Relações de Amizades
O cineasta catalão Cesc Gay é conhecido no Brasil pela instigante
comédia agridoce O Que os Homens Falam (2012),
através de um deslumbrante cenário das tomadas externas de Barcelona, num tom
cômico recheado de ironia, mas sem perder o intimismo profundo, ao abordar os
relatos sinceros de oito homens na crise da meia-idade, todos na faixa de 40 a 60 anos. Satirizava a existência do chamado sexo forte, ao
apresentar suas dificuldades contemporâneas, mas que reflete sobre as fraquezas
e os novos tempos do universo machista em extinção. Ricardo Darín
e Javier Cámara foram destaques no filme anterior e novamente fazem parceria
com o diretor espanhol, desta vez em Truman,
uma coprodução entre Espanha e Argentina, numa abordagem sensível sobre dois
amigos de infância separados há anos, que se encontram por um motivo especial:
a iminência da morte de um deles por um câncer terminal.
Premiado no Festival e Goya, o mais importante do cinema
hispano-americano, Truman obteve as
láureas de melhor filme, direção, ator (Darín), ator coadjuvante (Cámara) e
roteiro original. Também teve reconhecido o trabalho dos dois atores com
premiação no Festival de San Sebastián. O diretor e Tomas Aragay assinaram o
roteiro linear, porém perturbador de uma história com contornos dramáticos pela
delicadeza da temática e suas armadilhas, mas que jamais cai no melodrama
corriqueiro de outras realizações similares. Ganha força narrativa por Darín, em
atuação estupenda como Julián, um argentino radicado em Madrid que atua em
teatro e recebe a visita de Tomás, pelo excelente Cámara, no papel de um amigo
de infância que mora no Canadá, deixando lá esposa e filhos para tentar
dissuadi-lo da decisão de interromper o tratamento quimioterápico. Para isto
conta com a ajuda da prima do convalescente, Paula (Dolores Fonzi), um amor
antigo da juventude. A alegação do enfermo é de que a metástase invadiu outros
órgãos de seu corpo para “fazer turismo”, de que nada valeria o esforço para
ganhar mais alguns dias de sobrevida, pois dá mais importância para um final
com uma qualidade de vida sem os estragos dos efeitos colaterais.
Cesc Gay sabe dar o ponto certo neste sombrio drama com
irônico tom cômico, ao lançar para o debate como subtema uma espécie de eutanásia
voluntária. O longa invoca uma notável reflexão sobre a morte, que apresenta um
desfecho da existência que dilacera dentro de um contexto de grande amizade com
seu velhinho fiel cão da raça Bulmastife, Truman, que empresta o nome ao título
(na vida real tinha o nome de Troilo e faleceu em meados de 2015). Julián
parece estar mais preocupado com o futuro do animal do que consigo mesmo. Para
isto, os dois inseparáveis amigos passam quatro dias juntos, lembram e
compartilham momentos emocionantes e cômicos dos velhos tempos e a grande vinculação
que se manteve com os anos, um fortíssimo elo de franqueza daquela amizade
masculina ao discutirem suas fragilidades, assim como o diretor fizera na
realização anterior. Não é somente o reencontro do último adeus, ali está
inserido o destino a ser dado ao inseparável cachorro grandalhão já alquebrado
pelo tempo, mas a intuição da separação iminente aguardada da forte relação com
seu dono. É dolorido ver uma pessoa pensando no fim, embora esteja ainda com as
rédeas nas mãos para retirar os véus dos bons costumes, tentando dar um tapa na
cara da morte no confronto com a vida, diante das emoções existenciais sobre o
progressivo epílogo do ser humano.
O cineasta aduz com clareza que seu longa “é um olhar sobre
a forma como reagimos ao inesperado, à dor e ao desconhecido. E é também um
filme sobre a amizade”. A solidariedade se faz presente na realização, como da
ex-esposa e do filho que mora em Amsterdã para estudos. O reencontro com o
rapaz e sua namorada em um bar para uma refeição é comovente e significativo
para ambos. Ninguém quer tocar no assunto pela dificuldade para encontrar as
palavras adequadas para aquele momento único. Ao fugirem do assunto, que será
revelado depois de forma circunstancial, fica evidente o quanto é delicado e
terrível tratar com lucidez o tabu do perecimento. É oferecido com equilíbrio
uma experiência tocante ao espectador, porém sem perder a graça dos bons
momentos que são proporcionados durante a trajetória do nascimento até o crepúsculo,
sempre bem acompanhado da bela trilha sonora, do cenário fascinante da
fotografia eficiente de Madrid e Amsterdã.
Diante da realidade existencial e o seu sentido com as
inerentes dificuldades, como a abordagem da morte, amizade e solidariedade, mas
mostrada com um elegante toque de classe, graça e ternura, o drama de tintas
cômicas mescladas com o desfecho inusitado, lança pitadas de soluções para uma
abordagem vigorosa sobre um tema mórbido, mas necessário e indispensável para
reflexão no cinema. Uma construção narrativa soberba, com clímax e anticlímax certeiros
para um mergulho nos subterfúgios da vida, com diálogos e olhares inoculadores
até a alma para extrair da dor e da angústia, alguns subsídios tênues da
corrosão do tempo implacável. Truman não
deixa dúvidas do ponto nevrálgico pretendido, ao apontar para o sentimento da melancólica
perda inevitável. Eis um magnífico retrato do fenecimento numa atmosfera densa,
mas humana pela solidariedade acima de tudo.