quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2015)















Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2015, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Winter Sleep (foto acima), de Nuri Bilge Ceylan;

02. Retorno à Ítaca, de Laurent Cantet;

03. Phoenix, de Christian Petzold;

04. A Lição, de Kristina Grozeva e Petar Valchanov;

05. Mia Madre, de Nanni Moretti;

06. Tristeza e Alegria, de Nils Malmros;

07.Mapas para as Estrelas, de David Cronenberg;

08. Sicário- Terra de Ninguém, de Denis Villeneuve;

09. A Pele de Vênus, de Roman Polanski;

10. Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Deephan- O Refúgio, de Jacques Audiard;
- Segunda Chance, de Susanne Bier;
- Ida, de Pawel Pawlikowski;
- Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert;
- Whiplash- Em Busca da Perfeição, de Damien Chazelle.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Eu Sou Ingrid Bergman
















Uma Diva Reverenciada

Um filme sobre a vida da bela e talentosa Ingrid Bergman, uma das mais premiadas atrizes da história do cinema, três vezes vencedora e outras oito indicações ao Oscar. Eu Sou Ingrid Bergman é dirigido pelo conterrâneo sueco Stig Björkman, que tem em sua filmografia Imagens do Playground (2009) e Mas o Cinema é Minha Amante (2010). Realizado como documentário intimista obteve um resultado além da expectativa, numa narrativa sensível, poética e reveladora que passeia pela conturbada trajetória da personagem-título, através de fatos verídicos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Lança um olhar breve de lembranças do passado, sem deixar de mostrar seus últimos dias já enferma do câncer, mas querendo atuar e relembrar os episódios marcantes de sua carreira, como na cena do depoimento orgulhoso do único filho homem.

O realizador utiliza materiais pessoais como diários íntimos da biografada, cartas enviadas às suas amigas e vídeos amadores. Traça com isenção todo o percurso pessoal e profissional da célebre atriz, incluindo seus diversos casamentos, entre eles com o cineasta Roberto Rossellini, quando se ofereceu para trabalhar com ele resultando numa grande paixão e três filhos, sendo a mais famosa Isabela Rossellini. A relação fria e controvertida com os filhos, o escândalo de adultério do primeiro marido, logo que veio de Estocolmo para os Estados Unidos a convite de David O. Selznik para fazer carreira em Hollywood. Suas andanças pela França, Inglaterra e Itália, num relato sobre os principais filmes como Intermezzo: Uma História de Amor (1939), Casablanca (1942), À Meia Luz (1944) -que rendeu o primeiro Oscar-, Quando Fala O Coração (1946) e Joana D’Arc (1948). Ficou afastada por muitos anos, retornou à indústria cinematográfica americana e abocanhou outra estatueta com Anastácia, A Princesa Esquecida (1956).

A narrativa tem depoimentos dos filhos que não demonstram amarguras, a começar pela filha mais velha, Pia, seguindo pelos outros irmãos; passa por depoimentos de atrizes consagradas como Liv Ullmann e Sigourney Weaver; ocupa espaços como se a própria protagonista efetuasse a leitura dos textos com boa dose de emoção, num tom ficcional com muito realismo das encenações bem representadas pela voz da personagem-narradora (Alicia Vikander), ajudado pelas imagens antigas em 8 mm, num tom agradável como de um sonho transcendental. Björkman tem um olhar maduro e equidistante para mostrar os fatos numa cronologia sem ser didática, mas que imprime boa velocidade num clímax certeiro sobre a vida de Ingrid Bergman (1915-1982), ao perder a mãe com 3 anos, sofre o impacto da morte do pai com14 anos, por quem nutria um grande amor e a herança da paixão pelo cinema. A trilha sonora é adequada ao clima nostálgico, cria-se uma atmosfera de reminiscências para as passagens da grande ascensão, alguns tropeços pelos caminhos como o boicote pelos estúdios, em que beirou o abandono da carreira, até chegar ao epílogo da existência.

Eu Sou Ingrid Bergman retrata as passagens que se sucedem, principalmente a determinação para lutar contra o conservadorismo de uma época para uma mulher que queria ser livre, imprimindo muita coragem para enfrentar as rígidas regras morais dos anos 1940 e 1950. Ressalte-se que não há pelo diretor o intuito de colocar julgamentos morais às atitudes da estrela. Transparece um relato mais afinado com os ideais feministas na defesa da mulher de espírito libertário, sem amarras, poucas raízes de vínculos afetivos maternais, na qual definia-se como “um pássaro migratório”, dona da escolha de seu destino, afirmava que: “não se arrependia de nada do que fizera, mas pelo que não fez”. Um belo tributo para uma atriz que estava bem à frente de seu tempo. Mas ao filmar os quatro filhos sem mágoas ou ressentimentos do passado da mãe, o cineasta retrata a fantasia decorrente da beleza de uma celebridade de espírito criativo e intenso, nesta reverência familiar para uma diva dedicada exclusivamente ao cinema como elementos de amor e paixão pela vida, e, pelo que fez, que se fundem como uma simbiose. Um filme sobre a trajetória de viver marcada por ensinamentos reflexivos e existenciais nada convencionais num passeio pela história do cinema e seu fascínio, como uma aula acoplada para os apreciadores mais devotados.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Mia Madre


A Dolorida Perda

O festejado Nanni Moretti flutua entre os dramas familiares e filmes políticos e sociais como O Crocodilo (2006), quando sobrou para o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão pelas críticas do diretor; questionou a escolha do papa em Habemus Papam (2011) com boa dose de humor e ironia fina, ao abordar a eleição do Sumo Pontífice realizada entre os cardeais, sendo escolhido o vacilante Melville, como já o fizera em A Missa Acabou (1985), ao satirizar a igreja através de um complicado padre na periferia de Roma. Mas sua obra maior talvez seja o premiado com a Palma de Ouro em Cannes, O Quarto do Filho (2001), sobre o drama de um psicanalista que reside e trabalha na cidade de Ancona, tem dois filhos, até que uma tragédia o transtorna completamente, ao deixar de acompanhar o filho à praia e nesse passeio o rapaz morre afogado.

Ganhador do Prêmio do Júri deste ano em Cannes, Mia Madre é o retorno às origens de abordagens profundas pela reflexão sobre a morte e a forte sensação da perda pelas lembranças do passado, bem como o que poderia ter feito e não fez para quem partiu, quase um remorso instintivo dos que ficaram, numa análise sincera e despojada das picuinhas que remanesceram da existência e sua complexidade, como no drama O Quarto do Filho. Moretti gosta de usar situações que vivenciou para incrementar suas realizações de cunho pessoal, assim fora em Caro Diário (1993) e Aprile (1998), agora retoma com o drama pelo qual passou durante as filmagens de Habemus Papan, quando faleceu sua mãe, também professora de latim, tal qual a personagem em questão deste seu último longa.

O cineasta andava mais focado nos filmes sobre as reivindicações sociais e a crítica corrosiva da política. Agora conseguiu com méritos de sobra abordar os dois temas prediletos de sua filmografia em Mia Madre. Margherita (Margherita Buy) é o alter ego admitido pelo próprio Moretti, uma diretora de cinema angustiada e em conflito com o trabalho paralelo que precisa lidar, diante de várias circunstâncias do cotidiano: recém saiu de um namoro que não deu certo com um colega, vem de uma separação em que a filha adolescente foi morar com pai e, ainda, tem a moléstia grave da mãe, Ada (Giulia Lazzarini), internada no hospital com o diagnóstico de irreversibilidade da doença. Mas a vida não pode parar, apesar dos infortúnios, inicia as filmagens de seu novo longa-metragem que mostra as reivindicações pela greve de trabalhadores numa fábrica, que será o personagem central pelo astro internacional Barry Hughins (John Turturro- perfeito na construção histriônica), um ator arrogante, narcisista, que não decora os textos e se acha o máximo como galã, mas que deixa fluir um humor leve para contrastar com a dor da trama principal.

Margherita pode contar apenas com o irmão, Giovanni (Moretti), um insatisfeito engenheiro demissionário prestes a largar tudo e se dedicar mais nos últimos dias que restam na companhia da mãe, pois ele é uma extensão da irmã sofrida e necessita passar uma certa tranquilidade para um momento tão delicado como a perda irreversível. Uma narrativa dolorida com flashbacks da relação mãe e filha, como a reveladora e chocante cena do automóvel de Ada sendo destruído contra a parede. Alterna com episódios do hospital e a tumultuada e tensa filmagem realizada pela protagonista que terá que enfrentar o luto, a solidão e as frustrações como mulher, também encontrados no ótimo documentário Elena (2012), da diretora mineira Petra Costa, num relato lúcido sobre a desilusão do fracasso diante da derrota que fez uma vítima precocemente.

Moretti passa a sutileza e a sensibilidade à flor da pele como ingredientes delicados e demolidores no desfecho. Um retrato com realismo sem metáforas para tentar entender a subtração marcante de um familiar próximo, no caso a mãe que definha enquanto o casal de irmãos dá o apoio e resgata momentos que ficarão registrados para sempre no pós-vida. Dilacera e mergulha no momento mágico da finitude em que ninguém está preparado para uma circunstância universal do ser humano e seus descendentes que permanecerão como um sopro de esperança e vida de continuidade e renascimento. O diretor dá o recado ao mostrar a neta se interessando pelo estudo do latim como herança infinita de valor deixada pela avó.

Um drama com tintas autobiográficas que tem a morte como tema principal, em que a perda traz reflexos sombrios e devastadores para os enlutados. Mia Madre é um filme em que as imagens pelo olhar da protagonista suplantam os ótimos e indispensáveis diálogos. Reflete toda a tristeza e a melancolia do epílogo da vida pelos olhos doloridos da atriz Margherita Buy, de ótima atuação num papel difícil, mas irretocável no todo, passa e divide suas lágrimas para o espectador atento. Impactante pela complexidade como foi Amor (2012), de Michael Haneke, e nos remete para subtemas como solidão, doença e velhice explorados com a genialidade de Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957) e na incomparável e inigualável obra-prima Gritos e Sussurros (1972); ou ainda em Viver (1952), de Akira Kurosawa. Mas a narrativa de Moretti tem o naturalismo exposto como vísceras pela decadência humana intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, tem na forma e na estética criativa os traços singulares da marca registrada do cultuado cineasta italiano nesta reflexão estupenda.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O Clã


Família Macabra

Pablo Trapero está de volta com mais um típico filme perturbador em seu qualificado currículo cinematográfico. O Clã é o triste e vergonhoso relato de uma das gangues mais conhecidas da Argentina, sob o comando da família Puccio. Estamos diante de uma narrativa vigorosa sobre a relação e o vínculo dos membros familiares em uma casa no bairro de classe média alta San Isidro, em Buenos Aires, na década de 1980, pelo sequestro de várias pessoas com algum envolvimento político contrário ao regime militar, ou por simplesmente estar numa situação mais confortável financeiramente, desfrutando de uma vida com algum luxo e causando inveja para os falsos defensores da pátria derrotada na Guerra das Malvinas, sob o comando do general Leopoldo Galtieri, ex-presidente militar do país vizinho.

O longa rendeu ao seu realizador o Leão de Prata de melhor direção no Festival de Veneza deste ano; também foi escolhido para representar seu país no Oscar de 2016, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Foi coproduzido com a Espanha pela produtora dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar. Alcançou a expressiva marca de 1,5 milhão de espectadores nos dez primeiros dias nas bilheterias argentinas, ficou atrás apenas de Relatos Selvagens (2014). Com um roteiro bem enxuto, o cineasta desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros, principalmente das duas filhas e do irmão caçula, pouco se lixando para o que está acontecendo no mesmo teto em que residem aparentemente em forma de harmonia. Arquímedes Puccio (Guillermo Francella- excelente interpretação, ao demonstrar toda a frieza do protagonista) é o pai e mentor da execução do plano diabólico e com formação de contador. Para torturar, sequestrar e matar, tinha o auxílio direto do filho Alejandro (Peter Lanzani), o craque do Pumas, base da seleção argentina de rúgbi, era uma espécie de herói nacional. Ninguém desconfiava daquele jovem meigo, pacato, com aparência de bom cidadão, fiel e apaixonado pela namorada, mas que se submetia às atrocidades paternais, atraindo inclusive um amigo para o cativeiro sinistro.

Baseado em fatos reais para contar uma macabra história de um episódio que eclodiu na imprensa em 1985, sobre o desbaratamento com o posterior julgamento de todos os membros de uma facção tenebrosa que assombrou os argentinos, durante a ascensão de Raúl Alfonsín à presidência, ao fazer o período de transição de 1983 a 1989, o bando de delinquentes perdeu força na democracia. Já o longa é uma mescla ficcional de horror com subserviência, tendo como ingredientes a repulsa, a obediência, o locupletamento de dinheiro fácil em conluio com o sistema de um regime de exceção. Não poderia faltar o molho condimentado das orações à mesa nas refeições comandadas pelo gélido pai, sob o olhar de aprovação da esposa, Epifânia (Lili Popovivh) que cozinhava para as vítimas, tendo mais tarde na companhia o retorno do exterior de outro filho, Maguila (Gastón Cocchiarare) que engrossará o rol dos perversos assassinos de pessoas inocentes. O grupo tinha o aval de três amigos do poder militar que começava fraquejar com o duro golpe da derrocada nas Malvinas.

O diretor tem em sua filmografia realizações de abordagens de situações cotidianas e sociais de uma maneira crua e fria, sem grandes alegorias e metáforas. Assim foi com o excelente Leonera (2008), talvez seu melhor e mais profundo filme, discutindo sobre o sistema prisional de uma detenta grávida e as consequências nefastas para os filhos recém-nascidos naquele lugar inóspito. Outro filme de grande repercussão foi Abutres (2010), com um viés pela inverossimilhança da máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das vítimas fatais, aproveitando-se das brechas deixadas pelas leis reguladoras do trânsito. Com Elefante Branco (2012) opta pela multiplicidade de temas, como drogas, casa própria, má gestão pública, subempregos, celibato, questões sociais da criminalidade nas favelas pelas mortes do tráfico, massacre de camponeses na Amazônia. Sem esquecer ainda que fizera antes os apreciáveis Nascido e Criado (2006) e Família Rodante (2004).

O Clã é uma espécie de A Família Addams às avessas, pois aqueles eram uma inversão satírica do ideal da família americana, no qual um grupo rico e excêntrico que adora o macabro, não lhes interessava que outras pessoas os achassem bizarros ou assustadores. Já Trapero dá o toque requintado do suspense e busca fatos concretos para registrar seu inconformismo ao retratar o improvável nos resgates milionários de empresários raptados e escondidos no seio familiar. Sem invalidar a realização, embora prejudicial, peca ao vacilar por minimizar a atmosfera de tensão e desespero dos sequestrados durante parte do filme. O clima não atinge uma sustentação de realismo por falha de uma trilha sonora invasiva e pouco envolvente, atravessando em algumas cenas o desenrolar e despistando contraditoriamente uma carga mais dramática na ação de desenvolvida. Cortes poderiam ser feitos por elipses pontuais, sem utilizar o disfarce de algumas incômodas canções.

O drama com suspense tem grande semelhança no incrível Miss Violence (2013), do diretor Alexandros Avranas, ao retratar a crise europeia através de uma metáfora sobre o patriarca que manda as mulheres da família se prostituírem, tendo como objetivo claro colocar a família grega falando sobre sua sociedade desencantada e traumatizada com os duros rumos de seu país. Arrasou pela perversidade latente e com os desdobramentos explícitos sem ser banal naquela enigmática casa. Trapero é mais condescendente com seus personagens, mas enfatiza a perda da dignidade humana e o atraso institucional causado pelo regime militar. Avranas usa o realismo cênico eloquente de estupros e assédios sexuais na obra em seu todo, sem firulas. Nos dois filmes estão presentes as sucessões de fatos intrigantes naquelas células familiares pseudoserenas, mas com um rombo nas suas estruturas e prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres na figura do abjeto patriarquismo, em que a hipocrisia anda solta e de mãos dadas com as frequentes mentiras e arranjos para obscurecer a verdade com o intuito de ficar completamente escondida. São delírios enlouquecedores de uma situação pelo pragmatismo daquele suposto homem bom e dono de uma rotisseria no térreo do sobrado, escondido atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, cria-se uma loucura mental combalida de prepotência num sistema em que está presente a derrota iminente pela violência humilhante num ambiente hostil.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Chatô, O Rei do Brasil












Fim de Uma Era

Guilherme Fontes estreia na ficção com a comédia dramática política Chatô, O Rei do Brasil, depois de 20 anos das filmagens até a conclusão da conturbada produção que levou o cineasta a responder processos por mau uso de dinheiro público. Teve o abandono do projeto pelo parceiro Francis Ford Coppola e ainda a intromissão de um neto do personagem-título que se opôs e tentou barrar a exibição do polêmico filme. Acusações falsas ou não, mas que no fim resultaram num longa-metragem de bom nível e com um acabamento que supera as expectativas negativas advindas da demora para seu lançamento e nos remete para um cinema qualificado, caprichado, sem remendos, maduro, com a ironia antropofágica proposta de um realizador que sabia o que queria mostrar aos espectadores.

Uma abordagem sem o didatismo que impera em realizações brasileiras quando retrata uma personalidade histórica biografada. Fontes mostra a relação de amor e ódio do personagem central com o governo do presidente Getúlio Vargas (interpretado por Paulo Betti de forma caricatural) no Palácio do Catete, criador do salário mínimo, da Justiça do Trabalho, sindicatos, entre outras conquistas populares e necessárias para a época, num sistema de poder pela sedução das massas com o intuito da coletividade. A cinebiografia do paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) tem como um dos grandes acertos Marco Ricca encarnando-o de maneira estupenda. Embora seja uma adaptação fiel da história extraída do livro de Fernando de Morais, há uma liberdade despudorada na criação escrachada imaginada pelo diretor, que dá forma e equilíbrio para um contexto político de pouca fidelidade, mas sobrando traições, conchavos, maracutaias e promiscuidades entre Chatô e Getúlio no retrato cinematográfico dos fatos históricos narrados.

Uma superprodução que começa pelo grande elenco, passa por uma reconstituição de cenário e figurinos impecáveis de época e fecha com a bela fotografia de José Roberto Eliezer, com um bom enquadramento de câmera nas tomadas, aproximando rostos tensos e olhares indecisos em closes, captando as aflições e angústias dos personagens do enredo, com planos e contraplanos, especialmente na construção de Chatô, a estrela principal de um programa de TV chamado "O Julgamento do Século", realizado no dia de sua morte. Ali são relembrados fatos marcantes de sua vida, um mulherengo inveterado que não podia ver um rabo de saia, mas que sucumbiu em dois casamentos e uma penca de filhos. Um com Maria Eudóxia (Letícia Sabatella); outro com Lola (Leandra Leal), além da paixão não correspondida por Vivi Sampaio (Andréa Beltrão- magnífica e bela no seu papel de mulher fatal) e a feroz disputa amorosa com Getúlio, sendo ela o pivô de desavenças entre os dois titãs. Fontes demonstra imparcialidade e lisura ao retratar como o magnata manipulava as notícias nos veículos de comunicação que comandava e o estreito elo com o caudilho iniciado antes deste tornar-se presidente.

Com um conjunto de artistas de grande harmonia e compactação, entre os quais Eliane Giardini, Zessé Polessa, Walmor Chagas, José Lewgoy, Marcos Oliveira e Ricardo Blat, o cineasta conta a trajetória de um dos maiores mitos da comunicação de nosso país. Fundou a TV Tupi em 1950, a primeira televisão brasileira; criou os Diários Associados, a maior rede jornalística da época; senador; imortal da Academia Brasileira de Letras; cofundador do MASP com Pietro Maria Bardi. Tornou-se uma figura folclórica e lendária, sendo comparado com William Randolph Hearts (1863-1951), o magnata de um império da imprensa que inspirou Orson Welles no clássico Cidade Kane (1941). Durante o julgamento no programa de auditório, após a trombose que vitimou Chatô, ele passa por delírios acometidos da nefasta doença, que são rememorados com bom humor e sem arrependimentos ou maneirismos revisionais, decorrente da segura narrativa do promissor diretor estreante, que se afasta do pieguismo encontrados em muitas realizações menores.

Chatô, O Rei do Brasil tem como méritos os relatos da vinculação do empresário da comunicação com o presidente mais polêmico do Brasil que se submete aos seus caprichos, como nas cenas entrecortada pelos jogos de poder com toda sua emblemática relação com o povo empobrecido, em meio a uma onda gigantesca de denúncias de corrupção lideradas pela mescla de Carlos Lacerda com Samuel Wainer (Gabriel Braga Nunes), ingredientes indispensáveis num roteiro que não deixa de enfocar o trágico suicídio de Getúlio. Mesmo com personagens fictícios há lealdade aos fatos históricos, mencionando algumas falcatruas engendradas nos bastidores, como venda de uma fazenda e alguns benefícios para pessoas próximas e ligadas diretamente ao governo, em que um dos favorecidos poderia ser o chefe da guarda, além do atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, o estopim para a crise.

Uma comédia dramática que poderia ser um drama ou um documentário para contar a saga de um mito desfraldado dentro de um contexto de uma era de fatos importantes para os brasileiros, embora excessivo por vezes, mas dentro da sincronia para acompanhar os passos do irrequieto e excêntrico Chatô. Do outro lado do enredo alegórico, sem grandes firulas, mas caricato, está um ícone da política com seus acertos e erros, virtudes e defeitos, inerentes de um ditador controvertido, que o levou a entrar na história ao sair da vida, como ele mesmo escreveu na Carta-Testamento. Um filme quase anacrônico pela distância das filmagens até estrear, mas com avanços e em consonância com a transgressão proposta até o emblemático resultado desta instigante contribuição sobre fatos notórios do século passado no Brasil, sem ser definitivo, induz para uma reflexão de um passado, mas que continua atualizado na essência do presente em nossa sociedade.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Chico- Artista Brasileiro

















Intimidade de um Gênio

Um filme de diálogos do protagonista com a plateia e vários depoimentos que normalmente são para endeusar o homenageado, pode parecer uma realização chapa branca, mas não é o caso de Chico- Artista Brasileiro. O documentário passa em revista a vida pessoal, artística e a vasta obra do renomado compositor, cantor e escritor Chico Buarque de Hollanda. É apresentado pelo próprio personagem central, mescla relatos do artista com os de outros nomes da música brasileira, além de encenações com intérpretes das canções mais famosas de sua trajetória. Dirigido com eficiência e competência por Miguel Farias Jr., que também filmou Vinícius (2005) há dez anos, com um público de 300 mil espectadores, recontando cronologicamente a vida de Vinícius de Moraes (1913-1980), popularmente conhecido como poetinha.

Na mesma esteira documental, o veterano Nelson Pereira dos Santos, que dividiu a direção com a neta de Tom Jobim, Dora Jobim, realizou com brilhatura A Música Segundo Tom Jobim (2012), optando pela boa música e o acervo fotográfico da carreira deste extraordinário cantor e compositor brasileiro que conquistou o mundo musical e consagrou-se como um dos ícones de todos os tempos, cantando em português e muitas vezes também em inglês, num formato de videoclipe essencialmente com música nas diferentes vozes e interpretações em vários idiomas, entre eles o italiano, o francês e o inglês. Farias Jr. deixa como fio condutor o próprio Chico contar sua vida na primeira pessoa. Instalado em seu belo apartamento no Leblon, diferente em Vinícius, até porque um está vivo e o outro foi uma homenagem póstuma, situações análogas de seus dois amigos na vida privada. Comovente a cena que menciona como seu grande amor, Marieta Severo, a única mulher com quem conviveu por mais de 20 anos, depois disto nunca mais dividiu seu espaço com ninguém, não só por ser mãe de suas três filhas e dos netos que vieram por consequência.

Sempre acompanhadas de músicas interpretadas pelo próprio compositor ou por outros cantores, além de imagens do acervo fotográfico, mostra um visão artística e pessoal de um dos célebres resistentes da época da ditadura militar de 1964, que menciona seus problemas com a censura implacável. Como na cena que mostra o ridículo dos censores com uma de suas letras que tinha na estrofe: “barriga na miséria do brasileiro...” não podia, teve que alterar para “barriga na miséria do batuqueiro”, aceita sem hesitação. Roda Viva (1967) foi sua primeira incursão na área da dramaturgia teatral, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, foi censurada sem grandes rodeiros; bem como com a peça musicada Calabar (1973) escrita em parceria com Ruy Guerra. Um roteiro vinculado às excelentes composições, com falas e menções de amigos, logo se afasta do oba-oba que pudesse atrapalhar a continuidade e o objetivo da história. Retrata com desenvoltura a volta de Chico à Alemanha para descobrir por imagens o irmão e ator alemão, sendo marcado por uma certa tristeza não poder conhecê-lo em vida. Há um bom humor com sinais evidentes de sentimento de vaga e doce amargura, ao falar da existência e do fim que se aproxima com o avanço da idade. “Para onde vamos?”, indaga em tom melancólico.

Um documentário que conta os 50 anos da obra do intelectual em 1h50min extraídos de 30 horas de entrevista. Começa com uma de suas canções cantadas por ele mesmo; flutua por Milton Nascimento e a fadista portuguesa Carminho num belo dueto; encanta com Adriana Calcanhoto, Mart’Nália, Milton Nascimento, Péricles, Roberta Sá, Ney Matogrosso, Maria Bethânia e Caetano Veloso com eloquência neste primor de resgate do tempo, sem faltar o rápido depoimento da irmã Miúcha. O grande sucesso da carreira A Banda (1966) terá papel preponderante para lhe dar alegria inesperada na procura do irmão desconhecico, interligado com as lembranças da infância e do pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. O longa mostra os artistas musicais sendo muito visados num período de exceção de direitos, como também eram os cineastas como Glauber Rocha, idealizador do Cinema Novo.

Chico- Artista Brasileiro é um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a música servindo de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolou os brasileiros naqueles anos de chumbo, fica na tela como reflexão mais aprofundada de uma época. Não é um documentário somente para os fãs do compositor, mas para todos os apreciadores de música de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou baixarias. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos. É proibido levantar o volume da voz. Para os que não gostam dele, ao assistir poderão ter a grande chance de mudar alguns conceitos equivocados. Sobre os que estão em dúvida se gostam ou não, dificilmente deixarão de aderir e cantarolar. Não vai sair ganhando festivais por aí, talvez nem ousasse tal intenção, mas ficará registrado na memória todo seu inesgotável poder de criação, pois os gênios nunca deixam secar a fonte e estão sempre presentes para seus admiradores contumazes e os detratores. Para ser lembrado e sorvido com sensibilidade as sutilezas sugeridas, lavar a alma e deixar os ombros mais leves, fechar os olhos e sorver as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, além do resumo sobre o anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades.