quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Anticristo

















Exorcismo dos Fantasmas

Lars von Trier ingressa definitivamente na categoria de gênio com o filme Anticristo, após sua passagem de grande diretor e criador do movimento Dogma 95, em parceria com Thomas Vinterberg, no mês de março de 1995, em Copenhague, capital da Dinamarca. O Dogma 95 nada mais é do que um manifesto cinematográfico internacional, lançado no centenário de nascimento da sétima arte, a partir de uma publicação com 10 regras de ética e valores, também conhecido como voto de castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood, caso aprovado pelos seus membros, recebe o Certificado Dogma 95.

Von Trier inova com Os Idiotas (1996), primeiro filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), com prêmio de melhor atriz e Palma de Ouro em Cannes de melhor filme. Solidifica seu talento e consagra o Dogma 95 com o excelente Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem artifícios e pirotecnias, mantendo o padrão da filmagem em 35 mm, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Já no filme Cada um com seu Cinema (2007), onde vários cineastas dirigem, no episódio de von Trier há a morte de um crítico por golpes de picareta na cabeça, durante a exibição de um filme, onde a vítima não para nunca de falar e comentar. O Dogma 95 foi a mais inventiva escola, depois do celebrizado Nouvelle Vague, movimento contestatório de jovens autores unidos por uma vontade de transgredir as regras consideradas normais para o cinema comercial, foi batizado por François Giroud, em 1958, na revista Lexpress, que teve como seus maiores expoentes Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer, Alain Resnais e Jaques Rivette. Grande parte destes cineastas eram críticos da revista Cahiers du cinéma.

Sem sombra de dúvidas, Anticristo é sua realização máxima, a obra-prima do gênero terror que faltava na filmografia deste soberbo diretor canadense, que chuta o balde de seu movimento anterior e parte para o cinema fantástico, com dosagens intercaladas de drama e suspense, mergulhando no inconsciente humano. O filme tem uma trilha sonora invejável, especialmente pela música magistral do prólogo e do epílogo, com os acordes lembrando uma celebração numa igreja, é a ária Lascia Ch'io Pianga, da ópera de Rinaldo, escrita por Handel.

"A natureza á e a igreja de Satanás" vem da boca da mãe (Charlotte Gainsbourg- melhor atriz no Festival de Cannes, esta ingresa arrasou no seu papel) prenuncia seu estado iminente de uma loucura já latente. A morte do filho a deixa em estado apoplético. Seu marido terapeuta (Willem Dafoe) tenta em vão com sessões de hipnose fazer um retorno ao passado. De volta à cabana pela floresta; primeiro pela regressão, após, pouco a pouco, os personagens voltam a desfilar para exorcizarem seus fantasmas que pululam a mente daquela mulher traumatizada pelo caos do sinistro que a vida reservou-lhe. O casal não se perdoa pelo acidente fatal do filho único, quando praticavam sexo no anoitecer, embora a fatalidade estivesse presente, há o complexo de culpa maternal. A cena da floresta filmada em dois estados, na regressão e na sobriedade, novamente nos remete para seus filmes anteriores, como Dogville e Manderlay, pelos seus segredos e surpresas oriundas deste universo inesgotável do medo e da irracionalidade.

Na morte da criança em câmara lenta, o diretor segue a escola do genial cineasta americano Sam Peckimpah, morto em 1984, no México, por um ataque do coração. Peckimpah era chamado pela crítica conservadora de "poeta da violência", pelo seu modo peculiar de filmar cenas violentas em slow motion, embora sempre dentro de um contexto estético. Era considerado equivocado para os analistas ortodoxos, mas antológicos para os liberais que entendiam como licença poética de filmar. Mesmo contestado, notabilizou-se como um referencial na arte de produzir e encarar a morte com suas nuanças nos pequenos e mínimos detalhes. Entre estes filmes estavam Meu Ódio Será Sua Herança (1969), Pistoleiros do Entardecer (1962), Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974) e Pat Garret & Billy The Kid (1973).

Anticristo aborda as loucuras da mente, através da evolução gradual dos transtornos de ansiedade para uma fulminante e progressiva síndrome do pânico que estão presentes na mãe. Sua obsessão pelo filho morto tragicamente conflitua como um paradoxo pela paixão nutrida pelo marido, levando-a ao êxtase dos demônios que dominam seu estado decadente da lucidez. As cenas que mostram as bolas de carvalho caindo sobre o telhado da cabana, soam como um aviso preliminar do inferno astral que está para se consolidar entre aqueles dois seres estraçalhados pela dor da perda. Outro momento assustador é o choro convulsivo da criança que começa pelo sótão e se espalha no horizonte, invadindo a mata e o céu. Também as cenas do nascimento do pássaro e do filhote de veado chocam pelo inusitado da surpresa. Há uma referência clara e manifesta ao filme O Iluminado (1980) do não menos genial Stanley Kublick.

Porém, nada se compara com a cena da mãe nua como a natureza, em posição fetal no vestíbulo da casa, prostrada ao lado dos animais selvagens que vão chegando vagarosamente e deitando-se ao seu lado, com olhos atônitos e perturbadores, como num quadro de Pablo Picasso, deverá entrar para a galeria da antologia cinematográfica. Deslumbra-se os horrores do subconsciente invadindo a mente perturbada de um ser humano, deixando aflorar e danificar seu estado normal e anímico. As cenas tórridas de sexo explícito se confundem com o estado desolador de um metabolismo que flutua no cérebro humano como algo irracional, tal qual os animais que circulam e invadem o universo do casal, refugiados do interior da floresta, bem como o amor doentio entre duas pessoas, relembram pela ousadia o clássico japonês Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima. Mas as cenas de mutilação do órgão genital da mulher e da perfuração da perna do homem, cruel e sangrenta, nos remete para as lembranças e tormentas de grandiloquência frenética da escola exuberante de David Linch, como nos filmes Veludo Azul (1986) e Império dos Sonhos (2006).

O diretor confessa que ao dirigir Anticristo passava por uma depressão profunda e realizar este tipo de filme era uma prova de que podia e ainda estava vivo, pois não conseguia trabalhar e assim superou sua crise como se fosse um tipo de terapia. A lucidez de von Trier se insere e passeia mansamente pela loucura e os devaneios do infinito da alma e da razão provinda do cérebro em ebulição. Ninguém fica sem opinião sobre seus filmes. Pode-se detestar ou adorar Anticristo, porém não passará incólume, pois o ódio e a raiva estão bem próximos da fronteira do amor e da paixão, que nutrem os aficionados cinéfilos pela obra deste consagrado diretor, que desafia boa parte de críticos e cineastas que dizem e proclamam a decadência e a finitide do cinema. Esta película é fruto da inteligência de um grande mestre e assistir com isenção é quase que uma obrigação para os apreciadores da inovação e o mergulho no âmago de um filme que não se rende ao convencionalismo.

Acusado de misogia, dascabe tal afirmação equivocada, pois na verdade a ideia proposta no filme é o degradante sofrimento humano, bem caracterizado em sua homenagem nos créditos ao diretor russo falecido Andrei Tarkovsky, autor do estupendo O Sacrifício, que remonta e nos coloca toda a dor e o dilaceramento de uma pessoa próxima à morte.

Ao chegar no epílogo, parece que o diretor se trairá e o final será convencional, mas somente um von Trier para provocar ainda mais a bela paisagem bucólica, com criaturas brotadas das trevas, vêm desafiar o obscurantismo dos privados da luz divina e obcecados pela morte, num final digno esperado de um mestre. Solta-se o fôlego somente quando todas as luzes iluminam a tela, afastando definitivamente mais surpresas. Agora os espectadores que soltaram alguns gritos e sussurros na plateia- parafraseando o inesquecível Ingmar Bergman- já podem se tranquilizar.

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