de Abu Bakr Shawky.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Uma Mulher Alta



Vidas Reconstruídas

Vem da Rússia o instigante Uma Mulher Alta, do jovem diretor, roteirista e montador Kantemir Balagov, de apenas 30 anos, em seu segundo longa-metragem, antes realizara Tesnota (2018). Está credenciado pelos prêmios de melhor direção e prêmio da crítica na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2019. Este é um daqueles filmes marcantes, que causa uma ótima impressão pela abordagem direta e sem grandes artifícios pirotécnicos, ao enfocar de maneira criativa e sensível fatos tristes na massacrada cidade de Leningrado, em 1945, decorrentes do término da Segunda Guerra Mundial. Principalmente pelo rigor formal da narrativa, nos lembra os grandes clássicos cinematográficos. Foi inspirado livremente no romance A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch.

Um drama de guerra magistral com uma beleza estética rara, tanto na direção de arte como na linda fotografia, amparado por um elenco coeso, tendo nas estreantes atrizes protagonistas interpretações irretocáveis. Há alguma similitude de uma temática equivalente no filme Uma Casa com Torre (2012), da ucraniana Eva Neymann. Balagov retrata a história centralizando a trama em Iya (Viktoria Miroshnichenko- de sóbria atuação, não se destacou somente pela altura) e Masha (Vasilisa Perelygina- soberba em seu papel), duas jovens mulheres que buscam uma nova vida com alguma esperança e um certo significado para continuarem vivendo em meio às lembranças do passado deixadas em seu país como cicatrizes abertas. Depois que a sitiada Leningrado, um dos cercos mais aterrorizantes da história mundial, chegou ao fim, a reconstrução perseguida pelas personagens centrais passa por momentos de grande tensão, dor, tristeza, advindas das mortes e dos traumas decorrentes das perdas. É a tentativa desesperada pelo sentido da vida após as tragédias que as inglórias batalhas deixaram como legados. Não à toa, a instabilidade emocional das duas mulheres tem um clima de angústia e indecisões nos sentimentos que irão oscilar entre ternura e raiva, afeto e vingança, em embates reveladores para o espectador.

O promissor cineasta coloca com admirável delicadeza os efeitos do fim de uma guerra histórica, porém as marcas indeléveis que ela deixa irão perdurar para sempre. Os silêncios marcantes de várias cenas são estímulos à reflexão desta narrativa melancólica, com desdobramentos de um resgatador sopro de luz das personagens femininas para um novo horizonte de liberdade, com o intuito de quebrar o pessimismo oriundo do domínio machista envolvido nos destinos belicistas. Magnífica a cena em que a mãe de Sasha (Igor Shirokov), o rapaz que quer namorar Masha, habilmente tenta proteger a pretensa nora, nos ásperos diálogos frios entre elas, alertando sobre o que é ser vítima de homens dominadores que devastam suas companheiras em um cenário estúpido, diante da submissão da mulher e o seu papel de inferioridade naquela sociedade aristocrática e fútil, simbolizada pela majestosa mansão. A procura da sobrevivência está em jogo e os traumas são intermináveis pelo despropósito aterrador que danifica e esmaga os sentimentos humanos de vidas inocentes sendo ceifadas. Os horrores das batalhas causam marcas implacáveis e doloridas para os soldados sequelados, como na cena do reencontro da família com o herói mutilado que precisa ser sacrificado diante da falta de condições financeiras da esposa para ajudar o marido, em que a eutanásia é o paradoxal destino menos cruel, tendo em vista que há um filho pequeno a ser sustentado na realidade sombria.

Uma Mulher Alta retrata os efeitos dos combates num cenário de intensa nevasca, em que as tragédias se sucedem, tais como a enfermeira voluntária que mora em um hospital militar para ajudar os veteranos mutilados, tem uma paralisia catatônica que se manifesta em qualquer ocasião, carrega o trauma psicológico pela morte do filho da melhor amiga, em que era guardiã. São mostradas as sobras de guerra, como se pessoas fossem animais sem importância, diante da falta de melhores cuidados para os sobreviventes. Há uma carência afetiva de um calor humano praticamente ausente naquele ambiente horripilante, embora se possa compreender pelo contato diário com vítimas destroçadas, jogadas e amontoadas no que restou daquela situação em um país convalescente pelas perdas do extermínio banalizado advindo dos campos de atrocidades com referência pelo descaso às vidas. Mas há uma busca de um futuro melhor nos sentimentos, ternuras e tristezas entre as protagonistas desesperançadas rumo ao céu ou o inferno que querem deixar para trás aquela herança maldita. A obsessiva intransigência de uma delas para ter um filho a qualquer preço, no início soa como vingança, traição e culpa, mas com o desenrolar da história novos elementos redentores irão surgir como pacificadores de um novo olhar da humanidade.

O diretor acerta a mão em cheio na aproximação das jovens em suas trajetórias por novos caminhos num país em ruínas evidentes, dentro de um panorama angustiante que não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Balagov dá uma aula de sutileza e sensibilidade ao demonstrar os efeitos nefastos de uma guerra com seus registros marcantes pelos vestígios permanentes de pouca perspectiva de recuperação. Tanto no cenário desolador do hospital simbolizando vidas destruídas ainda existentes, porém apáticas, bem como na pequena esperança daquelas criaturas agoniadas pelo tédio da amargura do passado, exceto as duas guerreiras imbuídas de algumas fibras para sobreviverem dignamente. Um grande amor é lançado das sombras de um tenebroso conflito com seus efeitos destruidores que irrompe como um vulcão adormecido naquele demarcado espaço machista, hostil e acachapante. É a busca do significado da existência remanescente de novos horizontes renascendo que irão aflorar para seguir em frente nos seus sonhos iluminados como um afago do destino. Até então muito duro e cruel, dando licença para uma reviravolta de um poema amargo com transição para um gosto mais palatável pela doçura explosiva catártica da paixão, afastando a dor latente adormecida das rupturas do sistema. Eis um fabuloso drama de reconstruções de vidas profundamente humanista, que se insere entre os melhores lançamentos do ano.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Resistência de Inga



O Monopólio

O drama A Ovelha Negra (2015), do diretor islandês Grímur Hákonarson, venceu a Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2015, e foi indicado para representar a Islândia no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016. Retratava de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho de ovinos da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores da espécie, onde a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Num relato comovente do modo de sobrevivência de um povo, que sugeria e remetia para uma alegoria daquele país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto.

Como um prosseguimento da realização anterior, embora menor, Hákonarson cria uma atmosfera tensa em A Resistência de Inga, diante da iminente falência do sustento familiar de uma fazenda e traz como reflexão literal o monopólio de uma cooperativa de criadores de bovinos. Inga (Arndís Hrönn Egilsdóttir- de estupenda interpretação) é uma fazendeira de meia-idade em uma pequena comunidade, que após a morte de seu marido Reynir (Hinrik Olafsson), onde ele é o responsável pela administração do patrimônio. A corajosa mulher irá sacrificar seu sustento para dar um basta na corrupção que campeia livre e na injustiça do trabalho dos cooperados num drama humanista de denúncia, destemor e com confrontos radicalizados. Toma frente da gestão de seus negócios de maneira decidida para começar uma nova etapa em sua vida, pois os filhos emancipados moram em outra cidade. Sabe que é uma luta difícil por ter pessoas poderosas no comando da única cooperativa daquele condado. Mas não desiste de brigar pela Dalsmynni, a fazenda de gado leiteiro familiar de muitas gerações, como em manusear sozinha um parto complicado de um bezerro. Enquanto o marido era vivo, as dificuldades financeiras já eram enormes, pois não tiravam férias há três anos, numa rotina de cansaço permanente. À noite, trocavam algumas palavras e iam dormir para despertarem cedo no outro dia de intenso trabalho.

A morte de Reynir no acidente de caminhão na estrada em condições duvidosas e nunca esclarecidas, com alguma probabilidade de um suposto suicídio, foi brutal para Inga. As revelações de que ele era um delator para a cooperativa, dedurando quem não vendia leite e quem não comprava os insumos, por ser vítima de coação, numa forma de pressão sem saída, sob pena de ver a falência e o despejo de sua fazenda serem uma realidade pelas dívidas acumuladas. Estas circunstâncias agiram como ingredientes para uma combustão de rebeldia que explodiu e fez da protagonista buscar justiça em uma cruzada contra as forças detentoras do poder sufocante e opressor com requintes de crueldade nas perseguições, ameaças e terror pelos dirigentes daquela entidade. A concorrência não era estimulada e a oposição era ameaçada, até que Inga começou a publicar no Facebook as falcatruas existentes daquele sistema corrupto e violento, comparando com a máfia italiana corroída pelos seus mentores desonestos. Foi um duro golpe desferido no monopólio pela viúva dissidente, que desencadeou em outros episódios a perda de controle como elementos contundentes retratados de uma realidade estúpida, como na reveladora cena do trator levando toda a produção de leite para jogar no chão e nas paredes do prédio dos cooperados, muito bem construída pelo realizador. A imprensa é atraída para aquele lugar conflitado, de uma aparente falsa calmaria, para retratar de maneira imparcial a cobertura midiática televisiva diante dos desdobramentos e as ligações do fato para uma batalha com retaliações à criadora simpática e inofensiva em uma inimiga do povo do condado, pela ótica dos detentores do poder. A criação de uma segunda cooperativa somente para os criadores de vacas leiteiras é refutada veementemente pelo monopólio e outra luta com farpas e divisões são estabelecidas em um clima de guerra, num duelo de Davi e Golias.

Um vigoroso drama com uma trilha sonora adequada e condutora do epílogo surpreendente, para um desfecho com certo otimismo naquele ambiente perverso ali encravado. A cultura rural enraizada ligada ao espírito do nacionalismo em choque com os valores tradicionais explorados pelo Capitalismo estão evidenciados. Mas há uma luz no fim do túnel surgindo das perdas patrimoniais para uma virada de um novo horizonte pela perseverança e bravura de uma guerreira no empoderamento feminino de uma nova mulher, sob o prisma de um destino promissor que se desenha pelo grito de liberdade individual e econômica como fatores colocados com rara sensibilidade. Mart Taniel é o responsável pela fascinante fotografia, em que mostra os contrastes da beleza do inverno com as nevascas nos campos contrapondo com resíduos e insumos do árduo trabalho no celeiro, mesmo que a ordenha fosse robotizada pelos avanços tecnológicos para produzir mais leite, porém as despesas também dispararam e a dívida cresceu. O isolamento da personagem central cansada, com os cabelos desgrenhados, e um olhar perdido no infinito da noite silenciosa, para ter uma decisão realista de quem já perdeu quase tudo, resta a dignidade humana sem arroubos triunfais a ser salva.

A Resistência de Inga proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes dos habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. O roteiro dá uma guinada na envolvente história, com significativa mudança de rumo diante dos ânimos acirrados, após um novo episódio na trama que retrata o impacto das perdas marcantes de uma comunidade dependente da essencial criação leiteira, como forma de sustento e o meio de vida socioeconômico na região. A crise se agrava e torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras, repassando ao espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes. O cineasta faz um belo relato social das sutis armadilhas, com elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia. Eis uma realização requintada num panorama de brigas permanentes dos personagens envolvidos no dilema. Há uma intensidade relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo para o final redentor e significativo diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos pela intransigência monopolista.