Sonhos no Sertão
O jovem e promissor diretor pernambucano Gabriel Mascaro, de
apenas 32 anos, alçou alto voo e conquistou prêmios importantes na sua
admirável e consistente produção anterior, Ventos
de Agosto (2014), com menção honrosa no Festival de Locarno, na Itália,
único filme brasileiro a participar do evento. Foi premiado no 47º. Festival de
Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia, e o troféu
Vagalume de melhor filme. Neste seu segundo longa-metragem ficcional, Boi Neon arrebatou a láurea de melhor
filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para a garotinha Alyne Santana
no Festival do Rio do ano passado, além de conquistar críticos e
públicos em aproximadamente 30 festivais brasileiros e no exterior, já totalizou14 prêmios, entre os quais também o do júri na Mostra Horizontes no
Festival de Veneza, e participou do 40º. Festival Internacional de Cinema de
Toronto, em 2015. O cineasta tem ainda em sua filmografia os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).
Na ficção de estreia o realizador lançou mão de um elenco de
amadores e figurantes, exceto a premiada atriz profissional Dandara de Morais
no papel central. Em Boi Neon, o
elenco é profissional numa trama que se passa nos bastidores das vaquejadas
realizadas no Nordeste do país. Iremar (Juliano Cazarré- ótimo) é um vaqueiro
de curral que viaja trabalhando na preparação dos animais antes de largá-los na
arena de areia para dois vaqueiros tentarem domá-los e jogá-los no chão. Com a
força bruta, quase selvagem, de homens toscos pela rudeza das atividades que
desenvolvem com paixão, entre os quais está o parceiro Zé (Carlos Pessoa).
Andam no caminhão dirigido por Galega (Maeve Jinkings), uma dançarina que se veste
com a fantasia da cabeça de um cavalo, e sua a filha menor, Cacá (Alyne
Santana) que adora os equinos. Formam uma grande família nômade que discute
seus problemas e dificuldades inerentes de pessoas que lutam na vida para se
manterem dignas como trabalhadores honestos, exceto algumas escorregadelas
típicas de pessoas de pouca cultura.
Iremar coleciona revistas de moda, panos e restos de
manequins, para quem sabe um dia alcançar sua meta tão sonhada: largar tudo e
iniciar uma carreira como estilista no Polo de Confecções do Agreste. Monta um
atelier improvisado no veículo com lantejoulas, tecidos, manequins rústicos e
croquis para ser famoso desenhando roupas e peças íntimas. É tudo o que deseja
e demonstra algum conhecimento técnico das máquinas profissionais de costura,
quando abre o coração para Geise (Samya de Lavor), uma mulher grávida que é
segurança de uma grande fábrica, após conhecê-la vendendo perfumes nas horas
vagas. O cineasta coloca outro interessante ingrediente na trama, ou seja, o
prazer na gestação avançada, quando propõe uma descoberta da satisfação
provocada pelo estímulo na bela cena tórrida de sexo explícito num
plano-sequência de puro realismo. Além do sonho em ser designer do compenetrado
preparador dos rabos dos bois, para sair da mesmice daquele cotidiano sem
futuro e infestado pelo machismo em relação aos gostos mais delicados dos cabras-machos
de um novo tempo. Há o brilho nos olhos da motorista abandonada pelo marido, ao
conhecer um jovem trabalhador (Vinicius de Oliveira), que alisa com carinho as
enormes madeixas, ela demonstra sentir orgulho de seu cabelo pixaim. Uma bonita
cena pela construção sutil da própria aceitação, sem demonstrar rancor, ódio ou
ressentimento pela cor, ainda que questionada pela filha carente de pai ausente
e de uma mãe dispersiva. Revelam-se conflitos entre as duas, com agressões verbais
e físicas, numa demonstração de uma relação de vínculo estremecido pelas circunstâncias
alheias para ambas.
Através da fascinante fotografia de Diego Garcia, Boi Neon retrata com inegáveis méritos a
busca de um objetivo maior de vida para aquelas criaturas simples em seus
costumes, quebrando paradigmas de preconceitos do Interior. Há uma riqueza nos
diálogos típicos regionais de Pernambuco por expressões bem significativas, com
humor e leveza, tanto de espírito como da alma para temas universais. São
sonhos que acalentam um futuro com esperança para acabar com aquela vida bovina
de personagens sofridos, infelizes, quase derrotados. Tanto do peão que quer
ser estilista num polo de grande produção de moda para praia no meio de uma contraditória
paisagem árida a léguas do mar, retrata um paradoxo socioeconômico do país; ou
da dançarina que pretende um dia ganhar o mundo da fama e ser reconhecida como
uma grande artista; ou ainda da filha que não desiste da relação com o pai
interrompida abruptamente, chega pedir com doçura e ingenuidade abraços para
homens mais velhos. Dói a falta de afetividade masculina, que explode no
contrafluxo da figura materna como um grito melancólico pela ausência paterna.
O diretor desconstrói os paradoxos de homem costurar e passar
roupas, enquanto que uma mulher cuida da mecânica e dirige um caminhão. O
cinema autoral de Mascaro, assim como Kleber Mendonça Filho em O Som
ao Redor (2012), se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com
magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. A vaquejada no sertão nordestino
de homens rudimentares num terreno machista dominante, bem como a grávida na
busca do erotismo, mesmo que o sexo seja apenas um elemento de satisfação
momentânea, mas com satisfação de ternura plena sem banalidades. Assim como a ausência
paterna e os sonhos fantasiados são temas bem familiares para o diretor, que
apresenta um singular domínio de uma estrutura narrativa de inspirada
criatividade, sem cair na obviedade e sem perder a poesia. Surgem elementos bem
caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este drama bem
brasileiro distante das metrópoles como essência da revolta silenciosa dos
personagens para fincarem desejos nos contrastes da vida civilizada daqueles
nativos e suas superações que virão como se um novo dia nascesse. Mas a
reflexão no desfecho sugere um contexto pouco otimista, que dificilmente irá se
afastar da trivialidade como continuação de suas trajetórias realistas da
existência amarga.
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