Dor Infinita
Indicado a seis estatuetas no Oscar deste ano, Manchester à Beira-Mar é um vigoroso
drama familiar que aborda os desdobramentos da dor imensurável e os resquícios
da culpa ilimitada, sem que haja um alento para atenuar o sofrimento que arde
como uma ferida aberta latejante. A direção exemplar é de Kenneth Lonergan, que
havia dirigido anteriormente Conte Comigo
(2000) e Margaret (2011). O longa
rendeu merecidamente o prêmio de melhor ator no Globo de Ouro para Casey Affleck-
irmão do astro Ben Affleck- pela soberba aula de interpretação contida como Lee
Chandler, um homem solitário e sorumbático que precisa lidar com os mistérios
pessoais que guarda calado. Em 2008, Casey foi indicado ao Globo de Ouro e ao
Oscar para ator coadjuvante em
O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford
(2007); tem também na carreira os papéis discretos em Gênio
Indomável (1997) e Onze
Homens e Um Segredo (2001).
O filme é apresentado em flashbacks
que mistura a fase pretérita com ingredientes do presente, na triste trajetória
do protagonista, que é surpreendido com a morte súbita do irmão mais velho, Joe
Chandler (Kyle Chandler), restando-lhe cuidar e tutelar o sobrinho adolescente,
Patrick (Lucas Hedges), um jovem de 16 anos, que tem duas namoradas, teima em
ficar com a posse do barco pesqueiro, joga hóquei, toca rock numa banda de
porão e não quer se afastar da cidade litorânea de Manchester, no Estado de
Massachusetts, nos EUA. O fatídico imprevisto fará com que o silencioso Lee
retorne de Boston, onde trabalha de zelador, realizando pequenos serviços de consertos
em prédios, tais como: manutenção de torneiras, troca de lâmpadas, remoção de
gelo nas ruas e desentupir vasos sanitários. A humilhação que ouve de conversas
entrecortadas é como uma salvaguarda às avessas que encara como um resgate pelo
castigo que entende merecer.
Ao retornar para a cidade natal, o personagem central terá
de enfrentar finalmente um passado trágico do qual fugiu. Mas antes há algumas
encrencas que devem ser resolvidas de imediato: os trâmites do velório do
irmão, as dificuldades de realizar o enterro pelas circunstâncias climáticas da
forte nevasca e as peraltices inerentes da juventude do tutelado que arruma pelas
estradas da vida. No meio deste turbilhão de problemas que povoa sua cabeça,
terá de harmonizar a consciência e relembrar os motivos nefastos e as
lembranças perturbadoras que causaram seu afastamento dali. Os encontros
fortuitos com a ex-mulher (Michelle Williams) lhe trará um combustível inflamável
para o forte impacto emocional que desestruturou sua razão de viver para
eternizar um profundo remorso. O abalo sísmico familiar irá dissipando os
enigmas com revelações devastadoras para sua renúncia à felicidade, através do tom
agressivo e violento com pessoas que cruzam pelo seu caminho. Por pouca coisa
explode de raiva e o ódio desmesurado aflora decorrentes da dor intensa e do
isolamento progressivo.
Lonergan vai lançando em doses homeopáticas mostras para o
entendimento de uma situação caótica. A memória traz à tona os fantasmas do dia
do infortúnio que o deixa em luto permanente, diante de uma agonia lancinante que
o derruba emocionalmente, através de transtornos psicológicos que o marcaram
definitivamente. As lembranças anuviadas do alcoolismo e do uso de drogas com
amigos em festas homéricas são imagens que povoam seu cérebro em reconstrução
da instransponível amargura, pela derrocada do equilíbrio que assombra Lee, por
espectros que ainda rondam e remoem seus pensamentos atormentados. A compaixão
entre ele e o sobrinho, uma espécie de filho, por isto estão presentes nos
dilemas das relações familiares os sacrifícios indesejados que soam como
elementos punitivos pela redenção de uma alma destroçada pela dor dilacerante.
A frieza acompanha o protagonista, uma pessoa sombria numa iminente situação
autodestrutiva, sem perspectiva de mudança numa narrativa magistral sobre as
causas e efeitos da melancolia na pura essência doentia. Distante dos clichês
que infestam os melodramas fáceis, faz com que os 137 minutos passem voando num
drama de anti-heróis, sem forçar sentimentalismos piegas, bem alicerçado por
uma trilha sonora fascinante e no tom certo, que jamais torna-se invasiva ou
descambe para as facilidades abomináveis em realizações sentimentaloides
encontradas em obras menores.
Manchester à Beira-Mar
é um retrato cruel com ênfase de um fantasma humano pelo descompasso do
estado físico com o psicológico, que vai aniquilando a lucidez com fortes tintas
uma pessoa na sua dignidade como força singular na decrepitude, com voos
rasantes desgovernados, principalmente no remorso que carrega sem demonstrar
qualquer emoção, exceto quando perde a razão e parte para a agressão explícita.
Não há lágrimas, mas esboços de virilidade excessiva. Mas ali está o cotidiano
do mar e sua profundidade atravessando o horizonte perdido, como o olhar sem
fronteiras à procura de uma explicação para purificar pela água o que ficou
para trás. Há uma dura realidade a ser encarada para a construção dos elos
perdidos na estarrecedora situação irremediável naquele abismo sem concessões. O
desfecho sintetiza o encontro do protegido que perdeu o pai abruptamente e foi
abandonado pela mãe ausente, em consonância com o vínculo do protetor carregando
seu fardo insustentável e pesado que tomam dimensões estratosféricas neste
painel de frustrações que não passam. Eis um filmaço que mereceria o Oscar, se
não houvesse premiações para realizações politicamente corretas e com
interesses comerciais. Desde já se insere na listagem dos dez melhores filmes
de 2017.
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