sábado, 31 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Insolação)

















Insolação

Há filmes que têm tudo para dar certo, com um grande elenco, a começar pelo magnífico Paulo José, passando pelo sempre bom Leonardo Oliveira na companhia de seu filho Antônio Medeiros, Simone Spoladore, Maria Luiza Mendonça, Leandra Leal, André Frateschi, Daniela Piepsyk e Emílio di Biasi, entre tantos outros. Tem uma bela trilha sonora composta por Arthur de Faria, uma boa fotografia com um cenário sob medida.

Acontece que Insolação tudo dá errado num tema de solidão em uma cidade vazia pela frieza e a ausência de calor humano, a falta de amor entre velhos e jovens que se confundem numa Brasília distante e corroída pelos fantasmas da morte, alicerçada na utopia dos contos da literatura russa, não funcionam apesar do esforço. Peca a montagem, com uma pífia direção de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, com um roteiro fragilizado pelas pretensões poéticas, distante porém de uma qualidade mais efetiva e sem uma mínima verossimilhança.

Um filme não precisa ter início, meio e fim. Longe disso, mas a lógica e o cinema como um todo se faz necessário, para não torná-lo chato e arrastado com repetições vagas e tênues de desinteligência. Ora, repetir várias vezes "por favor, um café", é brincar com a eloquência de uma continuação lógica e fundindo os ouvidos mais perceptivos, minando os neurônios à espera de uma inovação de cena.

Insolação lembra dois filmes com a mesma estética narrativa pelas complicadas metáforas poéticas, como A Via Láctea (2007) e O Signo da Cidade (2008). Ambos fracassaram em seus propósitos e objetivos, sendo verdadeiros fiascos de bilheteria e crucificados pela crítica mais isenta de apadrinhamentos. O tema proposto foi bem abordado em Brasília 18% (2006), dirigido por Nélson Pereira dos Santos, um dos mais experientes e melhores diretores brasileiros. Aprofundou Brasília sem perfumaria, deixando a poesia para outros filmes em ocasiões mais apropriadas, com personagens de corpo e alma, sem parecerem robôs orbitando a lua na procura do sol.

Se na Mostra de São Paulo houvesse premiação para os piores filmes, assim como há uma paródia ao Oscar, com a estatueta de Framboesa de Ouro, esta teria teria um forte candidato, o inconsequente e confuso Insolação. A filmografia brasileira merece algo melhor, assim como o brilhante Hotel Atlântico, simples e com uma reflexão perturbadora, com suas revelações típicas de um "cinema de autor".

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (O Apedrejamento...)



O Apedrejamento de Soraya M

Surge mais um forte candidato de melhor filme da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o vigoroso e perturbador O Apedrejamento de Soraya M, com direção de Cyrus Nowrasteh, tendo seus últimos trabalhos como roteirista nos EUA com Amor sem Fronteiras (2003), Caçado (2003) e Atirador (2007), dirigiu o documentário histórico Depois do Atentado, sobre Ronald Reagan, com produção de Oliver Stone (2001).

Logo na saída da sala de projeção, ouve-se dois comentários que resumem o longa: "porrada na cara" e "chute no estômago". É exatamente isso o que este brihante filme nos revela de forma aterradora. O suplício de uma mulher acusada pelo marido injustamente, numa trama urdida e perpetrada como uma farsa, com o intuito de obter o divórcio sem ter que indenizá-la, para poder casar com uma menina de 14 anos, filha de um médico que será enforcado por crime político contra o regime vigente no Irã. Isso é apenas o início de um sofrimento que perdurará até o final, de forma trágica e avassaladora.

Há um julgamento grotesco e ridículo, sem um mínimo de defesa e sequer se fala em ampla defesa, abortando a legitimidade de uma legalidade corrompida, onde um falso mulá, que se denomina líder de uma mesquita, em conluio com o marido que o ameaça, mais o prefeito que é o ex-marido da tia de Soraya, a rebelde Zahra, organizam um julgamento com ameaças e subornos, correndo solta a corrupção, pois já está decidido o futuro de Soraya ao inferno que lhe espera, pois nega-se a conceder o divórcio amigável. Acusada de traição, mesmo sendo uma mulher digna, isso pouco importa, pois comete o pecado capital em desafiar seu próprio marido, homem forte do regime totalitário que sucedeu o xá Reza Pahlevi.

O filme mostra de forma crua e de uma secura extrema a submissão das mulheres, pois como diz o prefeito laconicamente: "se a mulher é acusada, cabe a ela provar sua inocência; se a mulher acusa um homem, cabe a ela também provar o adultério do marido". Ou seja, nunca terá sucesso, pois o poder está concentrado numa sociedade machista, que alijou qualquer tipo de direitos humanos, num mundo incivilizado, onde as leis são feitas de acordo com os interesses de quem manda e detém na mão a caneta.

Neste cenário, numa aldeia, aparece o jornalista franco-iraniano Freidoune Sahebjam que consegue uma fita do depoimento de Zarah sobre a sobrinha Soraya e escvreve um livro com base em fatos reais, divulgando numa reportagem esta poderosa denúncia para os principais países do mundo ocidental em que vivem as pessoas contrárias às decisões dos governantes ditatoriais.

O massacre de Soraya é estonteante, com cenas fortíssimas do apedrejamento explícito, com dilaceramento de órgãos vitais, repugna pela maledicência e atemoriza pelo barulho das pedras como um coral num tic-tac ensurdecedor. Começa pelo próprio pai trêmulo pela velhice, mas convicto da traição da filha, em jogar pedras; vêm os dois filhos divididos pela certeza, mas desencorajado pela tradição o vacilante; o marido alucinado pelo ódio entra em êxtase; e finalmente a população excitada por sangue, lembrando o calvário de Jesus Cristo na cruz e Joana D'Arc ao ser queimada viva na fogueira, acusada pela igreja de bruxaria. O carro com os palhaços anunciando seu espetáculo, exatamente na hora da leitura do veredito condenatório por unanimidade, é uma metáfora magnífica do circo montado para a decisão do Conselho de Homens reunidos para decidir o destino de uma mulher sem direito à defesa.

A intransigência e os descalabros não podem prosperar do Irã para o Brasil, pois no dia 23 deste mês, uma aluna de 20 anos, do primeiro ano de Turismo da UNIBAN, foi chamada literalmente pelos colegas dito homens de "loira puta da UNIBAN", sendo que "loira gostosa" foi o termo mais ameno. Seu crime foi ter usado um microvestido rosa, causando um ataque selvagem, lembrando a ignorância e o horror dos talebans do Afeganistão e do Irã, numa regressão à Idade Média, com xingamentos, assédio moral e tentativa de estupro por colegas de aula, inclusive sendo alguns seus vizinhos de bairro. Isso não aconteceu no Oriente Médio, mas aqui no coração do Brasil, no Estado de São Paulo, no ABC Paulista, em São Bernardo do Campo. A vítima, a nossa "Soraya", só conseguiu sair da universidade para ir embora, escoltada por meia dúzia de policiais militares e disfarçada com um guarda-pó. A sanha taleban não só se encontra em países de regime totalitário, pois os verdugos moram às vezes bem mais próximos do que imaginamos, aguardando o momento propício para atirarem pedras nas Sorayas ou atacarem meninas que cometeram o crime de nascerem bonitas. Não é preciso nem se negar a dar o divórcio amigável como na aldeia iraniana.

Enfim, um longa atual, até pelos acontecimentos tribais na UNIBAN, que deve ser apontado como talvez o melhor, porém há uma certeza, será um dos maiores filmes que já passaram pelas 33 Mostras de São Paulo. Segurem o fôlego, dominem o estômago e assistam esta obra-prima iraniana.

Mostra de Cinema São Paulo (A 40ª. Porta)















A 40ª. Porta

Outro filme em que a mãe e o filho lutam pela sobrevivência, assim como na obra-prima Independência que veio das Filipinas, também o pequeno e recém-independente Azerbaijão nos apresenta este bom e sensível primeiro longa-metragem de Elchin Musaoglu, A 40ª. Porta. Foi apontado por parte da crítica como um dos favoritos para melhor filme da 33a. Mostra de São Paulo, embora seja um filme que tem boas qualidades, está longe de concorrer com o filme filipino supramencionado, bem como o iraniano O Apedrejamento de Soraya M e o espanhol de Almodóvar Abraços Partidos, estes sim, candidatos com potenciais fortes.

A película A 40ª. Porta está bem estruturada num bom roteiro, uma fotografia radiante, com atuações excelentes dos atores escalados, em especial filho e mãe. Porém peca pela mania de alguns diretores em minimizar os dramas pessoais, querendo deixar propostas próximas de um otimismo exacerbado. Não que o longa do Azerbaijão tenha algo descomunal, mas seu final fica a desejar, levando a uma crença dúbia e estéril.

A morte do pai de Rustam pela máfia russa é o ponto de partida, tornando-se o chefe da família com seus 14 anos, protege a mãe e sua honra junto à comunidade, afastando incautos pretendentes. Luta pela retomada de um tapete de estimação, armando contra o comerciante maldoso. Trabalha de lavador de carros e acaba dentro de algumas encrencas com delinquentes juvenis perigosos e ciumentos, envolve-se com um chefe de gangue, mas consegue por se libertar sozinho e com a imagem do pai assassinado. Sonha em ser músico e ganha um instrumento que tocará na ponte junto com uma lâmpada que teima em acender e apagar.

O menino tem um coração maravilhoso e resiste bravamente, luta para não se envolver, situação que não teve melhor sorte o menino do nacional Pixote- A Lei do Mais Fraco (1981), morrendo até o próprio ator pela polícia, por suspeita de assalto em 1987. Outro filme em que os garotos não tiveram uma sorte razoável foi no longa Linha de Passe (2008), sem falar no Cidade de Deus (2002). Mas, enfim o Azerbaijão talvez seja diferente mesmo.

Já no início do filme começa também com um jogo de futebol da gurizada num campinho como nas velhas e tradicionais "peladas", assim como no Brasil, a busca pela profissão de atleta é uma constante. A luta pela dignidade é interrompida com a tragédia pessoal deste promissor jogador, mas as demais situações de guerrilha juvenil são elaboradas de forma amena.

Uma cena realizada com forte dramaticidade é a do menino cego que é carregado nos braços para a casa de Radum, após a prisão de seu irmão e protetor, ainda tenta buscar seu gatinho de estimação, num belo e sensível humanismo de extrema profundidade do diretor.

Fica a reflexão do cinema de um país distante e de uma desconhecida filmografia, onde a criminalidade existe em proporções ainda com algum desconhecimento mais profundo ou talvez por probemas de censura, mas imagináveis como uma das portas que se abrem para o futuro.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Independência)

















Independência

Vem das Filipinas o provável melhor filme da 33ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com a obra-prima Independência, de impecável direção de Raya Martin, que também é o autor do roteiro. Com apenas 25 anos de idade, já arrebatou o prêmio de melhor filme no Festival de Pesaro de 2006, com o longa Or The Prolonged Sorrow of the Filipinos, tendo dirigido ainda Autohystoria (2007) e Now Showing (2008), todo inéditos no Brasil.

É uma obra extremamente madura e tem na simplicidade seu ponto alto e essencial para a beleza e a aula de cinema deste jovem filipino recém-formado em 2005, no seu País, já desponta como um dos mais promissores cineastas deste início de século. Será difícil a Mostra não contemplar Independência como sua apresentação maior, embora haja outra duas obras fortes na concorrência, como Abraços Partidos (Pedro Almodóvar) e o polêmico e extraordinário iraniano O Apedrejamento de Soraya M (Cyrus Nowrasteh)

Uma mãe foge com seu único filho para o meio da floresta, às vésperas de uma invasão dos EUA nas Filipinas. Seu medo da guerra é a causa da evasão e sua reclusão no interior de uma selva indevassável. Vivem em circunstâncias precárias para um ser humano, sem as mínimas condições de dignidade dentro de uma choupana construída com pedaços de paus e capim como telhado. Logo seu filho encontra uma moça caída entre as árvores com ferimentos leves, sendo abrigada, vindo a formar um casal com um o nascimento de um menino. Mesmo com toda a simploriedade do casebre, criam algumas galinhas e o agora jovem pai caça e pesca para a sobrevivência.

O drama é latente e o temor dos invasores está em cada galho que se mexe naquele local atemorizante e escuro com frequentes chuvas intermináveis, com seus segredos escondidos em seu interior. O farfalhar das folhas chega a ser alucinante, com o barulho incessante pelo canto das aves e sente-se até o rugido dos animais selvagens, embora não explícito, somente para o espectador mais atento e sensitivo. O psicológico é testado com os enervantes ruídos das folhas, galhos e aves com as tempestades que jorram águas abundantes naquele cenário fantástico. A tensão instalada a cada momento ou dúvida sugere o ataque iminente dos americanos com bombas e morteiros que poderiam explodir naquele local inóspito. Todo aquele aguaceiro com trovoadas, que se assemelham com os roncos dos motores dos aviões, invadindo seus cômodos, ou melhor, seu chão que serve de cama

A floresta funciona como uma metáfora entre caça e caçador, entre os soldados yanques perseguindo suas presas filipinas, num país em que a democracia é inexistente e a morte de uma criança por furtar frutas serve como exemplo para os demais. Não há julgamentos mas um recado direto para aquele povo sofrido e humilde. Não importa a fome ou a luta pela sobrevivência, pois até o javali na selva teve mais sorte, tendo o direito de fugir do caçador.

A morte alastra-se na família, dizima quase todos, assim como a guerra liquida o povo filipino exaurido pela pobreza e seus direitos subtraídos, há o remanescente que sobrevive e está literalmente acuado, quase sem saída. Sua corrida desesperadora dos seus perseguidores invocam novamente o elemento da caça e do caçador como simbologia de vidas perseguidas pelos ditadores em seus regimes totalitários. Resta o inferno traduzido por parte de um céu avermelhado contrastando com as cores do paraíso que esperam para a redenção, com um final memorável numa cena antológica.

Mostra de Cinema São Paulo (Tokyo)
















Tokyo

Três diretores reúnem num longa-metragem três filmes com episódios de pouco mais de 30minutos cada um. O filme inicia com o francês Michel Gondry (Brilho Eterno de uma Mente sem lembranças- 2005 e Rebobine, Por Favor-2008), dirigindo Interior Design; no segundo episódio o francês Leos Carax (Os Amantes da Ponte Neuf-1991) apresenta Em Merde; e o último ato leva a assinatura do coreano Bong Joon-Ho (O Hospedeiro-2006), com Shaking Tokyo.

O trio consegue obter um resultado espantoso com este magnífico longa Tokyo, pela qualidade e o acerto do tema abordado, ou seja a futurista capital do Japão, com todos os seus sentimentos de perda de solidariedade, medo ao melhor estilo americano e abundância de tédio e depressão, num País que cada vez mais o senso de vida em grupo se dispersa e avança estrondosamente para o abismo da falta da solidão, prevalecendo o coletivo em detrimento da individualidade, que fica evidente pela perda do amor ao próximo.

Gondry dirige o primeiro episódio Interior Design, o mais frágil dos três, pela inconsistência narrativa e a inverossimilhança barata, faltou o manejo e a exuberância existente nos últimos dois, embora o enredo fosse propício para desenvolver algo mais palatável. Os dois jovens que tem dificuldades para se acomodarem num minúsculo apartamento, onde tudo é reduzido já indica um desenrolar crítico. No contraditório do relacionamento, o namorado quer ser diretor de cinema e tem ambição bem consistente, porém sua namorada descamba para um sentimento de culpa e acaba por perder o controle de sua vida, causando enormes contratempos para si e torna-se invisível aos olhos dos outros. A fita avança para o epílogo e as situações de eloquência desaparecem por completo. Erra a mão e a direção demonstra uma fragilidade primária.

Leos Carax dirige o segundo ato que se credencia como um soberbo Em Merde, filme que aborda de forma humana uma criatura misteriosa e sensível que emerge de um esgoto em plena Tóquio, relembrando o inusitado e instigante O Hospedeiro, que tem como uma espécie de continuidade, em homenagem ao seu colega Bong Joon-Ho. Detentor de unhas enormes e sujas, ao melhor estilo Zé do Caixão, com um olho furado e de aspecto horrendo, causa pânico na cidade, derrubando edifícios com centenas de mortes, em referência quase que explícita ao 11 de setembro em New York, diante da destruição e correria que causa na população, faz lembrar os longas americanos Godzilla (1998) e Independence Day (1996).

Há passeatas para evitar o enforcamento de Merde, assim como se contrapõe os contrários a absolvição. O advogado francês também de um olho só, mais atrapalha do que ajuda seu cliente. O clima é de revolta e sentimento de piedade, num jogral de vozes que encanta e transforma o vilão em vítima. A ironia vem no final quando é anunciado suas novas aventuras nos EUA. Simplesmente fantástico este episódio que denota a força e a grandeza do cinema quando se propõe a colocar o inverossímil como coerência e reflexão.

No último episódio que é dirigido pelo coreano Bong Joon-Ho Shaking Tokyo, talvez um dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contada no cinema. Um rapaz vive há mais de 10 anos enclausurado em sua casa, literalmente isolado do mundo e das pessoas. Seu contato com o mundo exterior se dá apenas quando recebe pizzas pela tele-entrega. Mas nada é tão definitivo que a natureza não pode pinçar e devastar, pois a moça que lhe entrega sua refeição pela primeira vez, vê no terremoto que assola a cidade como o insólito e também acaba por ingressar neste mundo claustrofóbico da distância com o ser humano.

A corrida do rapaz pelas ruas de Tóquio completamente vazias, contrapõe com aquelas imagens dos episódios anteriores com seu colorido esquizofrênico diante da correria arrebatadora e desvairada de pessoas sem destino definido. Ainda há tempo para um possível e enigmático relacionamento de uma paixão que por si só poderá romper com as amarras da doença contagiante das vidas solitárias e sem perspectivas numa Tóquio futurista e fria.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Abraços Partidos)



Abraços Partidos

Está de volta o talento e o melhor estilo que consagrou Pedro Almodóvar com este brilhante Abraços Partidos, última realização deste genial cineasta espanhol, que estava devendo um grande filme; ou melhor, dois filmes, pois realizou um dentro do outro, com todo seu charme, elegância e irreverência, que lembra o inesquecível Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), não pela semelhança, mas pela estética e pelos desdobramentos.

Se em Volver (2006), a atriz Penélope Cruz já encantara, agora como Lena arrasa e seu brilho contagia, envolvendo e dando um clímax que só Almodóvar sabe dosar com sua qualidade indiscutível, como conduzir um elenco de estrelas e em especial uma diva como Penélope, bem como o duplo papel de cineasta como Mateo Blanco e Harry Caine (Lluís Homar, em grande desempenho, convence como cego), a amiga do diretor Judit (Blanca Portillo), seu filho (Tamar Novas), o empresário Ernesto Martel (José Luís Gomez), ainda Lola Dueñas, Rossy de Palma e Chus Lamprave.

O longa trata de um filme que será rodado com o patrocínio do empresário Martel, porém sua esposa Lena envolve-se amorosamente com o diretor, causando uma reviravolta espantosa e intrigante numa obsessiva perseguição, com direito a filmagens no melhor estilo de detetive particular, realizado pelo filho problemático com o pai, diante de sua condição sexual, o que revolta e atormenta o empresário. Há a volta ao passado, 14 anos depois do acidente na ilha de Lanzarote, na Espanha, o que faz renascer pelas lembranças todos os momentos especiais maravilhosos da grande paixão que já não está mais ao seu lado, mas a vida e o senso profissional está acima e deve ser levado em frente, custe o que custar. Nada é desprezível, as cenas vão se juntando como um teorema para elucidar o problema proposto.

Há amores contidos e revelações, entre as quais de paternidade, romance desfeito, todas surpreendentes e inimagináveis, com todo estilo almodovarianos se fazendo presente, como na cores fortes com predomínio vermelho e listrados e xadrezes gritantes, mas sem agressão visual, num estilo típico e marca registrada de Almodóvar. O enredo se mistura entre a ficção imaginária e a ficção que se desenrola, misturando-se as obras e a busca da remontagem do filme pretendido, diante da tragédia pessoal de sua visão e a perda da musa, leva para um desfecho memorável.

É difícil dizer o que mais cativa no filme; se as interpretações, a mistura de filmes, o roteiro, o cenário, a fotografia, ou se tudo mesclado, com uma direção inventiva, sem preconceitos, deixando fluir as amarguras pelas imagens desfilando com sutileza e clarividência, relatando os dramas pessoais, as fraquezas e as vicissitudes. Tudo isso colocado na cabeça e nas mãos de Almodóvar acarreta nesta película imperdível e digna de se candidatar como uma das melhores, podendo chegar ao topo como a melhor da 33ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Pode não ser o melhor, embora beire à obra-prima, mas é indiscutivelmente uma renovação com fôlego deste cineasta incansável no seu método de abordar questões polêmicas.

Mostra de Cinema São Paulo (À Procura de Elly)



À Procura de Elly

O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade e reflexão filosófica, cultura e política neste belo filme À Procura de Elly, dirigido pelo jovem cineasta Asghar Farhadi, já abocanhando o prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Diga-se de passagem que foi merecido, diante do notável elenco, enredo forte com um enlace magistral de dramaticidade, misturado ao clássico suspense, com tons homeopáticos precisos de comicidade, diante de uma contida tragicidade, culminando com o inusitado de um drama familiar e de amigos no Mar Cáspio no Irã.

O longa-metragem retrata Ahmad voltando da Alemanha para sua terra natal e sua amiga Sepideh organiza uma espécie de piquenique às margens do litoral iraniano, convidando uma estranha ao grupo, a professora de sua filha, de nome Elly, sem avisar os familiares e amigos, mas com o intuito de apresentá-la ao amigo que volta ao País, depois de um frustrado casamento com uma alemã, pretende recomeçar sua vida com uma nativa. A apresentação parece dar certo, mas o suspense e todo o drama começa com o desaparecimento de Elly. Teria morrido no mar ou fugira do noivo obsessivo que a adora mas sem a correspondência adequada? Há uma mãe que não pode saber, pois é cardíaca, a polícia sequer consegue obter todo o nome da professora desaparecida.

As cenas das crianças sendo treinadas para mentir são impagáveis, assim como o garoto deixando fluir toda sua espontaneidade de criança que não sabe enrolar. O noivo neurótico traz uma carga emocional, silenciando e contraindo todo os amigos que buscam uma saída honrosa, metáfora de um governo repressor que está encurralado pela verdade que aflora e se impõe.

O jogo de palavras e a busca de um culpado pelo inusitado são fatores marcantes na película. O tom alegre de festa cede espaço para a desarmonia e o pânico instalado entre os personagens pelas circunstâncias e pelas vaidades. O choque cultural de um iraniano com passagem pela Alemanha fica evidente, assim como a mulher sempre em plano inferior ao homem tipifica e não deixa dúvidas de que há uma sociedade governamental naquele País dirigida pelo sexo masculino sem a anuência feminina, fadada a obedecer sem limites.

Eis um filme com todos os ingredientes para que se possa admirar cada vez mais a denúncia de uma arte que se sustenta numa civilização decadente, onde um povo sofre todas as amarguras impostas de uma censura de cima para baixo. Torna-se marcante pela beleza das palavras e frases com todas as alegrias e tristezas, num emaranhado típico de uma burocracia como Kafka já alertara e denunciara na sua obra sempre revigorada e presente.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Hotel Atlântico)



















Hotel Atlântico

Dá até para dizer que Suzana Amaral é o nosso Manoel Oliveira, o longevo centenário diretor português. A cineasta brasileira que estreou na direção do longa que arrebatou o prêmio Urso de Prata para a atriz Marcélia Cartaxo, no Festival de Berlim, em 1986, com A Hora da Estrela (1985), está de volta e com todo o fôlego que Deus lhe deu, com este magnífico Hotel Atlântico, seu terceiro longa, transposto do livro do gaúcho João Gilberto Noll. Dirigiu ainda Uma Vida em Segredo (2000).

A película retrata um ator desempregado- talvez o único erro de Suzana, ao convidar para o papel o insosso e intragável Júlio Andrade-, com todas as frustrações possíveis, que decide viajar sem destino, característico dos personagens de João Gilberto Noll, escritor dos excluídos, marginalizados de uma sociedade repressora, bem como de pessoas confusa e pessimistas, oriundas de um sistema centralizador. O ator encontra no ônibus uma mulher misteriosa que o destino lhe coloca ao lado na poltrona, com a morte rondando e à espreita, num prenúncio de maus agouros que advirão.

As situações inesperadas como a morte que ronda sua passagem de um Estado para outro, os amigos que contraditoriamente querem matá-lo, mesmo com a inverossimilhança aparente dos personagens que lhe aparecem, há a superação envolta ao bizarrismo como assumir o papel de padre numa localidade que a ausência é uma constante e o passeio pela cidade com o respeito da comunidade. Os dias sempre sombrios sem a presença do sol indicam as adversidades e os desafios do ser humano. Outro fator marcante são as cenas abertas sem fechamento de questão, deixando a inteligência do público desenvolver a continuidade, passando do abstrato para o concreto e do imaginário para a realidade.

Há a suspeição sem sentido que aflora e o coloca num mundo perverso e violento, como a inesperada acusação e o mutilamento inexplicável na sua vida. Sua tragédia pessoal, faz conhecer um enfermeiro -o sempre talentoso João Miguel- que nunca conheceu o mar e vê sua grande oportunidade de fugir do hospital para realizar seu sonho contido e represado. Destaque também para Gero Camilo como o sacristão epilético e Mariana Ximenes a como a filha mimada de um poderoso candidato a prefeito.

A cena final do enfermeiro com o ator nos braços é comovente e revelador, como confessa a diretora no debate ao final da sessão, ao colocar seu otimismo para uma vitória pessoal diante da tragicidade, afastando o pragmatismo derrotista do texto original, para amenizar com o dedo de Suzana um mundo de perspectiva mínima embalada pela fantasia infantil da ingenuidade e a vontade de viver e ter uma dignidade que teima em ficar longe. A Mostra de São Paulo se enriquece com o talento e a soberba direção de uma cineasta que deveria se expor mais, pois sua jovialidade intelectual resplandece na beleza encantadora que lhe é peculiar.

Mostra de Cinema São Paulo (Ervas Daninhas)

















Ervas Daninhas

Desta vez o velho mestre Alains Resnais, com seus 87 anos de idade bem vividos, erra feio a mão com Ervas Daninhas. Um filme menor e longe da genialidade peculiar deste excepcional diretor francês do recente e maravilhoso Medos Privados em Lugares Públicos (2007), do notável Amores Parisienses (1997),do ótimo Beijo na Boca, Não (2003), e dos clássicos de outrora consagrados como obras-primas O Ano Passado em Marienbad (1961) e Hiroshima Meu Amor (1959).

Já em Medos Privados a paixão na terceira idade era o mote com um aprofundamento tocante e sensível, tendo um desenlace formidável. Agora com Ervas Daninhas o tiro saiu pela culatra e o longa mais parecia um enredo de novela mexicana, com direito a choro e dores de juventude frustrados com desenlaces perpetrados pela esposa e pela paixão recente como formas de equilíbrio de uma vida voltada para a aviação. Mesmo que a comicidade tenha se misturado com uma poesia mínima e sem sentido, por um sonho do personagem que se altera com doses de fragilidade e falta de eloquência, contrasta com uma fotografia magnífica.

A película traça um paralelo entre o inusitado e o destino, como que o acaso de uma bolsa roubada, vindo a carteira parar embaixo do pneu do carro daquele que nem sonha que esta pessoa mudaria os rumos de sua vida e o sonho acalantado iria tornar-se uma realidade divina, como o toque do salto do belo par de sapatos tocando lentamente na chão, abrindo caminho para a imaginação e os devaneios masculinos.
Resnais sabe escolher um elenco, isso não se discute, pois Mathieu Amalric está convincente na pele do policial, assim como o veterano sedutor e sonhador está perfeito André Dussolier, a jovem e bonita dentista como Emmanuelle Devos, Marguerite como a musa inspiradora está representada por Sabine Azéma e a esposa na interpretação de Anne Consigny, todos com boas atuações.

O longa se perde ao tentar explicar os rumos de um personagem que por si só se manteria e daria uma sustentação com embasamento e eficácia, mas que prolonga-se por demais, falta uma montagem mais enxuta e que poderia salvar o filme desta situação constrangedora que é o anacronismo de um roteiro. A cena do encontro no bar, por exemplo, logo após o encontro na saída da sala de cinema poderia ser um marco final, deixaria em aberto o restante da narrativa, mas a voracidade de um montagem com previsão de um desnecessário prolongamento, praticamente liquida um filme que começou bem e finaliza de forma melancólica.

Outro fator negativo foi o constante desfile de uma marca famosa de automóvel francesa, apresentando todos os seus modelos e lançamentos de mercado. Isso não é merchandising, é propaganda pura e que agride ao espectador que foi ver um filme e não uma mostra como se fosse uma feira internacional do automóvel. Lamentável em todos os sentidos, e que o velho mestre se redima na próxima.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Bollywood Dream)




















Bollywood Dream - O Sonho Bollywoodiano

Depois de O Caminho das Índias, novela que alavancou e divulgou a cultura e os costumes do povo indiano no Brasil, chegou a vez do cinema nacional dar sua contribuição tupiniquim com Bollywood Dream- O Sonho Bollywoodiano, dirigido por Beatriz Seigner, com um orçamento de US$20 mil, teve estreia neste sábado último na 33ª. Mostra de São Paulo, tendo no elenco a bela Paula Braum (Cheiro do Ralo), Lorena Lobato e Nataly Cabanas.

A diretora pega a carona do premiadíssimo Quem Quer Ser Um Milionário?, de Danny Boile, ganhador do último Oscar como melhor filme, porém a produção esquece do enredo, roteiro, montagem, fotografia, e o longa desanda, tornando-se uma decepção total para a plateia seleta que assistia estarrecida com a ruindade - para não dizer mediocridade -, desta frustrada tentativa brasileira/boolywoodiana.

A incursão de três atrizes pelos cafundós e becos da Índia, torna-se uma tortura para o espectador ter que assistir algo tão insosso, insalubre, inodoro e incolor. Sobrou até para a legenda, que entre tantos erros crassos, passou na tela por diversas vezes a palavra licença como "lisensa". Inacreditável que isso aconteça em pleno século XXI, com uma produção que se não teve maiores recursos poderia ter um cuidado melhor. Até parecia aquela música célebre do Zeca Pagodinho Deixa a Vida me Levar.

Há alguma similitude com outro filme de pouca verba e direção quase amadora, como A Bruxa de Blair (1999), que se destacou mais pelo inusitado do que pelas suas qualidades deficitárias e lamentáveis. Será que vai virar moda: ligue a câmera e deixa captar o que vem por aí, como ruelas, esgotos, crianças sujas, pessoas se lamentando da vida, rios imundos, cidade poluída, falta emprego, e vai mostrando e não mostrando, pois o ritmo desacelera, anda e para.

Cabe gizar que cinema não é só isso, faltou praticamente tudo no longa de Beatriz Seigner, que demonstrou garra e muita fibra para levar adiante seu projeto, mas parece que estava sozinha e sem apoio, com uma paupérrima equipe de produção. Um filme desastroso pelo conjunto e pela estética, sem emoção, conteúdo, arrastado, sem uma proposta razoável, sucumbe e torra uma ideia que poderia ser melhor elaborada e planejada.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aquele Querido Mês de Agosto

















Imaginário Português

Ao se falar em cinema de Portugal, logo se pensa em Manoel Oliveira, talvez o maior diretor da história daquele país. Porém, há outras cabeças pensantes e com grande imaginação cinematográfica, como por exemplo Miguel Gomes, com seus 37 anos, que já realizara o inédito no Brasil A Cara que Mereces (2004), pois agora recebe os aplausos dos críticos especializados nos principais países do mundo com o magnífico Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com suas duas horas e meia de duração, recebeu inclusive o prêmio da crítica na Mostra de São Paulo da última edição.

O longa foi filmado em Argamil, na região central de Portugal, distante 50 quilômetros de Coimbra, apresenta inicialmente um país não globalizado, em que o mês de agosto é marcado pelas festas típicas nos bucólicos lugarejos entre a serra e o interior, com seus grupos musicais tradicionais e folcróricos nos festivais de verão daquela região. Num misto de documentário e ficção, busca uma banda que aceite ser filmada em suas atividades e apresentações, surge como por acaso um inusitado triângulo das relações afetivas entre um pai, sua filha e o primo da menina, integrantes de uma banda folclórica portuguesa.

O próprio cineasta confirma que nem ele sabia o que queria, quase termina seu sonho de rodar um filme, pois apenas tinha um roteiro escrito na mão, mas sem incentivos ou patrocínios, sem verba para pagar uma produção especializada e de renome, coloca sua equipe de amadores para trabalhar com câmeras portáteis digitais. As pessoas da região acabaram virando atores como personagens de seus dramas pessoais. Sobrou também para o diretor de produção do Aquele Querido Mês de Agosto escalado para ser o ser o pai na trama, virar uma revelação como tecladista da banda dentro do filme e o assistente do realizador tornar-se o baixista. Outra vez há a inversão de papéis na mistura do realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos da ficção passando pelo documentário e vice-versa.

O longa é dividido em duas partes, sendo que a primeira segue uma linha documental, entrevistando moradores com histórias e situações típicas para contar, registrando tudo aquilo que achava interessante, na busca de um personagem central, captação de sons e as belas imagens da região serrana com seus locais pitorescos. É bem ilustrado na cena do ataque fulminante de uma raposa a um galinheiro no início da película, já revela sua intenção metafórica da invasão de desconhecidos e predadores a um universo calmo e inofensivo. O diretor busca na banda sonora a sua essência, refutando que seja por causa das canções, pois o som não é dependente da imagem, busca incansavelmente a pessoalidade e não o experimentalismo, embora haja e esteja implícita a renovação.

A segunda parte do filme é a ficção imaginada e tão sonhada por Miguel Gomes, tendo seu roteiro original virado uma realidade. Ainda assim, é quase que impossível se saber o que é real ou imaginário; se foi encenado ou se surgiu circunstancialmente, como dois singelos moradores conversando sobre suas experiências de atores amadores e as possíveis repercussões que advirão; se faz parte do enredo ou se foi adicionado por intuição quebrando os paradigmas da formalidade.

Esta mescla com suas complexidades lembra em muito o admirável Nashville (1975), de Robert Altmann, que tinha como palco vários acontecimentos durante a Guerra do Vietnã, abordando a contestação política internacional, os movimentos hippies e os assassinatos políticos que abalaram os EUA. Bem antes e como pioneiro surgiu nos anos 30 Jean Renoir, e após Pier Paolo Pasolini na década de 60, ambos surgiram e criaram esta bela escola de filmes complexos e de enigmática classificação do gênero.

É um longa-metragem que fundamentalmente gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares de uma região, com seus belos fados portugueses e suas idiossincrasias regionais. Pode não ser um filme fácil, diante das aleatoriedades inerentes à produção, mas com um pouco de paciência e o espírito aberto e leve para novo e o descompromisso com a formalidade, tudo poderá se simplificar. O melhor é se deixar levar pelos truques surpreendentes e absorver esta obra-prima lusitana de estética remodelada, com sua tradição e os conflitos pessoais surgidos no enredo.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Bastardos Inglórios












Falsidade Gloriosa

Quentin Tarantino em sua última frase do longa diz, pela boca do tenente "caçador de nazistas" Aldo "O Apache" Raine (Brad Pitt): "acho que essa é a minha obra-prima". Nada a contestar, pois não é que é mesmo. O diretor que anteriormente já brilhara em Cães de Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994), Kill Bill- volume 1 (2003) e Kill Bill- volume 2 (2004), entre tantas outras realizações, embora com muitas restrições pela facilidade da violência, desta vez arrasa com Bastardos Inglórios, sua obra máxima.

Um filme sarcástico e recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família no rosto da judia-francesa disfarçada Shosanna (Mélanie Laurent) que fugira das garras do tenente-coronel Hans Landa (Chistoph Waltz), na pele de um nazista implacável de "caçador de judeus", que tem na atuação deste ator austríaco uma grandeza de absoluta precisão em seu comportamento e no jogo de palavras, tanto nas perguntas como nas aparições impecáveis, acaba roubando literalmente o filme pela sua extraordinária atuação que lhe garantiu o prêmio de melhor ator do Festival de Cannes.

Tarantino é um diretor irrequieto e inesgotável com seu notável senso de deboche. Diverte-se com os nazistas ao criar uma espécie de fábula moderna colocando os judeus como seres dominadores. Pode parecer uma falsidade, mas o que interessa é a gloriosa vitória, com o escalpelar de couro dos soldados alemães, pela unidade voluntária de soldados judeus aterrorizando os soldados nazistas, sob o comando do tenente Aldo, relembra outro excelente filme com atuação impecável de Bradd Pitt em Queime Depois de Ler (2008), dos irmãos Joel e Ethan Coen.

A explosão do cinema lotado de nazistas, exterminando todo o seu comando é impagável. A fumaça que constrói o rosto de Shosanna, lembra como metáfora os judeus sendo queimados nos fornos e chuveiros à gás nos campos de concentração. O negro como autor da façanha, logo após beijar a linda judia, consagra a raça tão marginalizada. É a redenção afro em conluio com a raça judia, tão pisoteada pelo "Führer". O fim do nazismo é um sonho tanto para as vítimas como para o próprio povo alemão contrário as barbáries. A ingenuidade, no final da película, do tenente-coronel Landa, demonstra toda a estupidez e burrice pela imbecilidade da operação ocorrida na França, em 1941, quando da ocupação nazista.

O filme é composto por cenas (atos), como ocorre numa ópera bufa, que busca na verdade indecifrável de uma mentira que se estampa no rosto do Ministro da Propaganda da Alemanha Joseph Goebbels, com dotes de uma retórica que exortava o povo alemão para aderir ao nazismo. Pregador da mentira repetida que se tornaria uma verdade. Goebbels é ironizado e esculhambado por Tarantino, bem como Adolf Hitler vira um personagem caricato e ridículo com seu bigodinho literalmente bagunçado e desalinhado, contrariando os filmes de clichê, exceto claro do memorável personagem "Carlitos" de Charles Chaplin.

Já na cena inicial do pai fazendeiro (Denis Menochet) cortando lenha na bela e aprazível morada entrecortada pelas montanhas com campos verdejantes e vacas espalhadas pela imensidão bucólica, na companhia de suas filhas, tem sua residência tumultuada pela caça a pessoas de outra raça, há na bela canção da trilha sonora de Ennio Morricone, a lembrança dos antigos faroestes de Sérgio Leone e John Ford, prenunciando uma situação incômoda e perigosa. Outra cena que remete para os grandes bangue-bangues é a protagonizada no bar, onde há uma trapalhada da figura da linda loira fatal como estrela de cinema Bridger von Hammersmark (Diane Kruger).

O cineasta ensina plasticamente como se faz um filme inteligente, pela astúcia como se fosse um jogo de xadrez que propõe nos atos enumerados, tanto pelos comandos nazistas como dos conspiradores judeus, como se fosse um sistema de governo apodrecido pela falta de sustentação programática. Ninguém fica impune, mesmo com seu tradicional banho de sangue, dilaceramento de corpos, escalpelamentos, cabeças cortadas e as explosões de incêndio, não há sequer uma cena de agressão à plateia, que responde sempre com sorrisos lânguidos e às vezes pelo silêncio da expectativa da próxima cena.

Uma magistral obra de um cultuado diretor com um histórico de violência explícita, mas que se redime das cenas gratuitas e desnecessárias; obtendo pela harmonia do riso com o suspense, do drama com a comédia, do inverossímil herói de guerra nazista e protagonista do filme marco dos alemães, tal qual Rambo nos filmes americanos contrapondo com o medo da pedida de um inofensivo copo de leite, atemorizando todos os espectadores. Por isso é seu filme maior pela superioridade aos demais antecessores, pois ao enveredar para um inusitado spaguetti-western consegue se inserir entre os grandes desafios de sua carreira, avançando para uma maturidade artística, com este soco divertido e falso, porém eloquente na história conhecida do holocausto e da II Guerra Mundial, quase sempre contada de maneira politicamente correta.

O diretor ao desafiar a história e fazer seu julgamento próprio, como se fosse de todas as vítimas, conta de maneira corrosiva, numa sequência espetacular, refutando tudo aquilo que se conhece pelos bancos escolares ou pelos livros de história, através de um roteiro esteticamente perfeito e de uma memorável situação de pessoas que pela tolice tornaram-se irracionais, escrachadas ao extremo pelas suas preferências raciais, lava a alma até do mais distraído cinéfilo ainda confuso pela variedade da irreverência e da criatividade espantosa desencadeada por um cinema abundante de verdades e mentiras de um delírio salutar.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Anticristo

















Exorcismo dos Fantasmas

Lars von Trier ingressa definitivamente na categoria de gênio com o filme Anticristo, após sua passagem de grande diretor e criador do movimento Dogma 95, em parceria com Thomas Vinterberg, no mês de março de 1995, em Copenhague, capital da Dinamarca. O Dogma 95 nada mais é do que um manifesto cinematográfico internacional, lançado no centenário de nascimento da sétima arte, a partir de uma publicação com 10 regras de ética e valores, também conhecido como voto de castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood, caso aprovado pelos seus membros, recebe o Certificado Dogma 95.

Von Trier inova com Os Idiotas (1996), primeiro filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), com prêmio de melhor atriz e Palma de Ouro em Cannes de melhor filme. Solidifica seu talento e consagra o Dogma 95 com o excelente Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem artifícios e pirotecnias, mantendo o padrão da filmagem em 35 mm, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Já no filme Cada um com seu Cinema (2007), onde vários cineastas dirigem, no episódio de von Trier há a morte de um crítico por golpes de picareta na cabeça, durante a exibição de um filme, onde a vítima não para nunca de falar e comentar. O Dogma 95 foi a mais inventiva escola, depois do celebrizado Nouvelle Vague, movimento contestatório de jovens autores unidos por uma vontade de transgredir as regras consideradas normais para o cinema comercial, foi batizado por François Giroud, em 1958, na revista Lexpress, que teve como seus maiores expoentes Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer, Alain Resnais e Jaques Rivette. Grande parte destes cineastas eram críticos da revista Cahiers du cinéma.

Sem sombra de dúvidas, Anticristo é sua realização máxima, a obra-prima do gênero terror que faltava na filmografia deste soberbo diretor canadense, que chuta o balde de seu movimento anterior e parte para o cinema fantástico, com dosagens intercaladas de drama e suspense, mergulhando no inconsciente humano. O filme tem uma trilha sonora invejável, especialmente pela música magistral do prólogo e do epílogo, com os acordes lembrando uma celebração numa igreja, é a ária Lascia Ch'io Pianga, da ópera de Rinaldo, escrita por Handel.

"A natureza á e a igreja de Satanás" vem da boca da mãe (Charlotte Gainsbourg- melhor atriz no Festival de Cannes, esta ingresa arrasou no seu papel) prenuncia seu estado iminente de uma loucura já latente. A morte do filho a deixa em estado apoplético. Seu marido terapeuta (Willem Dafoe) tenta em vão com sessões de hipnose fazer um retorno ao passado. De volta à cabana pela floresta; primeiro pela regressão, após, pouco a pouco, os personagens voltam a desfilar para exorcizarem seus fantasmas que pululam a mente daquela mulher traumatizada pelo caos do sinistro que a vida reservou-lhe. O casal não se perdoa pelo acidente fatal do filho único, quando praticavam sexo no anoitecer, embora a fatalidade estivesse presente, há o complexo de culpa maternal. A cena da floresta filmada em dois estados, na regressão e na sobriedade, novamente nos remete para seus filmes anteriores, como Dogville e Manderlay, pelos seus segredos e surpresas oriundas deste universo inesgotável do medo e da irracionalidade.

Na morte da criança em câmara lenta, o diretor segue a escola do genial cineasta americano Sam Peckimpah, morto em 1984, no México, por um ataque do coração. Peckimpah era chamado pela crítica conservadora de "poeta da violência", pelo seu modo peculiar de filmar cenas violentas em slow motion, embora sempre dentro de um contexto estético. Era considerado equivocado para os analistas ortodoxos, mas antológicos para os liberais que entendiam como licença poética de filmar. Mesmo contestado, notabilizou-se como um referencial na arte de produzir e encarar a morte com suas nuanças nos pequenos e mínimos detalhes. Entre estes filmes estavam Meu Ódio Será Sua Herança (1969), Pistoleiros do Entardecer (1962), Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974) e Pat Garret & Billy The Kid (1973).

Anticristo aborda as loucuras da mente, através da evolução gradual dos transtornos de ansiedade para uma fulminante e progressiva síndrome do pânico que estão presentes na mãe. Sua obsessão pelo filho morto tragicamente conflitua como um paradoxo pela paixão nutrida pelo marido, levando-a ao êxtase dos demônios que dominam seu estado decadente da lucidez. As cenas que mostram as bolas de carvalho caindo sobre o telhado da cabana, soam como um aviso preliminar do inferno astral que está para se consolidar entre aqueles dois seres estraçalhados pela dor da perda. Outro momento assustador é o choro convulsivo da criança que começa pelo sótão e se espalha no horizonte, invadindo a mata e o céu. Também as cenas do nascimento do pássaro e do filhote de veado chocam pelo inusitado da surpresa. Há uma referência clara e manifesta ao filme O Iluminado (1980) do não menos genial Stanley Kublick.

Porém, nada se compara com a cena da mãe nua como a natureza, em posição fetal no vestíbulo da casa, prostrada ao lado dos animais selvagens que vão chegando vagarosamente e deitando-se ao seu lado, com olhos atônitos e perturbadores, como num quadro de Pablo Picasso, deverá entrar para a galeria da antologia cinematográfica. Deslumbra-se os horrores do subconsciente invadindo a mente perturbada de um ser humano, deixando aflorar e danificar seu estado normal e anímico. As cenas tórridas de sexo explícito se confundem com o estado desolador de um metabolismo que flutua no cérebro humano como algo irracional, tal qual os animais que circulam e invadem o universo do casal, refugiados do interior da floresta, bem como o amor doentio entre duas pessoas, relembram pela ousadia o clássico japonês Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima. Mas as cenas de mutilação do órgão genital da mulher e da perfuração da perna do homem, cruel e sangrenta, nos remete para as lembranças e tormentas de grandiloquência frenética da escola exuberante de David Linch, como nos filmes Veludo Azul (1986) e Império dos Sonhos (2006).

O diretor confessa que ao dirigir Anticristo passava por uma depressão profunda e realizar este tipo de filme era uma prova de que podia e ainda estava vivo, pois não conseguia trabalhar e assim superou sua crise como se fosse um tipo de terapia. A lucidez de von Trier se insere e passeia mansamente pela loucura e os devaneios do infinito da alma e da razão provinda do cérebro em ebulição. Ninguém fica sem opinião sobre seus filmes. Pode-se detestar ou adorar Anticristo, porém não passará incólume, pois o ódio e a raiva estão bem próximos da fronteira do amor e da paixão, que nutrem os aficionados cinéfilos pela obra deste consagrado diretor, que desafia boa parte de críticos e cineastas que dizem e proclamam a decadência e a finitide do cinema. Esta película é fruto da inteligência de um grande mestre e assistir com isenção é quase que uma obrigação para os apreciadores da inovação e o mergulho no âmago de um filme que não se rende ao convencionalismo.

Acusado de misogia, dascabe tal afirmação equivocada, pois na verdade a ideia proposta no filme é o degradante sofrimento humano, bem caracterizado em sua homenagem nos créditos ao diretor russo falecido Andrei Tarkovsky, autor do estupendo O Sacrifício, que remonta e nos coloca toda a dor e o dilaceramento de uma pessoa próxima à morte.

Ao chegar no epílogo, parece que o diretor se trairá e o final será convencional, mas somente um von Trier para provocar ainda mais a bela paisagem bucólica, com criaturas brotadas das trevas, vêm desafiar o obscurantismo dos privados da luz divina e obcecados pela morte, num final digno esperado de um mestre. Solta-se o fôlego somente quando todas as luzes iluminam a tela, afastando definitivamente mais surpresas. Agora os espectadores que soltaram alguns gritos e sussurros na plateia- parafraseando o inesquecível Ingmar Bergman- já podem se tranquilizar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

À Deriva



Fragmentos de um Casamento

Uma relação fragmentada como cacos de vidro é o núcleo principal deste ótimo À Deriva, que dá mostra do ocaso pelas fragilidade já na primeira cena. Mathias, interpretado pelo insosso ator francês Vincet Cassel, trai Clarice (Debora Bloch), ao receptar o bife, na ânsia de proteger a filha. Surge a primeira metáfora do fim do casamento. Mathias é um escritor com dificuldades de terminar e comercializar seu romance, conta a história de uma mulher que trai o marido com um jovem 10 anos mais jovem.

O diretor Heitor Dhalia tem na sutileza e na imprevisibilidade como marca de suas qualidades, como já o fizera em seus filmes anteriores Nina (2004) e O Cheiro do Ralo (2006). Há uma homenagem a Ingmar Bergman, principalmente pela obra-prima do diretor sueco, Cenas de Um Casamento. Sua influência é notória e seu gosto bem apurado, pois buscou no mestre da alma suas inspiração maior. Há referência também a outro artesão das palavras e das cenas envolventes Robert Altman por Cerimônia de Casamento (1978). Um discípulo com todo vigor e merece e atinge neste filme À Deriva toda sua supremacia, arrojo e despojamento de um cineasta voltado para a profundidade, refutando obras de apelo fácil.

A película retrata a dor da separação e o sofrimento dos três filhos, em especial Felipa (Laura Neiva), uma adolescente de 14 anos -ao melhor estilo da inesquecível ninfeta Lolita, consagrada pelo festejado escritor russo Vladimir Nabokov- que começa a sentir o desabrochar de sua sexualidade, bem como os problemas emocionais aflorarem com o conflito de relacionamento dos pais. Procura a culpa no pai que se relaciona com a exuberante Ângela (Camilla Belle), não entendendo o que está se passando, do porquê das aventuras fora do casamento. Não há culpados, pois a fidelidade entre pai e mãe se esgotou, fundindo-se em perda irreparável. Resta uma união sobre areia movediça num pântano escuro e em desequilíbrio com a natureza, que está se diluindo e a finitude é iminente. Um microcosmo de uma crise de integrantes de uma família que está vivendo seus últimos dias sob o mesmo teto, com seus enigmas e retratos de sentimentos na tenaz busca de soluções.

Na paradisíaca praia de Búzios está o casal em atrito, na busca de férias e a solução para o impasse, entre os rochedos do mar que formam um belo cenário, que encanta pela sua plasticidade. No alto do morro está fincado um bangalô onde mora Ângela. Ali os fantasmas de Felipa irão se materializar e a conduzirá para as descobertas e revelações do passado em sintonia com as luzes do futuro se produzirão de forma encantadora, embora com inafastável ressentimento.

O longa traz uma reflexão da atmosfera de uma relacionamento desgastado pelo tempo, conduzindo para a abordagem de valores e transtornos invocados por Camila, ao afirmar que Mathias é uma pessoa complicada e complexa como seus personagens, prenunciam e indicam para o rompimento formal e definitivo de uma sociedade conjugal que já não mais existe. O final de pai e filha juntos mergulhando nas águas turvas de um mar revolto, com a finalidade metafórica da purificação, vai ao encontro da reconstrução familiar. Antes, já houvera o acidente do carro com a morte alegórica do cavalo, vem revelar o fim e o início de uma nova união, com a guinada implícita para a vertente de vidas reconstruídas. Os estilhaços da dor entranhados na alma e no coração de Felipa começam a se dissipar para a redenção em consonância com a libertação das amarras envoltas aos pais.