quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Boi Neon


Sonhos no Sertão

O jovem e promissor diretor pernambucano Gabriel Mascaro, de apenas 32 anos, alçou alto voo e conquistou prêmios importantes na sua admirável e consistente produção anterior, Ventos de Agosto (2014), com menção honrosa no Festival de Locarno, na Itália, único filme brasileiro a participar do evento. Foi premiado no 47º. Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia, e o troféu Vagalume de melhor filme. Neste seu segundo longa-metragem ficcional, Boi Neon arrebatou a láurea de melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para a garotinha Alyne Santana no Festival do Rio do ano passado, além de conquistar críticos e públicos em aproximadamente 30 festivais brasileiros e no exterior, já  totalizou14 prêmios, entre os quais também o do júri na Mostra Horizontes no Festival de Veneza, e participou do 40º. Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2015. O cineasta tem ainda em sua filmografia os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).

Na ficção de estreia o realizador lançou mão de um elenco de amadores e figurantes, exceto a premiada atriz profissional Dandara de Morais no papel central. Em Boi Neon, o elenco é profissional numa trama que se passa nos bastidores das vaquejadas realizadas no Nordeste do país. Iremar (Juliano Cazarré- ótimo) é um vaqueiro de curral que viaja trabalhando na preparação dos animais antes de largá-los na arena de areia para dois vaqueiros tentarem domá-los e jogá-los no chão. Com a força bruta, quase selvagem, de homens toscos pela rudeza das atividades que desenvolvem com paixão, entre os quais está o parceiro Zé (Carlos Pessoa). Andam no caminhão dirigido por Galega (Maeve Jinkings), uma dançarina que se veste com a fantasia da cabeça de um cavalo, e sua a filha menor, Cacá (Alyne Santana) que adora os equinos. Formam uma grande família nômade que discute seus problemas e dificuldades inerentes de pessoas que lutam na vida para se manterem dignas como trabalhadores honestos, exceto algumas escorregadelas típicas de pessoas de pouca cultura.

Iremar coleciona revistas de moda, panos e restos de manequins, para quem sabe um dia alcançar sua meta tão sonhada: largar tudo e iniciar uma carreira como estilista no Polo de Confecções do Agreste. Monta um atelier improvisado no veículo com lantejoulas, tecidos, manequins rústicos e croquis para ser famoso desenhando roupas e peças íntimas. É tudo o que deseja e demonstra algum conhecimento técnico das máquinas profissionais de costura, quando abre o coração para Geise (Samya de Lavor), uma mulher grávida que é segurança de uma grande fábrica, após conhecê-la vendendo perfumes nas horas vagas. O cineasta coloca outro interessante ingrediente na trama, ou seja, o prazer na gestação avançada, quando propõe uma descoberta da satisfação provocada pelo estímulo na bela cena tórrida de sexo explícito num plano-sequência de puro realismo. Além do sonho em ser designer do compenetrado preparador dos rabos dos bois, para sair da mesmice daquele cotidiano sem futuro e infestado pelo machismo em relação aos gostos mais delicados dos cabras-machos de um novo tempo. Há o brilho nos olhos da motorista abandonada pelo marido, ao conhecer um jovem trabalhador (Vinicius de Oliveira), que alisa com carinho as enormes madeixas, ela demonstra sentir orgulho de seu cabelo pixaim. Uma bonita cena pela construção sutil da própria aceitação, sem demonstrar rancor, ódio ou ressentimento pela cor, ainda que questionada pela filha carente de pai ausente e de uma mãe dispersiva. Revelam-se conflitos entre as duas, com agressões verbais e físicas, numa demonstração de uma relação de vínculo estremecido pelas circunstâncias alheias para ambas.

Através da fascinante fotografia de Diego Garcia, Boi Neon retrata com inegáveis méritos a busca de um objetivo maior de vida para aquelas criaturas simples em seus costumes, quebrando paradigmas de preconceitos do Interior. Há uma riqueza nos diálogos típicos regionais de Pernambuco por expressões bem significativas, com humor e leveza, tanto de espírito como da alma para temas universais. São sonhos que acalentam um futuro com esperança para acabar com aquela vida bovina de personagens sofridos, infelizes, quase derrotados. Tanto do peão que quer ser estilista num polo de grande produção de moda para praia no meio de uma contraditória paisagem árida a léguas do mar, retrata um paradoxo socioeconômico do país; ou da dançarina que pretende um dia ganhar o mundo da fama e ser reconhecida como uma grande artista; ou ainda da filha que não desiste da relação com o pai interrompida abruptamente, chega pedir com doçura e ingenuidade abraços para homens mais velhos. Dói a falta de afetividade masculina, que explode no contrafluxo da figura materna como um grito melancólico pela ausência paterna.

O diretor desconstrói os paradoxos de homem costurar e passar roupas, enquanto que uma mulher cuida da mecânica e dirige um caminhão. O cinema autoral de Mascaro, assim como Kleber Mendonça Filho em O Som ao Redor (2012), se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. A vaquejada no sertão nordestino de homens rudimentares num terreno machista dominante, bem como a grávida na busca do erotismo, mesmo que o sexo seja apenas um elemento de satisfação momentânea, mas com satisfação de ternura plena sem banalidades. Assim como a ausência paterna e os sonhos fantasiados são temas bem familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade e sem perder a poesia. Surgem elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este drama bem brasileiro distante das metrópoles como essência da revolta silenciosa dos personagens para fincarem desejos nos contrastes da vida civilizada daqueles nativos e suas superações que virão como se um novo dia nascesse. Mas a reflexão no desfecho sugere um contexto pouco otimista, que dificilmente irá se afastar da trivialidade como continuação de suas trajetórias realistas da existência amarga.

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