quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O Clã


Família Macabra

Pablo Trapero está de volta com mais um típico filme perturbador em seu qualificado currículo cinematográfico. O Clã é o triste e vergonhoso relato de uma das gangues mais conhecidas da Argentina, sob o comando da família Puccio. Estamos diante de uma narrativa vigorosa sobre a relação e o vínculo dos membros familiares em uma casa no bairro de classe média alta San Isidro, em Buenos Aires, na década de 1980, pelo sequestro de várias pessoas com algum envolvimento político contrário ao regime militar, ou por simplesmente estar numa situação mais confortável financeiramente, desfrutando de uma vida com algum luxo e causando inveja para os falsos defensores da pátria derrotada na Guerra das Malvinas, sob o comando do general Leopoldo Galtieri, ex-presidente militar do país vizinho.

O longa rendeu ao seu realizador o Leão de Prata de melhor direção no Festival de Veneza deste ano; também foi escolhido para representar seu país no Oscar de 2016, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Foi coproduzido com a Espanha pela produtora dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar. Alcançou a expressiva marca de 1,5 milhão de espectadores nos dez primeiros dias nas bilheterias argentinas, ficou atrás apenas de Relatos Selvagens (2014). Com um roteiro bem enxuto, o cineasta desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros, principalmente das duas filhas e do irmão caçula, pouco se lixando para o que está acontecendo no mesmo teto em que residem aparentemente em forma de harmonia. Arquímedes Puccio (Guillermo Francella- excelente interpretação, ao demonstrar toda a frieza do protagonista) é o pai e mentor da execução do plano diabólico e com formação de contador. Para torturar, sequestrar e matar, tinha o auxílio direto do filho Alejandro (Peter Lanzani), o craque do Pumas, base da seleção argentina de rúgbi, era uma espécie de herói nacional. Ninguém desconfiava daquele jovem meigo, pacato, com aparência de bom cidadão, fiel e apaixonado pela namorada, mas que se submetia às atrocidades paternais, atraindo inclusive um amigo para o cativeiro sinistro.

Baseado em fatos reais para contar uma macabra história de um episódio que eclodiu na imprensa em 1985, sobre o desbaratamento com o posterior julgamento de todos os membros de uma facção tenebrosa que assombrou os argentinos, durante a ascensão de Raúl Alfonsín à presidência, ao fazer o período de transição de 1983 a 1989, o bando de delinquentes perdeu força na democracia. Já o longa é uma mescla ficcional de horror com subserviência, tendo como ingredientes a repulsa, a obediência, o locupletamento de dinheiro fácil em conluio com o sistema de um regime de exceção. Não poderia faltar o molho condimentado das orações à mesa nas refeições comandadas pelo gélido pai, sob o olhar de aprovação da esposa, Epifânia (Lili Popovivh) que cozinhava para as vítimas, tendo mais tarde na companhia o retorno do exterior de outro filho, Maguila (Gastón Cocchiarare) que engrossará o rol dos perversos assassinos de pessoas inocentes. O grupo tinha o aval de três amigos do poder militar que começava fraquejar com o duro golpe da derrocada nas Malvinas.

O diretor tem em sua filmografia realizações de abordagens de situações cotidianas e sociais de uma maneira crua e fria, sem grandes alegorias e metáforas. Assim foi com o excelente Leonera (2008), talvez seu melhor e mais profundo filme, discutindo sobre o sistema prisional de uma detenta grávida e as consequências nefastas para os filhos recém-nascidos naquele lugar inóspito. Outro filme de grande repercussão foi Abutres (2010), com um viés pela inverossimilhança da máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das vítimas fatais, aproveitando-se das brechas deixadas pelas leis reguladoras do trânsito. Com Elefante Branco (2012) opta pela multiplicidade de temas, como drogas, casa própria, má gestão pública, subempregos, celibato, questões sociais da criminalidade nas favelas pelas mortes do tráfico, massacre de camponeses na Amazônia. Sem esquecer ainda que fizera antes os apreciáveis Nascido e Criado (2006) e Família Rodante (2004).

O Clã é uma espécie de A Família Addams às avessas, pois aqueles eram uma inversão satírica do ideal da família americana, no qual um grupo rico e excêntrico que adora o macabro, não lhes interessava que outras pessoas os achassem bizarros ou assustadores. Já Trapero dá o toque requintado do suspense e busca fatos concretos para registrar seu inconformismo ao retratar o improvável nos resgates milionários de empresários raptados e escondidos no seio familiar. Sem invalidar a realização, embora prejudicial, peca ao vacilar por minimizar a atmosfera de tensão e desespero dos sequestrados durante parte do filme. O clima não atinge uma sustentação de realismo por falha de uma trilha sonora invasiva e pouco envolvente, atravessando em algumas cenas o desenrolar e despistando contraditoriamente uma carga mais dramática na ação de desenvolvida. Cortes poderiam ser feitos por elipses pontuais, sem utilizar o disfarce de algumas incômodas canções.

O drama com suspense tem grande semelhança no incrível Miss Violence (2013), do diretor Alexandros Avranas, ao retratar a crise europeia através de uma metáfora sobre o patriarca que manda as mulheres da família se prostituírem, tendo como objetivo claro colocar a família grega falando sobre sua sociedade desencantada e traumatizada com os duros rumos de seu país. Arrasou pela perversidade latente e com os desdobramentos explícitos sem ser banal naquela enigmática casa. Trapero é mais condescendente com seus personagens, mas enfatiza a perda da dignidade humana e o atraso institucional causado pelo regime militar. Avranas usa o realismo cênico eloquente de estupros e assédios sexuais na obra em seu todo, sem firulas. Nos dois filmes estão presentes as sucessões de fatos intrigantes naquelas células familiares pseudoserenas, mas com um rombo nas suas estruturas e prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres na figura do abjeto patriarquismo, em que a hipocrisia anda solta e de mãos dadas com as frequentes mentiras e arranjos para obscurecer a verdade com o intuito de ficar completamente escondida. São delírios enlouquecedores de uma situação pelo pragmatismo daquele suposto homem bom e dono de uma rotisseria no térreo do sobrado, escondido atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, cria-se uma loucura mental combalida de prepotência num sistema em que está presente a derrota iminente pela violência humilhante num ambiente hostil.

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