Fim de Uma Era
Guilherme Fontes estreia na ficção com a comédia dramática
política Chatô, O Rei do Brasil,
depois de 20 anos das filmagens até a conclusão da conturbada produção que
levou o cineasta a responder processos por mau uso de dinheiro público. Teve o
abandono do projeto pelo parceiro Francis Ford Coppola e ainda a intromissão de
um neto do personagem-título que se opôs e tentou barrar a exibição do polêmico
filme. Acusações falsas ou não, mas que no fim resultaram num longa-metragem de
bom nível e com um acabamento que supera as expectativas negativas advindas da
demora para seu lançamento e nos remete para um cinema qualificado, caprichado,
sem remendos, maduro, com a ironia antropofágica proposta de um realizador que
sabia o que queria mostrar aos espectadores.
Uma abordagem sem o didatismo que impera em realizações
brasileiras quando retrata uma personalidade histórica biografada. Fontes
mostra a relação de amor e ódio do personagem central com o governo do
presidente Getúlio Vargas (interpretado por Paulo Betti de forma caricatural) no
Palácio do Catete, criador do salário mínimo, da Justiça do Trabalho,
sindicatos, entre outras conquistas populares e necessárias para a época, num
sistema de poder pela sedução das massas com o intuito da coletividade. A
cinebiografia do paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello
(1892-1968) tem como um dos grandes acertos Marco Ricca encarnando-o de maneira
estupenda. Embora seja uma adaptação fiel da história extraída do livro de
Fernando de Morais, há uma liberdade despudorada na criação escrachada imaginada
pelo diretor, que dá forma e equilíbrio para um contexto político de pouca fidelidade,
mas sobrando traições, conchavos, maracutaias e promiscuidades entre Chatô e Getúlio
no retrato cinematográfico dos fatos históricos narrados.
Uma superprodução que começa pelo grande elenco, passa por
uma reconstituição de cenário e figurinos impecáveis de época e fecha com a
bela fotografia de José Roberto Eliezer, com um bom enquadramento de câmera nas
tomadas, aproximando rostos tensos e olhares indecisos em closes, captando as
aflições e angústias dos personagens do enredo, com planos e contraplanos, especialmente
na construção de Chatô, a estrela principal de um programa de TV chamado
"O Julgamento do Século", realizado no dia de sua morte. Ali são
relembrados fatos marcantes de sua vida, um mulherengo inveterado que não podia
ver um rabo de saia, mas que sucumbiu em dois casamentos e uma penca de filhos. Um com Maria Eudóxia
(Letícia Sabatella); outro com Lola (Leandra Leal), além da paixão não correspondida
por Vivi Sampaio (Andréa Beltrão- magnífica e bela no seu papel de mulher fatal)
e a feroz disputa amorosa com Getúlio, sendo ela o pivô de desavenças entre os
dois titãs. Fontes demonstra imparcialidade e lisura ao retratar como o magnata
manipulava as notícias nos veículos de comunicação que comandava e o estreito
elo com o caudilho iniciado antes deste tornar-se presidente.
Com um conjunto de artistas de grande harmonia e compactação, entre os quais Eliane Giardini, Zessé Polessa, Walmor Chagas, José Lewgoy, Marcos Oliveira e Ricardo Blat, o cineasta conta a trajetória de um dos maiores mitos da comunicação de nosso país. Fundou a TV Tupi em
Chatô, O Rei do Brasil
tem como méritos os relatos da vinculação do empresário da comunicação com o presidente
mais polêmico do Brasil que se submete aos seus caprichos, como nas cenas entrecortada
pelos jogos de poder com toda sua emblemática relação com o povo empobrecido,
em meio a uma onda gigantesca de denúncias de corrupção lideradas pela mescla
de Carlos Lacerda com Samuel Wainer (Gabriel Braga Nunes), ingredientes indispensáveis
num roteiro que não deixa de enfocar o trágico suicídio de Getúlio. Mesmo com
personagens fictícios há lealdade aos fatos históricos, mencionando algumas
falcatruas engendradas nos bastidores, como venda de uma fazenda e alguns
benefícios para pessoas próximas e ligadas diretamente ao governo, em que um
dos favorecidos poderia ser o chefe da guarda, além do atentado da Rua
Tonelero, em Copacabana, o estopim para a crise.
Uma comédia dramática que poderia ser um drama ou um
documentário para contar a saga de um mito desfraldado dentro de um contexto de
uma era de fatos importantes para os brasileiros, embora excessivo por vezes, mas
dentro da sincronia para acompanhar os passos do irrequieto e excêntrico Chatô.
Do outro lado do enredo alegórico, sem grandes firulas, mas caricato, está um
ícone da política com seus acertos e erros, virtudes e defeitos, inerentes de
um ditador controvertido, que o levou a entrar na história ao sair da vida,
como ele mesmo escreveu na Carta-Testamento. Um filme quase anacrônico pela
distância das filmagens até estrear, mas com avanços e em consonância com a
transgressão proposta até o emblemático resultado desta instigante contribuição
sobre fatos notórios do século passado no Brasil, sem ser definitivo, induz
para uma reflexão de um passado, mas que continua atualizado na essência do
presente em nossa sociedade.
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