quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A Qualquer Custo


Herança Nefasta

David Mackenzie é um diretor escocês que admira o western e o thriller policial, fórmulas clássicas do cinema norte-americano que tanto sucesso fizeram estes dois estilos exponenciais. Tem em sua filmografia Sentidos do Amor (2011) e Encarcerado (2013). Ao fundir os dois gêneros, obteve um excelente resultado através deste magnífico faroeste contemporâneo A Qualquer Custo, em que há celulares e câmeras de vídeos no instigante roteiro de Taylor Sheridan, o mesmo do excelente Sicário (2015), revela a família desestruturada por dívidas financeiras dos dois assaltantes nos bancos por eles saqueados, com o viés de explicar (mas não justificar) os crimes dos bandoleiros, numa narrativa densa e recheada com muito humor negro, para demonstrar a pretensa superioridade branca vista pelos norte-americanos em relação aos imigrantes de diversas raças, como temática bem presente enfatizada pelo atual presidente Donald Trump. Concorre a quatro estatuetas no Oscar: melhor filme, montagem, roteiro original e ator coadjuvante (Bridges).

A trama do longa é ambientada no interior do Texas, nos Estados Unidos. Pressionados pela proximidade do vencimento da hipoteca da fazenda da família, o que ameaçaria a perda das terras e o futuro dos descendentes remanescentes, num lugar em que ainda o petróleo é visto como uma salvação para todos naquele cenário inóspito, em que seus habitantes estão perdendo tudo, desde seus ranchos, o gado e as terras já pouco produtivas. Os irmãos Toby (Chris Pine) e Tanner (Ben Foster) resolvem assaltar, levando notas pequenas para obter a quantia necessária para quitar a dívida financeira, roubam apenas as agências do próprio banco em que estão endividados e sem perspectivas. Mas para isto eles terão que enfrentar dois oficiais destacados pela Texas Rangers, uma força policial civil e florestal para resolver o caso que está abalando aquela região, espalhando medo e pavor nos moradores dali. A dupla dos agentes da lei tem o veterano policial prestes a se aposentar, que terá esta missão como a derradeira na carreira, Marcus (Jeff Bridges, impecável no papel inspirado no xerife de Bravura Indômita, que interpretou em 2010) e Alberto (Gil Birmingham), um descendente indígena mexicano, que sofre com as piadas racistas do colega. Num interrogatório Marcus pergunta para a vítima sobre a cor dos bandidos, não se contém e lasca a pergunta discriminatória: “Cor da pele ou cor da alma?”.

Uma história contada com sobras de sensibilidade para retratar com contundência um país com muitos dilemas que passa por um sectarismo enraizado, onde desbravadores terão de enfrentar as condições mais hostis em seu próprio território, entre eles estão os índios numa luta para buscar os seus domínios, bem como estabelecer sua própria cultura renegada e pouco reconhecida, tão logo os EUA adquiriram e se fizeram uma superpotência mundial, ampliando os lucros num capitalismo selvagem. É uma abordagem com o olhar da dualidade, no qual o homem da lei mais parece o vilão nas suas sórdidas referências ao companheiro de farda, um representante de uma civilização ofendida. Uma versão moderna, em que os elementos repressores são colocados no mesmo lado dos reprimidos numa realidade devastadora. A dupla de assaltantes acaba se confundindo e dá evidências de que bandido e mocinho poderiam estar de lados opostos na escala de valores e humanismo, basta tirar a carapuça do politicamente correto e da moral e dos bons costumes.

O filme é feito para confundir e perturbar mentes conservadoras, abrindo espaços para uma visão menos caolha e mais abrangente, sem a censura prévia e o maniqueísmo da torcida tradicional entre o bem e o mal, o certo e o errado. Toby é o mais racional e traz no histórico uma pendência com a ex-mulher e os filhos; já Tanner é um ex-prisioneiro violento e de pavio curto, que só sensibiliza-se com a morte da mãe e seus últimos dias de vida informados pelo irmão. Em contrapartida, o xerife é um típico homem cansado do trabalho, tem um raciocínio rápido e é ardiloso na investigação, mas é traído pela discriminação e uma conduta contrária aos padrões de civilidade que prega a igualdade, por isto é abominável em seus gestos e atitudes que beiram ao nazi-fascismo. Os irmãos anti-heróis são símbolos de um passado sem perspectiva de futuro que enfrentam um presente pessimista contextualizado. Agem sem ética e com a vingança entre os dentes e o brilhos nos olhos, numa narrativa carregada de situações de uma realidade do que ainda restou do cenário imaginário do Velho Oeste americano. Coerentemente, o diretor explora a crueza e a brutalidade conflitada daquela sociedade simbolizada pelo representante do Estado em seus diálogos preconceituosos com a rebeldia dos injustiçados.

A Qualquer Custo é uma realização imparcial, bem assessorada pela fascinante trilha sonora country assinada por Nick Cave e Warren Elly, com uma fotografia que encanta pelos planos-sequência abertos de paisagens típicas do deserto explorada na sua amplitude por Giles Nuttgens. Mackenzie tem um estilo preciso e uma elegância para filmar inerentes e personificados como poucos cineastas na atualidade. Remete para outros filmes do gênero como de Joel e Ethan Coen, em Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) e Bravura Indômita (2010), por não se afastar do tom e da dinâmica cinematográfica que embalou muitos anos aficionados do cinema deste gênero. Cada detalhe, movimento da câmera, luz, fotografia, as tabernas, as construções de bancos e ranchos rústicos em consonância com o figurino harmonicamente distribuídos com primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade. Não há cavalos, as perseguições são de carros; sem tiroteios forçados ou balas perdidas por tudo quanto é canto e lugares inimagináveis. Eis uma proposta que atinge a exuberância de um brilho exemplar e vai ao encontro do melhor dos grandes clássicos, como o inesquecível Os Imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood, onde encontramos uma gama de mocinhos velhos, decadentes, sendo que um deles com apenas um olho, também cumprirá a última missão. A reflexão no epílogo é marcante pela decorrência da morte, dos percalços da vida, da vingança e da intolerância racial. Restam reminiscências e uma melancolia comovente num grande desenlace com emoção e digno de um faroeste moderno espetacular.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Toni Erdmann


A Reaproximação

Vem da Alemanha em coprodução com a Áustria a excelente comédia dramática Toni Erdmann, terceiro longa-metragem da produtora, roteirista e diretora alemã Maren Ade, merecidamente ostentando o favoritismo para ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Traz na bagagem o prêmio do júri do Festival de Cannes do ano passado, esta abordagem com sensibilidade para uma fascinante reaproximação improvável de uma filha com o pai, uma figura patética travestida num ogro humanista, mas com um coração enorme, embora seja invasivo nas atividades profissionais e particulares dela, preocupa-se com seu destino. Já no início das conversas faz duas perguntas perturbadoras que darão verossimilhança para a trama: “Você está feliz?” e “O que é a vida?”. Balança e desarma completamente a mulher, porém cria-se um elo de proximidade para recuperar a relação estremecida e distante pelo tempo entre os dois.

Uma mescla de drama familiar com uma comédia essencialmente agridoce, com tintas fortes e marcantes sobre a solidão, o vazio e o sentido sartriano da existência. Winfried (Peter Simonischek- estupenda atuação) é um homem grandalhão que tem bom humor e fina ironia, às vezes descamba para o escatológico, porém logo supera suas fraquezas humanas, acaba encarnando o bizarro personagem-título que faz de tudo para conquistar e ficar por perto de Ines (Sandra Hüller- impecável no papel) e recuperar o tempo teoricamente perdido. Para isto, irá visitá-la sem aviso prévio em Bucareste, onde a filha trabalha numa renomada empresa multinacional com um cargo importante. Deixa a vida pacata na Alemanha, após a morte de velho cãozinho de estimação, logo percebe a instabilidade emocional e o conflito profissional que aflige a executiva num encontro casual na casa da ex-esposa. Vai inteirando-se das dúvidas galopantes de Ines no processo de demissão em massa que ela terá que realizar, ou seja, uma tarefa árdua e dolorosa que traz angústia e sofrimento para quem deve se acostumar com decisões radicais e inadiáveis no cotidiano de metas empresariais.

A cineasta traz à baila a brutalização de uma mulher que se vê mergulhada em coisas materiais e se distancia da realidade do povo romeno que sofre com as mudanças pela globalização, ferindo no âmago a cultura de pessoas dóceis e humildes. O calor humano e a ética são corrompidos pelo poder de uma potência de outro país que ali se instala e vai devastando o que vem pela frente. Mas a instigante cena da festa de aniversário é o mote para a improvisação e a opção do nudismo para comemorar mais um ano na vida dela que se passa. Envolvida com drogas e amizades promíscuas e interesseiras, depois da confusão com seu vestido novo apertado, metáfora para a libertação e retirar as amarras. Ali as pessoas ficam embasbacadas com a surpresa e se revelam todas as fragilidades humanas, como um recado nas entrelinhas para mudar o status quo. O pai vestido de gorila novamente tenta dar a mão e indicar o caminho da liberdade, como fizera antes com suas máscaras, a dentadura postiça horrorosa e a emblemática peruca. São situações que mesmo criando constrangimento para eficiente e ambiciosa filha, irão ao encontro da reflexão para uma nova vida, sem os ternos e as roupas de grifes despojadas dos corpos de pessoas hipócritas e com sentimentos violentados num universo sombrio e competitivo ao extremo e sem ética.

Toni Erdmann enfatiza com cores lancinantes a figura paterna assumindo outra personalidade para afastar-se daquele idoso professor de música em sua aldeia para submeter-se ao ridículo, em nome de uma causa justa e magnânima diante da desestruturação familiar. A máscara que assume gradativamente para se fantasiar é a mesma que corrói e inunda um mundo pouco civilizado no sentido lato sensu. A dupla personalidade é a essência das relações humanas conflitadas, mas que para isto terá de desmascarar uma triste realidade, entre as quais está a filha que ele pouco conhece, mas que retoma situações da infância, como reminiscências de um passado longínquo, para também lhe tirar o disfarce pesado da intransigência que carrega por anos, sob o manto do sucesso a qualquer preço. Surtirá como um bálsamo de luz patriarcal, mesmo sendo folclórico, mas tudo girará pela dignidade resgatada.

Pode-se apontar na temática uma semelhança com o drama argentino Filha Distante (2012), batizado em alguns países com o nome comercial de Dias de Pesca, de Carlos Sorín, quando aborda a relação de um homem de 52 anos, ex-alcoólatra, que decide pescar tubarões na Patagônia, tem em mente na sua trajetória existencial restabelecer os vínculos afetivos deteriorados com a filha. Toni Erdmann é também a busca do sentido da vida e o regozijo da existência e suas nuances como resposta dos questionamentos no prólogo desta realização espetacular de 162 minutos que passam voando, mas que trará no desfecho uma reflexiva ideia de leveza e o sentido de satisfação para continuar vivendo. Um filme com a magia do cinema, além da boa dose de emoção na luta incessante e incalculável para reparar um passado, reconstruir um reconfortante presente e estabelecer um definitivo vínculo delineado pela ausência rompida no cotidiano de dias entediantes e repetitivos dos dois. O afeto esbarra e se escancara na distância entre eles, mas há um espaço comovente de amor a ser preenchido naquele imenso vazio nos encontros fortuitos, deixando um legado imensurável para se entender a complexidade humana.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Manchester à Beira-Mar


Dor Infinita

Indicado a seis estatuetas no Oscar deste ano, Manchester à Beira-Mar é um vigoroso drama familiar que aborda os desdobramentos da dor imensurável e os resquícios da culpa ilimitada, sem que haja um alento para atenuar o sofrimento que arde como uma ferida aberta latejante. A direção exemplar é de Kenneth Lonergan, que havia dirigido anteriormente Conte Comigo (2000) e Margaret (2011). O longa rendeu merecidamente o prêmio de melhor ator no Globo de Ouro para Casey Affleck- irmão do astro Ben Affleck- pela soberba aula de interpretação contida como Lee Chandler, um homem solitário e sorumbático que precisa lidar com os mistérios pessoais que guarda calado. Em 2008, Casey foi indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar para ator coadjuvante em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007); tem também na carreira os papéis discretos em Gênio Indomável (1997) e Onze Homens e Um Segredo (2001).

O filme é apresentado em flashbacks que mistura a fase pretérita com ingredientes do presente, na triste trajetória do protagonista, que é surpreendido com a morte súbita do irmão mais velho, Joe Chandler (Kyle Chandler), restando-lhe cuidar e tutelar o sobrinho adolescente, Patrick (Lucas Hedges), um jovem de 16 anos, que tem duas namoradas, teima em ficar com a posse do barco pesqueiro, joga hóquei, toca rock numa banda de porão e não quer se afastar da cidade litorânea de Manchester, no Estado de Massachusetts, nos EUA. O fatídico imprevisto fará com que o silencioso Lee retorne de Boston, onde trabalha de zelador, realizando pequenos serviços de consertos em prédios, tais como: manutenção de torneiras, troca de lâmpadas, remoção de gelo nas ruas e desentupir vasos sanitários. A humilhação que ouve de conversas entrecortadas é como uma salvaguarda às avessas que encara como um resgate pelo castigo que entende merecer.

Ao retornar para a cidade natal, o personagem central terá de enfrentar finalmente um passado trágico do qual fugiu. Mas antes há algumas encrencas que devem ser resolvidas de imediato: os trâmites do velório do irmão, as dificuldades de realizar o enterro pelas circunstâncias climáticas da forte nevasca e as peraltices inerentes da juventude do tutelado que arruma pelas estradas da vida. No meio deste turbilhão de problemas que povoa sua cabeça, terá de harmonizar a consciência e relembrar os motivos nefastos e as lembranças perturbadoras que causaram seu afastamento dali. Os encontros fortuitos com a ex-mulher (Michelle Williams) lhe trará um combustível inflamável para o forte impacto emocional que desestruturou sua razão de viver para eternizar um profundo remorso. O abalo sísmico familiar irá dissipando os enigmas com revelações devastadoras para sua renúncia à felicidade, através do tom agressivo e violento com pessoas que cruzam pelo seu caminho. Por pouca coisa explode de raiva e o ódio desmesurado aflora decorrentes da dor intensa e do isolamento progressivo.

Lonergan vai lançando em doses homeopáticas mostras para o entendimento de uma situação caótica. A memória traz à tona os fantasmas do dia do infortúnio que o deixa em luto permanente, diante de uma agonia lancinante que o derruba emocionalmente, através de transtornos psicológicos que o marcaram definitivamente. As lembranças anuviadas do alcoolismo e do uso de drogas com amigos em festas homéricas são imagens que povoam seu cérebro em reconstrução da instransponível amargura, pela derrocada do equilíbrio que assombra Lee, por espectros que ainda rondam e remoem seus pensamentos atormentados. A compaixão entre ele e o sobrinho, uma espécie de filho, por isto estão presentes nos dilemas das relações familiares os sacrifícios indesejados que soam como elementos punitivos pela redenção de uma alma destroçada pela dor dilacerante. A frieza acompanha o protagonista, uma pessoa sombria numa iminente situação autodestrutiva, sem perspectiva de mudança numa narrativa magistral sobre as causas e efeitos da melancolia na pura essência doentia. Distante dos clichês que infestam os melodramas fáceis, faz com que os 137 minutos passem voando num drama de anti-heróis, sem forçar sentimentalismos piegas, bem alicerçado por uma trilha sonora fascinante e no tom certo, que jamais torna-se invasiva ou descambe para as facilidades abomináveis em realizações sentimentaloides encontradas em obras menores.

Manchester à Beira-Mar é um retrato cruel com ênfase de um fantasma humano pelo descompasso do estado físico com o psicológico, que vai aniquilando a lucidez com fortes tintas uma pessoa na sua dignidade como força singular na decrepitude, com voos rasantes desgovernados, principalmente no remorso que carrega sem demonstrar qualquer emoção, exceto quando perde a razão e parte para a agressão explícita. Não há lágrimas, mas esboços de virilidade excessiva. Mas ali está o cotidiano do mar e sua profundidade atravessando o horizonte perdido, como o olhar sem fronteiras à procura de uma explicação para purificar pela água o que ficou para trás. Há uma dura realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos na estarrecedora situação irremediável naquele abismo sem concessões. O desfecho sintetiza o encontro do protegido que perdeu o pai abruptamente e foi abandonado pela mãe ausente, em consonância com o vínculo do protetor carregando seu fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas neste painel de frustrações que não passam. Eis um filmaço que mereceria o Oscar, se não houvesse premiações para realizações politicamente corretas e com interesses comerciais. Desde já se insere na listagem dos dez melhores filmes de 2017.