terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Resistência de Inga



O Monopólio

O drama A Ovelha Negra (2015), do diretor islandês Grímur Hákonarson, venceu a Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2015, e foi indicado para representar a Islândia no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016. Retratava de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho de ovinos da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores da espécie, onde a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Num relato comovente do modo de sobrevivência de um povo, que sugeria e remetia para uma alegoria daquele país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto.

Como um prosseguimento da realização anterior, embora menor, Hákonarson cria uma atmosfera tensa em A Resistência de Inga, diante da iminente falência do sustento familiar de uma fazenda e traz como reflexão literal o monopólio de uma cooperativa de criadores de bovinos. Inga (Arndís Hrönn Egilsdóttir- de estupenda interpretação) é uma fazendeira de meia-idade em uma pequena comunidade, que após a morte de seu marido Reynir (Hinrik Olafsson), onde ele é o responsável pela administração do patrimônio. A corajosa mulher irá sacrificar seu sustento para dar um basta na corrupção que campeia livre e na injustiça do trabalho dos cooperados num drama humanista de denúncia, destemor e com confrontos radicalizados. Toma frente da gestão de seus negócios de maneira decidida para começar uma nova etapa em sua vida, pois os filhos emancipados moram em outra cidade. Sabe que é uma luta difícil por ter pessoas poderosas no comando da única cooperativa daquele condado. Mas não desiste de brigar pela Dalsmynni, a fazenda de gado leiteiro familiar de muitas gerações, como em manusear sozinha um parto complicado de um bezerro. Enquanto o marido era vivo, as dificuldades financeiras já eram enormes, pois não tiravam férias há três anos, numa rotina de cansaço permanente. À noite, trocavam algumas palavras e iam dormir para despertarem cedo no outro dia de intenso trabalho.

A morte de Reynir no acidente de caminhão na estrada em condições duvidosas e nunca esclarecidas, com alguma probabilidade de um suposto suicídio, foi brutal para Inga. As revelações de que ele era um delator para a cooperativa, dedurando quem não vendia leite e quem não comprava os insumos, por ser vítima de coação, numa forma de pressão sem saída, sob pena de ver a falência e o despejo de sua fazenda serem uma realidade pelas dívidas acumuladas. Estas circunstâncias agiram como ingredientes para uma combustão de rebeldia que explodiu e fez da protagonista buscar justiça em uma cruzada contra as forças detentoras do poder sufocante e opressor com requintes de crueldade nas perseguições, ameaças e terror pelos dirigentes daquela entidade. A concorrência não era estimulada e a oposição era ameaçada, até que Inga começou a publicar no Facebook as falcatruas existentes daquele sistema corrupto e violento, comparando com a máfia italiana corroída pelos seus mentores desonestos. Foi um duro golpe desferido no monopólio pela viúva dissidente, que desencadeou em outros episódios a perda de controle como elementos contundentes retratados de uma realidade estúpida, como na reveladora cena do trator levando toda a produção de leite para jogar no chão e nas paredes do prédio dos cooperados, muito bem construída pelo realizador. A imprensa é atraída para aquele lugar conflitado, de uma aparente falsa calmaria, para retratar de maneira imparcial a cobertura midiática televisiva diante dos desdobramentos e as ligações do fato para uma batalha com retaliações à criadora simpática e inofensiva em uma inimiga do povo do condado, pela ótica dos detentores do poder. A criação de uma segunda cooperativa somente para os criadores de vacas leiteiras é refutada veementemente pelo monopólio e outra luta com farpas e divisões são estabelecidas em um clima de guerra, num duelo de Davi e Golias.

Um vigoroso drama com uma trilha sonora adequada e condutora do epílogo surpreendente, para um desfecho com certo otimismo naquele ambiente perverso ali encravado. A cultura rural enraizada ligada ao espírito do nacionalismo em choque com os valores tradicionais explorados pelo Capitalismo estão evidenciados. Mas há uma luz no fim do túnel surgindo das perdas patrimoniais para uma virada de um novo horizonte pela perseverança e bravura de uma guerreira no empoderamento feminino de uma nova mulher, sob o prisma de um destino promissor que se desenha pelo grito de liberdade individual e econômica como fatores colocados com rara sensibilidade. Mart Taniel é o responsável pela fascinante fotografia, em que mostra os contrastes da beleza do inverno com as nevascas nos campos contrapondo com resíduos e insumos do árduo trabalho no celeiro, mesmo que a ordenha fosse robotizada pelos avanços tecnológicos para produzir mais leite, porém as despesas também dispararam e a dívida cresceu. O isolamento da personagem central cansada, com os cabelos desgrenhados, e um olhar perdido no infinito da noite silenciosa, para ter uma decisão realista de quem já perdeu quase tudo, resta a dignidade humana sem arroubos triunfais a ser salva.

A Resistência de Inga proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes dos habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. O roteiro dá uma guinada na envolvente história, com significativa mudança de rumo diante dos ânimos acirrados, após um novo episódio na trama que retrata o impacto das perdas marcantes de uma comunidade dependente da essencial criação leiteira, como forma de sustento e o meio de vida socioeconômico na região. A crise se agrava e torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras, repassando ao espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes. O cineasta faz um belo relato social das sutis armadilhas, com elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia. Eis uma realização requintada num panorama de brigas permanentes dos personagens envolvidos no dilema. Há uma intensidade relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo para o final redentor e significativo diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos pela intransigência monopolista.

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