quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O Quarto de Jack


Um Novo Mundo

Baseado em fatos reais relatados do best-seller Quarto, entre os quais o pai que manteve por anos a filha no porão de casa na Áustria, em 2008, praticando todas as barbáries abjetas dignas de um ser monstruoso, ao ser abusada sexualmente durante 24 anos. A obra é da escritora irlandesa Emma Donoghue, que escreveu o roteiro para o cinema e cria uma história instigante para o compenetrado compatriota diretor Lenny Abrahamson, resultando neste magnífico O Quarto de Jack. Foi indicado em quatro categorias ao Oscar: melhor filme- com remotas chances de ganhar, embora merecesse esta consagração, bem que poderia ser o grande azarão-, direção, atriz- franca favorita- e roteiro adaptado. Já abocanhou os prêmios de melhor atriz para a californiana Brie Larson, de 26 anos, no papel de Joy, a feroz mãe disposta a tudo em seu amor lúcido e protetivo, na premiação da Academia Britânica- Bafta-, e o Globo de Ouro, além de ser escolhido pelo voto popular como o melhor filme no Festival de Toronto. Outra grata surpresa é o ator mirim revelação Jacob Tremblay encarnando o personagem-título, um canadense prodígio de apenas oito anos nas filmagens, hoje está com nove, que impressiona pela estupenda atuação entremeada por olhares reveladores em planos fechados entre as madeixas compridas e pela rapidez de raciocínio. Injustamente não foi indicado ao Oscar, se fosse Leonardo DiCaprio correria sério risco de sair de mãos vazias novamente da Academia de Hollywood.

Uma mescla de suspense psicológico transitando para o drama intimista sobre filho e mãe que vivem isolados num quarto minúsculo de dez metros quadrados dentro de um galpão, onde se vê as luzes solares somente pela claraboia. O único contato que eles têm com o mundo exterior é a visita periódica do velho Nick (Sean Bridgers), que os mantém em um cativeiro, dorme e pune com a vítima, mas não tem contato com o fruto do estupro, por pedido expresso da indignada mãe leoa, que defende a cria com uma força superior que imagina ter, embora se mostre fragilizada e até despreparada para lutar, irá surpreender com seu instinto materno de uma garra incomum oriunda de seu interior. A jovem sequestrada há sete anos, quando tinha 17, faz o possível para tornar suportável a vida naquela pocilga, em que um rato é amigo do garotinho, mas não vê a hora de sair dali. Para tanto, elabora planos arquitetados com a ajuda do filho para retornar à realidade, mas nem sempre dá certo por esbarrar em alguns entraves.

Abrahamson cria uma atmosfera favorável e marcante para o desenrolar da trama na tela, o resultado, ainda que possa parecer paradoxal, é uma simbiose de medo e pavor com momentos poéticos e carinho de duas criaturas excluídas do mundo, através do enclausuramento com passagens de claustrofobia no exíguo espaço. Mas o pior parece que está por vir com a suposta liberdade por um realismo dilacerante que aguarda a dupla da metade para o desfecho do longa, na reflexão sobre o mundo exterior, uma nova perspectiva de vida e a relação de vínculo familiar com a mãe/avó (Joan Allen) com um novo companheiro, separara-se do pai/avô (William H. Maccy). Um dos questionamentos do enredo é sobre a readaptação dolorosa e dura por vezes da ressocialização com o assustador mundo real que ficarão cara a cara. Eis um tipo de realização que quanto menos se sabe do enredo será melhor para apreciar para não estragar.

O Quarto de Jack é narrado com uma verossimilhança palatável. É um daqueles dramas psicológicos exemplares, com recheio de componentes primorosos, entre os quais o suspense, no qual a fantasia e os diálogos chocantes darão estrutura para um clímax surpreendente de imagens lúdicas como do céu visto pela criança pela primeira vez dentro por uma fresta de um tapete em que está enrolado como uma mercadoria. O cineasta conduz a história com boa desenvoltura, intercalando os momentos melancólicos do cativeiro com a vida real de forma sublime, sem deixar escapar o clássico momento do retorno ao local do crime. É ambientado um cenário hostil pelo tom certo da dramaticidade contada com eficiência, com o auxílio da boa trilha sonora e da eficiente fotografia de interiores e exteriores. Decorre da situação atípica um universo para amenizar o isolamento, sendo que para isto surge um realismo cênico invejável, como da busca do recanto para dormir dentro do armário do quarto com delicadeza e profundidade encontrados num filme superior. São mostradas as brigas dos dois que acordam juntos, escovam os dentes, fazem alongamentos antes das refeições, o menino não esquece o tema de casa e vê televisão com horários pré-determinados. Depois virão as descobertas de coisas inimagináveis como jogar futebol com alguém de sua idade e os dissabores de situações pelo afastamento da idolatrada mãe surtada.

Ao avançar o enredo surgem subtemas notáveis como a bisbilhotice de uma imprensa sensacionalista na busca da audiência midiática pela televisão. Até mesmo o egoísmo materno é colocado em xeque, ao ser questionada por uma repórter, e posteriormente pela psicóloga, surge uma discussão como caracterizadora de uma culpa involuntária da sequestrada. Pouco importando sobre seus fantasmas do passado e as cicatrizes traumáticas decorrentes de sua convivência com o filho e seu crescimento por cinco anos naquele quadrilátero humilhante, desconfortável, escondidos como animais irracionais numa jaula hermeticamente fechada para não fugirem. A tensão é mantida em dose equilibrada, intercalada pela metáfora da libertação esmagada na figura do camundongo ingênuo, mas pouco recomendável passeando pela casa, como redenção de uma angustiante solidão a dois, diante das perdas afloradas das belezas exteriores suprimidas de forma iminente na simbolização. Perturbador e reflexivo sobre as almas invadidas pelos véus retirados de uma insanidade animalesca, levando para emoções de vidas sufocadas, na qual a o epílogo lança luzes de um novo mundo pela busca do esquecimento daquela catástrofe de ilusões perdidas pelo confinamento entre paredes.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Ovelha Negra


Dolorosa Reaproximação

Embora não tenha sido selecionado para o Oscar, a Islândia escolheu A Ovelha Negra para representar o país na premiação. O filme é dirigido por Grímur Hákonarson e já recebeu prêmio na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes 2015. Surpreendeu positivamente na última Mostra de Cinema de São Paulo. Retrata de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores de ovinos.

A iminente falência do sustento familiar tem como reflexão literal do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto. No território islandês, a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos. Os animais têm uma importância relevante e inestimável para a sobrevivência nas grandes fazendas destinadas a criá-los. O enredo coloca frente a frente os dois irmãos protagonistas magnificamente interpretados por Sigurður Sigurjónsson (Gummi) e Theodór Júlíusson (Kiddi). Depois de dezenas de anos conflitados, um dia após ser derrotado num concurso anual do melhor cordeiro, Gummi investiga o animal vencedor e desconfia que ele tenha scrapie, uma doença dizimadora dos ovinos, similar à doença da vaca louca nos bovinos.

Um filme que proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. Diante disto, o cineasta faz com habilidade o gancho da matança dos rebanhos nos campos das redondezas para evitar que a contaminação se alastre, comandadas por equipes de vigilância do governo. É uma verdadeira tragédia para todos. Diante deste fato relevante no lugarejo, o roteiro se encaminha para lançar um olhar de compaixão e reaproximação entre os dois inimigos mortais. Porém, a reviravolta na envolvente história terá a resistência justamente do causador da discórdia acirrada após o novo episódio, que tentará proteger algumas unidades para sua sobrevivência em consonância com a veneração que os donos nutrem pelas ovelhas.

O drama mostra o impacto que tal perda significa para uma comunidade dependente da essencial criação, como forma de sustento e um meio de vida socioeconômico único na região. A crise se agrava com a chegada do inverno, o que torna o ambiente mais inóspito e impróprio para aventuras financeiras. A narrativa capta com sensibilidade a solidão dos irmãos de vínculos rompidos por uma questiúncula do passado, em que o pai deixou registradas todas as terras em nome de um só filho, talvez por ser mais confiável e seguidor da saga familiar, enquanto que o outro morava como se fosse de favor. Para isto a fotografia esplendorosa de imagens majestosas captadas é fator fundamental para passar ao espectador o clímax tenso e hostil que estão presentes entre os dois, ganhando força na aspereza das suas vidas sem emoções, em que nem as empregadas resistem por muito tempo, logo pedem demissão, como afirma um deles.

Eis uma realização sutil num panorama de brigas surdas permanentes pelos personagens centrais. Num ritmo lento, o cineasta faz um belo drama silencioso, terno, humano, com dignidade de uma narrativa que cresce com a evolução do enredo para o desfecho redentor e significativo como o retrato de uma perda por décadas, decorrente de picuinhas e baboseiras sem significados maiores. O grande amor fraterno descoberto no triste, sofrido e estupendo epílogo, em que a singeleza de um gesto de proteção e o calor humano que explode naquela tempestade de uma nevasca violenta por uma estética de filmar singular, embora por uma produção considerada singela, como disse o diretor ao jornal O Estado de S. Paulo: “Sempre tivemos cinema na Islândia, uma lei de financiamento que não mudou. O que mudou talvez seja a mentalidade. Há uma nova geração de diretores, a qual pertenço. Queremos fazer nossos filmes com sinceridade e simplicidade. São filmes baratos. Estamos tendo a sorte de ganhar projeção em festivais”.

A Ovelha Negra tem elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia de pastores de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma reintegração da união familiar abalada. Um cenário que privilegia o cão em seu papel decisivo para os irmãos manterem algum laço restante, além do trator como um cúmplice para salvar um deles, sem que o outro mantivesse o contato físico. Não é um relato social aprofundado do extermínio voluntário, mas a relação afetiva inevitavelmente que se perdeu no tempo, ou a autoestima de se produzir para esperar sozinho e silencioso a grande noite de Natal, como na comovente cena que simboliza o estado de espírito de uma situação singular pelos desmandos e irracionalidades da intransigência. Mas sobra combustível para uma energia humana diante da perda iminente de suas referências, como o vínculo familiar, até então de prostração, demonstra entusiasmo e sentimento de carinho entre os e reaproximados pela dor imensa, ali ficarão esquecidos pelo tempo e pelas derrotas inevitáveis neste estupendo drama com tintas fortes de tragicidade, que perturba o mais distraído dos espectadores, mesmo para um desfecho em aberto.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Boi Neon


Sonhos no Sertão

O jovem e promissor diretor pernambucano Gabriel Mascaro, de apenas 32 anos, alçou alto voo e conquistou prêmios importantes na sua admirável e consistente produção anterior, Ventos de Agosto (2014), com menção honrosa no Festival de Locarno, na Itália, único filme brasileiro a participar do evento. Foi premiado no 47º. Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia, e o troféu Vagalume de melhor filme. Neste seu segundo longa-metragem ficcional, Boi Neon arrebatou a láurea de melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para a garotinha Alyne Santana no Festival do Rio do ano passado, além de conquistar críticos e públicos em aproximadamente 30 festivais brasileiros e no exterior, já  totalizou14 prêmios, entre os quais também o do júri na Mostra Horizontes no Festival de Veneza, e participou do 40º. Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2015. O cineasta tem ainda em sua filmografia os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).

Na ficção de estreia o realizador lançou mão de um elenco de amadores e figurantes, exceto a premiada atriz profissional Dandara de Morais no papel central. Em Boi Neon, o elenco é profissional numa trama que se passa nos bastidores das vaquejadas realizadas no Nordeste do país. Iremar (Juliano Cazarré- ótimo) é um vaqueiro de curral que viaja trabalhando na preparação dos animais antes de largá-los na arena de areia para dois vaqueiros tentarem domá-los e jogá-los no chão. Com a força bruta, quase selvagem, de homens toscos pela rudeza das atividades que desenvolvem com paixão, entre os quais está o parceiro Zé (Carlos Pessoa). Andam no caminhão dirigido por Galega (Maeve Jinkings), uma dançarina que se veste com a fantasia da cabeça de um cavalo, e sua a filha menor, Cacá (Alyne Santana) que adora os equinos. Formam uma grande família nômade que discute seus problemas e dificuldades inerentes de pessoas que lutam na vida para se manterem dignas como trabalhadores honestos, exceto algumas escorregadelas típicas de pessoas de pouca cultura.

Iremar coleciona revistas de moda, panos e restos de manequins, para quem sabe um dia alcançar sua meta tão sonhada: largar tudo e iniciar uma carreira como estilista no Polo de Confecções do Agreste. Monta um atelier improvisado no veículo com lantejoulas, tecidos, manequins rústicos e croquis para ser famoso desenhando roupas e peças íntimas. É tudo o que deseja e demonstra algum conhecimento técnico das máquinas profissionais de costura, quando abre o coração para Geise (Samya de Lavor), uma mulher grávida que é segurança de uma grande fábrica, após conhecê-la vendendo perfumes nas horas vagas. O cineasta coloca outro interessante ingrediente na trama, ou seja, o prazer na gestação avançada, quando propõe uma descoberta da satisfação provocada pelo estímulo na bela cena tórrida de sexo explícito num plano-sequência de puro realismo. Além do sonho em ser designer do compenetrado preparador dos rabos dos bois, para sair da mesmice daquele cotidiano sem futuro e infestado pelo machismo em relação aos gostos mais delicados dos cabras-machos de um novo tempo. Há o brilho nos olhos da motorista abandonada pelo marido, ao conhecer um jovem trabalhador (Vinicius de Oliveira), que alisa com carinho as enormes madeixas, ela demonstra sentir orgulho de seu cabelo pixaim. Uma bonita cena pela construção sutil da própria aceitação, sem demonstrar rancor, ódio ou ressentimento pela cor, ainda que questionada pela filha carente de pai ausente e de uma mãe dispersiva. Revelam-se conflitos entre as duas, com agressões verbais e físicas, numa demonstração de uma relação de vínculo estremecido pelas circunstâncias alheias para ambas.

Através da fascinante fotografia de Diego Garcia, Boi Neon retrata com inegáveis méritos a busca de um objetivo maior de vida para aquelas criaturas simples em seus costumes, quebrando paradigmas de preconceitos do Interior. Há uma riqueza nos diálogos típicos regionais de Pernambuco por expressões bem significativas, com humor e leveza, tanto de espírito como da alma para temas universais. São sonhos que acalentam um futuro com esperança para acabar com aquela vida bovina de personagens sofridos, infelizes, quase derrotados. Tanto do peão que quer ser estilista num polo de grande produção de moda para praia no meio de uma contraditória paisagem árida a léguas do mar, retrata um paradoxo socioeconômico do país; ou da dançarina que pretende um dia ganhar o mundo da fama e ser reconhecida como uma grande artista; ou ainda da filha que não desiste da relação com o pai interrompida abruptamente, chega pedir com doçura e ingenuidade abraços para homens mais velhos. Dói a falta de afetividade masculina, que explode no contrafluxo da figura materna como um grito melancólico pela ausência paterna.

O diretor desconstrói os paradoxos de homem costurar e passar roupas, enquanto que uma mulher cuida da mecânica e dirige um caminhão. O cinema autoral de Mascaro, assim como Kleber Mendonça Filho em O Som ao Redor (2012), se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. A vaquejada no sertão nordestino de homens rudimentares num terreno machista dominante, bem como a grávida na busca do erotismo, mesmo que o sexo seja apenas um elemento de satisfação momentânea, mas com satisfação de ternura plena sem banalidades. Assim como a ausência paterna e os sonhos fantasiados são temas bem familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade e sem perder a poesia. Surgem elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este drama bem brasileiro distante das metrópoles como essência da revolta silenciosa dos personagens para fincarem desejos nos contrastes da vida civilizada daqueles nativos e suas superações que virão como se um novo dia nascesse. Mas a reflexão no desfecho sugere um contexto pouco otimista, que dificilmente irá se afastar da trivialidade como continuação de suas trajetórias realistas da existência amarga.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Regresso


A Sobrevivência

O cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu tinha em sua filmografia dramas crus e sem ironia, marcantes pelo realismo sisudo como proposta conceitual, porém instigante na narrativa como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003), exceto Babel (2006), que remonta várias histórias intercaladas. Incursionou pela comédia com Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância-2014), que abriu os caminhos para a consagração mundial, ao concorrer em nove categorias ao Oscar de 2015. Inspirado em fatos reais extraídos do livro The Revenant, de Michael Punke, que já fora transposto para a telona em Fúria Selvagem (1971), de Richard Serafian, agora com O Regresso, escrito por Iñárritu e Mark L. Smith, superou a marca anterior, desta feita conseguiu doze indicações para a Academia de Hollywood deste ano: melhor filme, direção, ator principal e coadjuvante, fotografia, montagem e outras indicações técnicas.

A trama tem por cenário o ano de 1820, quando o caçador de peles descendente de irlandês, Hugh Glass (1780-1833), interpretado por Leonardo DiCaprio de forma corajosa, sofrida, angustiante e gemida como se fosse um martírio do prólogo até o epílogo. A câmera capta sangue com gotículas de neve entremeadas pela respiração ofegante do ator embaçando a lente. Parte para o gelado e selvagem território de Missouri, no Oeste dos Estados Unidos, disposto a ganhar muito dinheiro caçando animais exóticos, ao mesmo tempo serve de guia para expedições de norte-americanos com o mesmo intuito, tendo no contrapondo a oposição de franceses embrenhados na mata pelo mesmo propósito. Ele conhece bem as dificuldades do local de difícil acesso e com ciladas das intempéries da natureza. Encontra no meio do caminho índios revoltados com os exploradores, dispostos a defender até a morte suas terras invadidas pelo homem branco. O protagonista sofre uma emboscada terrível, dizimando vários dos companheiros de jornada. Sobrevive, mas logo é atacado por um enorme urso que o mutila terrivelmente, deixando-o em frangalhos com ferimentos profundos pelas mordidas e lambidas, praticamente sem chances de reagir aos malefícios. Soçobra um homem retorcido pelo desfiguramento das unhas e dentes do embate da fera que quase o comeu literalmente, mas heroicamente há o alívio pela vitória decorrente entre dois gigantes da selva embrutecida.

O diretor coloca a vingança como outro ingrediente de um tempero mortífero no enredo. Além do instinto de sobrevivência junto à natureza com rios gélidos de correntezas espetaculares, montanhas cobertas por nevascas épicas, florestas de árvores frondosas que se agigantam como infinitas. Após ser flechado por um bando de indígenas, faz de um limão uma limonada com a morte do seu cavalo, diante do frio acachapante busca abrigo num inusitado lugar que o aquecerá, através de uma cena nauseante pela crua evisceração, barco submergindo e deixando à deriva o protagonista que voava pelas corredeiras como um bólido, além das cachoeiras repletas de pedras com pontas e penhascos aterradores. Sobram os excessos de filmagens realizadas pelo deslumbrado cineasta mexicano, que parece ter perdido um pouco da razão pelo histrionismo patético, deixando seu longa beirar um spaguetti western nível B.

O Regresso é uma mescla de aventura com drama e faroeste filmado na província de Alberta, no Canadá, sendo concluído abruptamente na Patagônia, devido às condições climáticas desfavoráveis para o desfecho da história. Um filme que tinha tudo para dar certo, não fosse alguns caprichos exagerados do realizador. Há coerência narrativa, ao deixar seriamente ferido e abandonado à própria sorte o personagem central, justamente pelo parceiro mercenário John Fitzgerald (Tom Hardy), um protótipo vilão pelo complexo dos medos e objetivos escusos, que ainda rouba seus pertences e mata covardemente seu filho (Forrest Goodluck), razão pela qual desencadeia um ódio mortal em Glass, com o desejo de transformar em caça até o inferno seu ora algoz, mesmo com todas as adversidades, diante da pífia traição. Para isto houve uma transformação desglamourizada em DiCaprio, que parece finalmente levará a estatueta tão cobiçada, depois de cinco tentativas frustradas.

Deve ser destacado os efeitos técnicos e visuais como o ponto mais alto da realização, num cenário de neve sempre acolhedor, mas muitas vezes distante da qualidade do enredo e da proposta pretendida para um resultado melhor no conteúdo e não tão descaradamente comercial. É inegável a primorosa fotografia de Emmanuel Lubezki, o mesmo de A Árvore da Vida, e premiado em Gravidade e Birdman, caminha para seu terceiro Oscar consecutivo nesta obra de 156 minutos de brilho e fascínio de imagens deslumbrantes, como nas cenas de ação que possuem uma beleza estética, principalmente na perseguição em plano-sequência desenvolvida no desenrolar do filme. Cabe destacar a bonita e significativa trilha sonora de Ryuichi Sakamoto, vencedor do Oscar pelo trabalho em O Último Imperador.

Eis um filme impreciso que recria o instinto da sobrevivência do homem contra a natureza, além da arrasadora fúria pela vingança irracional digna de um primata das cavernas. Como plano secundário há uma poesia visual que magnetiza os olhos pelo fascínio. A plateia que optar pelas salas Imax serão favorecidas por efeitos impressionantes, além da melhora qualitativa e substancial da saga interminável do padecimento do protagonista no confronto com cenas absolutamente brutais e de um realismo que flutua no demagógico heroísmo desbragado. Resta uma vingança barata de uma jornada pessoal em nada edificante, além do ambiente retratado como um inimigo violento decorrente de uma região inóspita, criada para super-heróis de gibis ou os mocinhos dos faroestes dos confrontos de John Wayne com os índios Sioux, na defesa do “ameaçado” povo americano, tudo em nome de uma sociedade conservadora que buscava peles para um mercado pródigo, como no sofrível filme dos desafios inerentes conduzidos por Iñárritu nesta derrapada produção próxima a 200 milhões de dólares.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O Filho de Saul


Porões do Holocausto

Falado em oito línguas, vem da Hungria o favorito ao Oscar estrangeiro deste ano, O Filho de Saul, com direção do jovem László Nemes, de 38 anos. Uma abordagem seca sobre os porões ainda não vistos do Holocausto, focando um integrante do Sonderkommando, uma espécie de brigada de judeus encarregada de limpar as câmaras de gás e carbonizar os cadáveres, provavelmente sensibilizará e calará fundo os velhinhos da Academia de Hollywood. Já ganhou o Globo de Ouro e os prêmios de melhor filme da crítica e do júri no Festival e Cannes de 2015. Integrou a 39ª Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado, perdeu o prêmio da crítica para Torneranno I Prati, traduzido para Os Campos Voltarão (2014), de Ermanno Olmi.

O visceral e controvertido drama tem como cenário o ano de 1944, nos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Retrata uma solução adotada como prática abjeta pelo Nazismo, como resolver e limpar os milhares de mortos advindos dos extermínios em massa. Como se fosse uma fábrica que tem de manter as máquinas funcionando a todo vapor, era necessário estar sempre aptas as câmaras de gás para receber mais e mais vítimas. Os corpos deveriam ter um destino, entre eles as valas comuns que já não davam mais resultado prático, pois não poderiam ser simplesmente empilhados como numa grande lixeira humana. O horror estava impregnado nas entranhas de todos, vítimas e algozes faziam parte da terrível paisagem putrefata propiciada por Adolf Hitler. Por isto a trama cutuca como pode o espectador sentado comodamente.

Géza Röhrig que não é ator, mas um poeta húngaro que mora em Nova Iorque, interpreta Saul Ausländer, um judeu obrigado a trabalhar para os nazistas, sendo um dos responsáveis em limpar as câmaras de gás, após dezenas de outros judeus serem trucidados. Em meio à tensão do momento e as dificuldades do cotidiano hostil naquele ambiente sombrio e tétrico para realizar suas repugnantes tarefas, reconhece entre os mortos o corpo do suposto filho ainda sobrevivente, mas sem sorte pela determinação de um frio oficial alemão, razão pela qual decide fazer um enterro digno com o auxílio de um religioso. Vira uma obsessão, chega a colocar em risco a vida dos companheiros. Nemes tenta fugir da trivialidade, embora seja discutível como uma realização sugestiva sem mostrar a essência, como afirma no jornal Estado e São Paulo: “Nosso filme não pode ser bonito nem sedutor. E também não quero que seja um filme de gênero, de horror”. Tem por objetivo fugir da banalidade do mal com imagens sensacionalistas, por isto busca uma abordagem voltada para os efeitos da dignidade, da moral, da ética e da reflexão sobre a barbárie nazista. É marcante a cena em que o diretor utiliza a elipse pontual quando as pessoas se debatem dentro dos chuveiros químicos coletivos para tomar o banho letal.

O Filho de Saul esmiúça um momento único na vida do protagonista, quando jura ter identificado o filho. Sua vida é complicada, tendo em vista ser uma peça da engrenagem maquiavélica vigente de extermínio dos judeus. O fato de pertencer à respectiva brigada, em que poucos sobreviviam, com indispensáveis regalias, tais como comida, direito de circulação pelo campo e outras benesses que lhe poupam a vida, embora os integrantes dos Sonderkommandos também eliminassem alguns vestígios comprometedores. A trama coloca o personagem central num delírio, em busca de seu objetivo principal, ou seja, achar um rabino para realizar o ritual no enterro do menino que deveria ir para as salas de autópsia. A cruzada empregada por Saul é entediante, quase que enfadonha, ao descobrir formas de resistência e sobrevivência no complexo construído com câmaras de gás, chuveiros químicos, valas abertas a céu aberto e fornos de cremação.

Dentro de um bom equilíbrio, através de uma história contada com uma aterrorizante leveza contraditória, embrutecida por um panorama deixado do horror pelos destroços humanos distorcidos propositalmente pela lente. Evidente que há a perseguição implacável aos sionistas, diante das feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos doloridos, faz deste drama um registro forte, sem cair no maniqueísmo ou na mesmice de alguns filmes didáticos e pouco eficientes com pessoas amontoadas dentro de trens rumo à morte. Um filme de imagens poderosas com força de grande expressividade, como na fuga tresloucada pelo rio com suas profundas correntezas, os subterrâneos das atrocidades. Ou pelo rosto e o olhar marcados pela distância de Saul e seus gestos de perplexidades até a surpresa do desfecho. Mas falta a contundência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração, durante o período da II Guerra Mundial. Ou em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, no registro magnífico de uma defesa intransigente para uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações, na qual as vítimas são todas aquelas que não participaram diretamente, faz o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade.

Há inegáveis méritos para o cineasta ao mostrar o local das mortes massificadas pelo escabroso genocídio como um bunker, que poderia dar um sentido claustrofóbico imaginado no roteiro, mas o resultado é pouco eficaz. Não há corpos em evidência em O Filho de Saul, apenas surgem imagens distorcidas pela câmara que fecha e cola no protagonista em sua trajetória incansável e obstinada pelo seu intento, acompanhado de sons e ruídos, mesclados com vozes oriundas de um além próximo. Ao lançar mão desta técnica o realizador assevera: “ser sua companheira nessa verdadeira travessia do inferno”, tenta criar uma estética diferente como de Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1993), em que a câmera entrava no hermético recinto gaseificado. O diretor húngaro veta tal situação para Saul, como também priva o espectador do realismo macabro. Ao se posicionar por algumas regras ditas como éticas, vai ao encontro de uma censura prévia, como alguns críticos revelam e bradam com certa razão. Ou seja, o que se pode ver no cinema e o que mostrar para o público. Seria uma subestimação da inteligência da plateia? Talvez sim, talvez não. Tudo depende do ponto de vista moral e ético. Quanto à estética utilizada, não há inovação, pouca originalidade num tema recorrente, embora perturbador sobre todos os aspectos. Um filme interessante, longe da obra-prima diagnosticada por alguns apressados críticos, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um passado brutal.