terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Manchester à Beira-Mar


Dor Infinita

Indicado a seis estatuetas no Oscar deste ano, Manchester à Beira-Mar é um vigoroso drama familiar que aborda os desdobramentos da dor imensurável e os resquícios da culpa ilimitada, sem que haja um alento para atenuar o sofrimento que arde como uma ferida aberta latejante. A direção exemplar é de Kenneth Lonergan, que havia dirigido anteriormente Conte Comigo (2000) e Margaret (2011). O longa rendeu merecidamente o prêmio de melhor ator no Globo de Ouro para Casey Affleck- irmão do astro Ben Affleck- pela soberba aula de interpretação contida como Lee Chandler, um homem solitário e sorumbático que precisa lidar com os mistérios pessoais que guarda calado. Em 2008, Casey foi indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar para ator coadjuvante em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007); tem também na carreira os papéis discretos em Gênio Indomável (1997) e Onze Homens e Um Segredo (2001).

O filme é apresentado em flashbacks que mistura a fase pretérita com ingredientes do presente, na triste trajetória do protagonista, que é surpreendido com a morte súbita do irmão mais velho, Joe Chandler (Kyle Chandler), restando-lhe cuidar e tutelar o sobrinho adolescente, Patrick (Lucas Hedges), um jovem de 16 anos, que tem duas namoradas, teima em ficar com a posse do barco pesqueiro, joga hóquei, toca rock numa banda de porão e não quer se afastar da cidade litorânea de Manchester, no Estado de Massachusetts, nos EUA. O fatídico imprevisto fará com que o silencioso Lee retorne de Boston, onde trabalha de zelador, realizando pequenos serviços de consertos em prédios, tais como: manutenção de torneiras, troca de lâmpadas, remoção de gelo nas ruas e desentupir vasos sanitários. A humilhação que ouve de conversas entrecortadas é como uma salvaguarda às avessas que encara como um resgate pelo castigo que entende merecer.

Ao retornar para a cidade natal, o personagem central terá de enfrentar finalmente um passado trágico do qual fugiu. Mas antes há algumas encrencas que devem ser resolvidas de imediato: os trâmites do velório do irmão, as dificuldades de realizar o enterro pelas circunstâncias climáticas da forte nevasca e as peraltices inerentes da juventude do tutelado que arruma pelas estradas da vida. No meio deste turbilhão de problemas que povoa sua cabeça, terá de harmonizar a consciência e relembrar os motivos nefastos e as lembranças perturbadoras que causaram seu afastamento dali. Os encontros fortuitos com a ex-mulher (Michelle Williams) lhe trará um combustível inflamável para o forte impacto emocional que desestruturou sua razão de viver para eternizar um profundo remorso. O abalo sísmico familiar irá dissipando os enigmas com revelações devastadoras para sua renúncia à felicidade, através do tom agressivo e violento com pessoas que cruzam pelo seu caminho. Por pouca coisa explode de raiva e o ódio desmesurado aflora decorrentes da dor intensa e do isolamento progressivo.

Lonergan vai lançando em doses homeopáticas mostras para o entendimento de uma situação caótica. A memória traz à tona os fantasmas do dia do infortúnio que o deixa em luto permanente, diante de uma agonia lancinante que o derruba emocionalmente, através de transtornos psicológicos que o marcaram definitivamente. As lembranças anuviadas do alcoolismo e do uso de drogas com amigos em festas homéricas são imagens que povoam seu cérebro em reconstrução da instransponível amargura, pela derrocada do equilíbrio que assombra Lee, por espectros que ainda rondam e remoem seus pensamentos atormentados. A compaixão entre ele e o sobrinho, uma espécie de filho, por isto estão presentes nos dilemas das relações familiares os sacrifícios indesejados que soam como elementos punitivos pela redenção de uma alma destroçada pela dor dilacerante. A frieza acompanha o protagonista, uma pessoa sombria numa iminente situação autodestrutiva, sem perspectiva de mudança numa narrativa magistral sobre as causas e efeitos da melancolia na pura essência doentia. Distante dos clichês que infestam os melodramas fáceis, faz com que os 137 minutos passem voando num drama de anti-heróis, sem forçar sentimentalismos piegas, bem alicerçado por uma trilha sonora fascinante e no tom certo, que jamais torna-se invasiva ou descambe para as facilidades abomináveis em realizações sentimentaloides encontradas em obras menores.

Manchester à Beira-Mar é um retrato cruel com ênfase de um fantasma humano pelo descompasso do estado físico com o psicológico, que vai aniquilando a lucidez com fortes tintas uma pessoa na sua dignidade como força singular na decrepitude, com voos rasantes desgovernados, principalmente no remorso que carrega sem demonstrar qualquer emoção, exceto quando perde a razão e parte para a agressão explícita. Não há lágrimas, mas esboços de virilidade excessiva. Mas ali está o cotidiano do mar e sua profundidade atravessando o horizonte perdido, como o olhar sem fronteiras à procura de uma explicação para purificar pela água o que ficou para trás. Há uma dura realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos na estarrecedora situação irremediável naquele abismo sem concessões. O desfecho sintetiza o encontro do protegido que perdeu o pai abruptamente e foi abandonado pela mãe ausente, em consonância com o vínculo do protetor carregando seu fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas neste painel de frustrações que não passam. Eis um filmaço que mereceria o Oscar, se não houvesse premiações para realizações politicamente corretas e com interesses comerciais. Desde já se insere na listagem dos dez melhores filmes de 2017.

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