sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2017)


Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2017, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. A Morte de Luís XIV, de Albert Serra (foto abaixo);

02. Eu, Daniel Blake, de Ken Loach;

03. Manchester à Beira-Mar, de Kenneth Lonergan;

04. Frantz, de François Ozon;

05. Afterimage, de Andrzev Wajda;

06. A Qualquer Custo, de David Mackenzie;

07. Paterson, de Jim Jarmusch

08. O Filho de Joseph, de Eugène Green;

09. O Cidadão Ilustre, de Mariano Cohn e Gastón Duprat;

10. Lucky, de John Carroll Lynch.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Toni Erdmann, de Maren Aden;
- Glory, de Kristina Grozeva e Petar Valchanov;
- Faces de Uma Mulher, de Arnaud des Pollières;
- A Garota Ocidental- Entre o Coração e a Tradição, de Stephan Streker;
- Vazante, de Daniela Thomas.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Lucky


Solidão e Existência

Lucky é o filme de estreia do discreto ator John Carroll Lynch, filho do cultuado cineasta David Lynch, que foi muito bem recebido pela crítica no Festival de Locarno, além de causar ótima impressão em outros festivais ao longo do ano. Chegou em setembro no circuito comercial como a grande despedida do nonagenário ator Harry Dean Stanton de antológico desempenho com seu semblante endurecido ressalta as dificuldades e vicissitudes do cotidiano, veio a falecer no mesmo mês, duas semanas antes do lançamento do longa. O astro que estará no remake Twin Peaks, já participou em mais de duas centenas de filmes e séries, como Alien, A Garota de Rosa Shocking e a obra-prima Paris, Texas. Neste seu trabalho derradeiro bem que merecia uma indicação ao Oscar. Uma realização em que o intérprete se assemelha de maneira mórbida ao personagem-título, tendo em vista que ambos não se casaram e serviram na Segunda Guerra Mundial.

A trama aborda o protagonista idoso de 91 anos que perambula pela pequena cidade onde mora, fumante inveterado que lembra o famoso personagem da propaganda de uma marca de cigarros, adora fazer palavras cruzadas e trocar informações com seus amigos numa velha taberna, que soa como uma terapia, como a do amigo Howard (David Lynch) e seu vínculo com um cágado de estimação que pode durar até 200 anos, mas que ao fugir de casa busca a alforria; ou do marinheiro em seu desabafo sobre a garotinha japonesa sorrindo para buscar o paraíso, em plena guerra; ou da insistência de Lucky para acender o cigarro dentro do estabelecimento, após um discurso libertário da quebra de paradigmas das normas rígidas civilizatórias para alcançar a liberdade do homem neste mundo passageiro. Vive à sua maneira, não faz concessões, é o tipo do politicamente incorreto até desmaiar num dia qualquer para começar a sentir o medo da morte, com o diagnóstico lacônico do médico de que apenas está ficando envelhecido.

Com um enxuto roteiro assinado por Logan Sparks e Drago Sumonja, o drama aborda de forma profunda a terceira idade e a tentativa de viver com intensidade. Um poema de amor à vida e exaltação à natureza, embora a decrepitude esteja estampada na fisionomia da compleição física com o fim bem próximo da morte espreitando. Uma magnífica reflexão sobre o passado e as amizades sendo fortalecidas neste epílogo de suspiro existencial. Martelam as lembranças de um rouxinol e seu canto que marcaram a época de garoto diante da morte por acidente do pássaro. Sem mulher e sem filhos, a companhia diária é apenas o cigarro e sua gaitinha de boca. Um personagem bronco no início da realização, mas que aos poucos vai cedendo lugar para um coração que amolece com a iminência da finitude, como no desabafo à amiga que o visita: “Eu tenho medo!”. O diretor assim sintetiza numa entrevista à revista Variety: “É um filme sobre a jornada na qual estamos todos seguindo, tendo de, ao fim, lidar com a fragilidade da vida, e, se tivermos sorte, podendo desfrutá-la ainda com vitalidade e valorizando o que realmente importa: cada momento”.

Eis uma obra sensível, poética e madura sobre a solidão. É memorável a cena do personagem central na festa de uma mulher mexicana com seus membros da família, quando canta junto com um grupo musical de mariachi e se enche de emoção, deixando o olhar perdido expressar através da imagem reveladora que dispensa o diálogo. É o restabelecimento da vontade de continuar existindo um pouco mais. É o estímulo que faltava e brota daquele núcleo familiar para abrandar a fragilidade do isolamento que dá lugar para o convívio e a fraternidade naquele espaço de harmonia prazerosa. Lucky é um filme sombrio, às vezes, mas no qual a melancolia, por alguns instantes, está presente e rasga os sentimentos através da triste convivência dos personagens solitários. Mas em outros momentos cede lugar para edificar, tanto pela amargura, pela dor, como por escassos momentos de prazer de um velho cowboy que manifesta os sentimentos de vínculos remanescentes de amor e anti-heroísmo. Remete pela similaridade temática enfocada para Sr. Kaplan (2012), do uruguaio Álvaro Brechner, e Nebraska (2013), do realizador independente americano Alexander Payne.

Um drama que poderia cair nas armadilhas do melodrama e derrapar no pieguismo, mas John Lynch se afasta com brilho e dá uma emoção dosada para se aprofundar numa reflexão sobre a existência e a finitude buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem da essência cinematográfica de um libelo sobre a velhice. O que busca o personagem é o reconhecimento da dignidade para ser valorizado como aqueles dos antigos faroestes no desfecho desta comovente narrativa contida e bem elaborada nos diálogos, com imagens deslumbrantes pela fotografia para um tributo ao cenário do Velho Oeste no Colorado, nos EUA, de uma paisagem deteriorada. Está bem coadjuvada por uma trilha sonora não invasiva que dá o tom certeiro na melodia, além da bonita homenagem ao pianista norte-americano Wladziu Valentino Liberace. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da morte pela jornada espiritual de aventuras de um ateu que começa a questionar o sentido da vida e a culpa pela magia peculiar da celebração de existir. Estão harmônicos os planos e contraplanos, adequados a um realismo visual inóspito apresentado com esmero cinematográfico daquele universo rude. Louva-se o promissor diretor por não ter se rendido a realizações descartáveis e fúteis que infestam nossas salas de cinema. Lucky é um candidato forte aos dez melhores do ano.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

A Trama


Guerra de Palavras

Com exibição este ano no Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard, A Trama é o mais novo longa-metragem do festejado cineasta francês Laurent Cantet, que divide o roteiro com Robin Campillo. Consagrado no filme Entre os Muros da Escola (2008), vencedor da Palma de Ouro daquele ano, numa abordagem profunda sobre o universo escolar da França em meio às diversidades étnicas para questionar as crises da civilização contemporânea; também realizou o extraordinário Retorno à Ítaca (2014), inspirado no romance La Novela de Mi Vida (2002), do escritor cubano Leonardo Padura, retrata os fantasmas do passado que são rememorados no reencontro de cinco amigos adeptos do sonho das mudanças que viraram utopias e as desagregações familiares de Cuba, limitando a ação a um terraço com vista para o Malecón- o famoso calçadão de Havana- e as habitações empobrecidas como cenário único que levou mais de dezessete noites, superando a licença governamental, diante do fator climático de muitas chuvas.

O drama social, em sua última realização, é um retrato conciso da história de um grupo de jovens adolescentes com problemas na escola selecionados para uma oficina literária com o objetivo de criar um romance policial, sob a orientação da famosa autora do gênero Olívia (Mariana Foïs- de interpretação sóbria). Novamente a figura professoral e os alunos ressurgem, como no título premiado de Cannes. Mas o enredo toma proporções de um conflito político sobre as imigrações e os atentados na França, especialmente o do Bataclan, em Paris de 2015, e de Nice, em 2016. Há farpas e uma guerra de palavras com o racismo e a xenofobia sendo expostos como vísceras que vêm à tona num ambiente conflagrado pelo medo do terrorismo e dos crimes em série com viés religioso. O cenário é em La Ciotat, uma cidade portuária em crise no sul da França, após o fechamento dos estaleiros navais que traumatizou a pequena população, dificultando ainda mais o acesso ao emprego.

Cantet conduz com habilidade e elegância o desenrolar da história, que tem como protagonista Antoine (Matthieu Lucci- excelente no papel), um rapaz que sobressai com ideias contrárias ao bom senso e fere o prisma da isenção com provocações rasteiras e uma tendência para o crime organizado com tintas de terrorismo. Revisita assuntos do cotidiano com uma visão míope sobre a humanidade ao defender a morte pelo simples prazer. Entra em choque e cria inimizades com os colegas da equipe ao trazer distorcidas questões raciais das minorias e uma posição minúscula dos imigrantes árabes, com a atmosfera esquentando em tais situações que beiram as vias de fato. Já na cena inicial fica caracterizada sua contrariedade, ao afastar-se do grupo e não pegar o ônibus, preferindo ir a pé sozinho. O conflito logo irá se estabelecer e a temperatura pelas animosidades se transformará num caldeirão com a perda do controle dos envolvidos.

A Trama - com um elenco quase todo amador, exceto os protagonistas, uma marca do realizador, como também foi em Entre os Muros da Escola- é um espelhamento dos dias atuais na Europa, com tensões sociais à flor da pele entre aquelas moças e rapazes brancos, negros, católicos, proletários, árabes e muçulmanos. As discussões acaloradas, que tem como mote a forma e o estilo da narrativa do roteiro a ser elaborado para o próximo livro da escritora e supervisora, motivo pelo qual o aluno se rebela e explode ao se sentir usado como uma cobaia. É a ponta do iceberg para uma polarização entre o suposto bem e o estigmatizado mal, que irão ao encontro das desavenças e a integração dos imigrantes no território francês com o terrorismo radical aflorando, bem como são lançadas ideias para se saber como tentar lidar com tais armadilhas que espreitam a civilização.

O diretor cria um painel fascinante de um filme realizado com maturidade de um retrato dolorido pela decepção, através de uma crônica reconciliatória das ilusões perdidas, no qual o personagem central nada mais é do que uma espécie de um lobo solitário na alcateia. Ele terá na aproximação da escritora sua exposição quase que doentia sendo demonstrada numa relação edipiana consolidada pela falta de vínculo na ausência de diálogos em casa com os pais e a manifestação iminente de companhias que o levam para o pensamento conservador do fundamentalismo. A raiva e o ódio se entrelaçam para a transgressão do extremismo na oficina que flutua para sessões de terapia e interrogações que se espraiam. O tiro na lua soa como um grito de prazer pela descoberta da vida, posterior à falta de objetivo de vida durante a participação no mundo das letras, embora desemboque em repulsa no primeiro momento, haverá a libertação no epílogo revelador das angústias, mágoas, dor e tristeza. Mas Cantet vê luz no fim do túnel e o desfecho no navio é uma síntese da ressocialização redentora, e de que ainda há esperança numa geração perdida pela falta de diálogos, numa simbiose magnífica de literatura com cinema nesta obra de resistência.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Cléo das 5 às 7)


Cléo das 5 às 7

A cineasta belga Agnès Varda, naturalizada francesa, é a grande homenageada deste ano na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em uma justa celebração deste ícone do feminismo das telonas, que teve em As Praias de Agnès (2008), seu penúltimo filme e o segundo longa autobiográfico, ganhador do prêmio César de melhor documentário, com uma narrativa poética num passeio pelas praias que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida, lança um olhar breve de lembranças do passado. Visages, Villages (2017) é seu último filme, um documentário que realizou com o muralista JR numa viagem em um caminhão para realizar o documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes. Participou com o marido Jacques Demy no antológico movimento Nouvelle Vague, em uma contribuição valiosa e histórica para o cinema, ao lado de monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Marguerite Duras, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. A realizadora tem uma filmografia marcante e recheada de grandes filmes como As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000).

Um clássico da diretora que foi revisitado nesta Mostra é o sempre atual Cléo das 5 às 7, uma produção de 1962, que teve sua assinatura também no roteiro. A cópia restaurada está perfeita e a fotografia em preto e branco de Jean Rabier permanece magnífica. Embalado pelas canções comoventes do inesquecível Michel Legrand, morto em 2004, a trama focaliza uma cantora pop, a protagonista que empresta o nome ao título (Corinne Marchand- não só linda como talentosa) que está terrivelmente preocupada com os resultados dos exames médicos remetidos para uma biópsia por suspeita de um doença gravíssima. Procura uma cartomante que coloca as cartas de tarô para uma consulta e as previsões para seu futuro não são nada boas, deixando-a ainda mais impressionada e desorientada pelo pavor da morte precoce. Enquanto aguarda o diagnóstico definitivo, que deve levar em torno de duas horas, fica andando pelas ruas no entardecer de Paris e conversando nos bistrôs e cafés, observa as pessoas nas ruas com seus semblantes, dando sentido para as pequenas coisas da vida, que antes não eram tão valorizadas pela vontade de continuar vivendo como agora está demonstrado.

No drama desfilam vários personagens, entre eles uma amiga e o namorado, sua empregada que tenta em vão dar conselhos positivos, colegas e amigos com boas intenções, até que encontra um homem otimista numa praça que a faz sentir toda a essência da vida de que nem tudo está perdido. Deve ou não aproveitar seus últimos momentos de sobrevivência, como imagina pelo encaminhamento da situação? Mas Cléo encontra a paz antes de buscar os resultados que parecem sombrios dos exames. Aos poucos vai deixando seu egoísmo latente de lado e passa a ser uma pessoa mais generosa e voltada para o mundo, com uma percepção social mais acurada. É uma sensível narrativa feminista sobre um acontecimento que parece ser banal, mas causa angústia no espectador sobre o desfecho da possibilidade de um câncer terminal no estômago. Varda não desfoca a câmera da personagem principal, que irá conduzir o espectador para os detalhes dos parisienses em seus cotidianos neste belo passeio intimista sobre as nuances femininas no contexto da sociedade da época que gira no seu entorno.

Cléo das 5 ás 7 aborda a beleza e as dúvidas da protagonista num momento ímpar de reflexão, quanto as dúvidas e os anseios pelo que virá do diagnóstico tão aguardado de sua saúde. Torna-se uma mulher observadora para vislumbrar além do medo que toma conta dela, prestando com muita atenção nos detalhes e nas pessoas que passam e seguem seus destinos, em meio aos conflitos internacionais que repercutem. Até um diálogo de estranhos num café soam como luzes e definições para radiantes momentos de pura poesia que contrastarão com as belezas naturais existentes no parque. Repassa sua vida em duas horas num tempo de realismo e sincronia com o passado pouco explorado, através de flashbacks mentalizados pela sensação que ainda existe de poder continuar usufruindo como momentos únicos buscados na memória. Há uma empatia entre a plateia e aquela mulher sofrida pela angústia de talvez estar se despedindo, mas sem pieguismos baratos, tudo com muita lucidez e com um uma certa realidade pela câmera que acompanha os passos de Cléo.

Um sutil drama existencialista por uma ótica diferente da visão estereotipada vista em muitas realizações menores sobre a vida e o fenecimento do ser humano, num sensível mergulho nas emoções e na luta pela sobrevivência. Não há lugar para futilidades, mas um retrato denso, às vezes leve, de uma construção dos fatores psicológicos inerentes da cantora atormentada pelas armadilhas do destino. Eis um mosaico bem fundamentado desta diretora autoral sobre o presente estremecido por uma circunstância, o passado revisto e colocado em xeque diante de um futuro incerto que só o tempo dirá. Mas antes há o medo que dará lugar para o êxtase de viver sem sobressaltos, deixando para trás o orgulho, a simbólica peruca como quem se liberta de um estorvo e as picuinhas rotineiras pelos caminhos, dando espaço para uma visão elevada do sentido da vida com toda dignidade como uma simbiose buscada na dor e na alegria.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Happy End)


Happy End

A França em coprodução com a Alemanha e a Áustria tem um digno representante nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o perturbador drama familiar Happy End que representará a Áustria no Oscar de filme estrangeiro de 2018. Após permanecer cinco anos afastado das câmeras, o cineasta austríaco por adoção e alemão por nascimento Michael Haneke está de volta na direção e ainda assinou o dinâmico roteiro, depois do premiadíssimo Amor (2012), que realizou com Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva como protagonistas e pais da personagem que era a filha do casal, interpretada por Isabelle Huppert, como uma coadjuvante de luxo em pequenas aparições. Entre seus filmes estão O Sétimo Continente (1989, 13ª Mostra), O Vídeo de Benny (1992, 16ª Mostra), Violência Gratuita (1997, 21ª Mostra), Código Desconhecido (2000, 24ª Mostra), A Professora de Piano (2001, 38ª Mostra), O Tempo do Lobo (2003, 27ª Mostra), Caché (2005, 29ª Mostra), A Fita Branca (2009, 33ª Mostra), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Amor que também ganhou a Palma de Ouro, o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

No drama A Professora de Piano, o realizador já evidenciava seu talento na abordagem da personagem da professora que instiga pela perversidade latente de uma misteriosa educadora de música com gostos estranhos, com mais um desempenho notável de sua atriz-fetiche Isabelle Huppert; em Cachê , aborda as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para a casa de um casal francês que está sendo vigiada; em A Fita Branca demonstra lucidez com a parábola sobre o nazismo que se alastrou pelo mundo e estigmatiza sutilmente o rigorismo da religião, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem; na realização anterior dá um mergulho crepuscular na vida de um casal de professores idosos aposentados da música, que vive apaixonado por mais de cincoenta anos em Paris e depara-se com a doença terminal, com o epílogo de uma existência e toda sua decomposição humilhante, decorrente de dois derrames cerebrais na mulher e sua decrepitude com o passar do tempo. É profundo sobre as relações humanas e o grande amor do casal de idosos.

Haneke dá uma livre continuação do drama Amor sem nenhuma cerimônia em Happy End, com o mesmo personagem Georges, agora como um milionário patriarca cercado de problemas, interpretado por Trintignant, que não admite estar preso em uma cadeira de rodas, tenta a eutanásia em vários países, em uma temática que estava velada em seu último longa; a mesma filha Anne com Huppert atuando, só que agora ela tem um namorado e um filho adulto (Franz Rogowski) que está perdido na vida, sem um destino certo de sua profissão e a vida amorosa. Acha-se um inútil e demonstra carência afetiva da mãe distante e fria, e o pai sequer o procura. O irmão de Anne, Thomas (Mathieu Kassovitz) é um médico que se separou, mas dedica-se a aventuras eróticas pela internet, que leva a filha adolescente (Fantine Harduin) para morar com a família na mansão, depois da doença e do suposto suicídio da ex-mulher. A menininha também tenta se matar, após uma desavença diante da pouca atenção do pai e o medo de ficar sozinha. O desabamento de uma parte da empresa petrolífera do patriarca e as encrencas com funcionários e vítimas, que levam para uma discussão judicial, que irão compor este notável painel de atribuladas situações que deterioram as relações humanas de maneira crua dos entes integrantes daquele microcosmo familiar, em Calais, no Norte da França, captadas pelas lentes da fulgurante fotografia de Christian Berger.

Um retrato sombrio e doloroso da vida de uma alienada família burguesa europeia numa sociedade de consumo em decomposição pelo olhar realista pelo pessimismo característico do cineasta, de um mundo sem final feliz que contrapõe o irônico título da obra. As comunicações são enfatizadas no enredo através de redes sociais, deixando pouco espaço para o diálogo, exceto aquele da neta e do avô, em uma das raras aproximações afetivas que quebram a gélida rotina deles todos, em uma revelação sobre o passado que dá o gancho do filme antecessor. A trama não tem arroubos ou manifestações esperançosas, como já antecipa o prólogo, em longos planos-sequência com alguns contraplanos menores que individualizam e marcam a solidão e a frieza dos personagens, com a busca intensa do ocaso da vida pelo patriarca, a neta e a mãe dela. Não usa subterfúgios no seu estilo direto e seco de dirigir, abordando as mazelas intrínsecas de forma nua, crua e arrebatadora, sem preocupações alegóricas, com o recurso de elipses das cenas com propriedade, mas com um olhar implacável.

Happy End está abaixo dos dois filmes anteriores, mas mantém a lucidez dos grandes realizadores nas emoções existenciais diante da pouca esperança que deposita na humanidade. Atento ao progressivo fim do ser humano, que quer livrar-se pela eutanásia, ou pelo suicídio. Também cutuca a aristocracia que não aceita os imigrantes, em especial os negros, como na simbólica aparição deles na grande festa de noivado de Anne, através do convite feito pelo seu filho. Com refinamento expõe a hipocrisia de uma casta na sociedade que vive em outro mundo, por ignorância ou completa alienação. Exercem um poder doentio que recebem tintas de crueldade pela perversão exercida pelos personagens desta galeria de tipos estranhos e confusos psicologicamente, numa construção de grande realismo cênico para impressionar e incomodar, retirando o espectador de sua zona de conforto. Ninguém escapa, nem mesmo a neta e seu instinto perverso, ao conduzir placidamente o avô à beira do mar, com um propósito nada amistoso. Um ótimo filme com boas surpresas materializadas num desfecho revelador que contextualiza a amargura e sem nenhum sopro de otimismo.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Vazante)



Vazante

O Brasil se faz representar- e muito bem- em coprodução com Portugal na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo com o polêmico drama histórico de época Vazante, sob a direção de Daniela Thomas, em sua primeira incursão sozinha como diretora, que também assina o instigante roteiro em parceria com Beto Amaral. Uma abordagem significativa em uma obra fascinante sobre a escravidão brasileira no século XIX, sob o olhar de uma garota branca, também vítima de uma sociedade austera e ainda completamente ausente no sentido dos direitos iguais entre homens, mulheres e raças. A cineasta começou a carreira no início dos anos 1980, no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York, mas sua estreia foi codirigindo Terra Estrangeira (1995, 29ª Mostra) com Walter Salles. A mesma dupla ainda realizou O Primeiro Dia (1999, 23ª Mostra) e Linha de Passe (2008, 37ª Mostra). Em 2009, codirigiu o longa-metragem Insolação, desta vez com Felipe Hirsch, sendo exibido na 33ª Mostra de São Paulo.

A trama retrata a escravidão em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1821. O protagonista é um homem branco português que retorna para casa, depois de uma longa viagem como um obstinado tropeiro conduzindo uma tropa de escravos. Antonio (Adriano Carvalho) logo recebe a triste notícia da esposa morta com seu filho no trabalho de parto. Amargurado com a inesperada perda, sente-se solitário e isolado em uma fazenda pouco produtiva pelo terreno inóspito. O viúvo casa-se com Beatriz (Luana Nastas), uma menina ingênua que fez uma brincadeira e não imaginava o desenlace. Ela ainda sequer atingiu a puberdade, o que vai deixando frustrado o senhor feudal todo poderoso em seus planos de ter filhos. As idas do marido em viagens longas de expedições para negociar escravos e gado, acabam propiciando uma aproximação da garota com o filho do escravo resistente que dá cabo de sua vida, por não suportar as humilhações ali impostas, principalmente por ver sua mulher tendo que saciar sexualmente os prazeres do patrão. O filho do casal, um adolescente observador que sofre calado com uma dor lancinante de revolta pela situação, tem uma grande ternura e carinho pela jovem esposa de Antônio, criando-se um clima de sedução, amor e traição, que irá causar um epílogo por uma espiral catártica de uma violência desmesurada, com o choro dos recém-nascidos como uma alegoria de novos tempos no horizonte.

O filme que abriu a mostra Panorama no Festival de Berlim, em fevereiro, contextualiza e aponta sem rodeios o machismo ao extremo, com a sonegação da falta de voz à mulher branca ou negra, tanto faz, ambas eram tratadas como escravas, sem direito algum de reivindicação. Há imparcialidade e bom conhecimento de causa pela realizadora para expor a polêmica temática, que lhe rendeu protestos e vaias no último Festival de Brasília, em setembro. Há situações que não agradaram alguns, como o personagem Geremias no papel de um escravo com ascendência sobre os demais, maltratando seus pares com crueldade e um rigor bestial pela desproporção, só vai amealhando ódio e repulsa dos demais. Já o negro rebelde que se nega a ser constantemente exposto em situações humilhantes, que tem um fim pouco heroico, ao entrar em conflito, tanto com Geremias como com o patrão, ambos parecem ser extraídos do filme Django Livre (2012), de Quentin Tarantino. Geremias, pela semelhança com o assessor e bajulador que vende a honra e a dignidade ao patrão, torna-se um severo e intransigente personagem contra a própria raça; já o escravo insurgente segue a trilha do próprio personagem mítico Django, mas ao contrário deste, é o anti-herói.

O contingenciamento da barbárie avizinhada, tanto na relação pedófila entre o marido e a sua nova mulher, ainda que uma menina impúbere, aliados aos fatores pré-estabelecidos machistas e de subordinação da fêmea ao macho no aspecto antropológico ultrapassado, resultando nas sucessões de fatos que darão um clímax áspero pela singularidade das circunstâncias. Já o som dos pássaros substituindo a trilha sonora através de uma fotografia desglamorizada em preto e branco de Inti Briones, por uma linguagem visual e sonora magnífica, que irão criar um realismo fiel àquele lugar hostil e perverso da submissão feminina e da odiosa e repugnante escravidão negra pelos seus senhores de escravos portugueses. O sistemático estupro da escrava pelo senhor branco, além da menina, uma criança que sequer sabe sobre sexualidade, ao ser ofertada pelos pais para um matrimônio absurdo, sem contestação de ninguém, nem da mãe subjugada, em um ambiente de inequívoca veracidade.

Vazante é um estrondoso drama silencioso sobre a história da escravatura brasileira, só quebrado pelos raros diálogos, onde a expressão do olhar, as imagens bucólicas e horrendas e as atitudes pelas expressões corporais estão presentes e dialogam com a plateia de maneira fabulosa. Predominam as cenas, sem necessidade de falas repetitivas de longos e vazios no conteúdo, como são vistos em muitas realizações ineficientes e que não traduzem o melhor do cinema como essência. Num tom seco, emoção contida e música lacrimejante ausente, Daniela dá brilho pela profundidade da abordagem ao mostrar de forma crua os escravos viajando presos por grossas correntes. Não apresenta explicitamente a exploração das sevícias, da tortura e do sadismo que eram praticados pelos escravocratas contra os negros chicoteados e esfolados de forma exposta visceralmente. Opta por uma narrativa densa. Sugere a construção do império pelo trabalho escravo de uma perversa relação sustentada pela força e a violência de quem detém a economia e o poder financeiro. Nada é mais execrável e violento do que o horror da escravidão de uma raça depauperada brutalmente como retrata esta primorosa obra com espantosa criatividade por um cinema abundante e verdadeiro na sua estrutura para o alcance do conteúdo profundo.

domingo, 29 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Uma Questão Pessoal)


Uma Questão Pessoal

Veio da Itália direto para a 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em coprodução com a França, o razoável drama de guerra civil no verão de 1943, em Piemonte, no território italiano, Uma Questão Pessoal, com uma fotografia simplesmente espetacular de Simone Zampagni. A direção e o roteiro são dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, em mais um longa-metragem da vasta filmografia da dupla. Eles deram início em suas carreiras com uma série de documentários e, entre seus filmes de ficção, os mais famosos são: Pai Patrão (1977) que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano; A Noite de São Lourenzo (1982); Bom Dia, Babilônia (1987, 11ª Mostra); A Casa das Cotovias (2007); e César Deve Morrer (2012), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim. A 30ª Mostra exibiu alguns de seus importantes filmes políticos, tais como: O Prado (1979), Os Subversivos (1967) e Sob o Signo do Escorpião (1969).

O último filme dos realizadores, César Deve Morrer, ambientou a peça teatral Júlio César, de William Shakespeare, que foi levada ao cinema pelos irmãos octogenários Paolo e Vittorio, à época com 81 e 83 anos respectivamente, para ser encenada por um grupo de presidiários selecionados pelo teatrólogo Fábio Cavalli, também responsável pela montagem de A Divina Comédia Humana, de Dante. O local escolhido para o cenário foi a prisão de segurança máxima Rebibbia, em Roma. Fizeram com muito fôlego um comovente e maravilhoso registro documental ao ficcionar o enredo trágico numa adaptação magistral para as telonas escuras, sendo vencedores do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2012. Cinco anos depois, parece que a fonte da inspiração secou, a disposição embora esteja vigorosa e repleta de energia decepciona pela redundância, beirando a tolice novelesca da clássica disputa de uma linda mulher por dois amigos inseparáveis, como se fossem irmãos. Nada de novo, tudo velho e já contado inúmeras vezes por diversos diretores. Uns com mais inteligência e senso criativo, outros caindo na mesmice de sempre e sem alternativas para inovar, no que se enquadra os Taviani.

Uma Questão Pessoal é um retrato pouco inspirado e bem convencional de uma guerra civil na Itália, nos anos de 1940, entre os fascistas (denominados de vermes) contra a resistência (chamados de partisanos), estes contrários à política de Benito Mussolini, o líder máximo (O Dulce) durante o período de 1922 a 1943- quando foi preso por tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial- foi o grande criador do movimento fascista, que deu origem ao Partido Nacional Fascista, no fim da década de 1910, sendo o primeiro ideólogo totalitário a chegar ao poder máximo de uma nação da Europa Ocidental. A aspiração ao controle total do Estado na vida dos cidadãos acabou inspirando outros líderes políticos da época, entre eles Francisco Franco, na Espanha e Adolf Hitler, na Alemanha. Porém, é bom ressaltar, que esta história também já teve dezenas de versões cinematográficas e teatrais.

O drama aborda o protagonista Milton (Luca Marinelli) que é apaixonado pela bela Fulvia (Valentina Bellè), uma moça que brinca com seus sentimentos num jogo arriscado e perigoso, pois gosta mesmo é de receber as cartas dele e flerta com pequenas armadilhas sentimentais do coração do sofrido rapaz com seu intenso amor e sempre com os pensamentos voltados para a musa de sua razão de viver. O tempo passa e um ano depois, Milton acaba aderindo à Resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial. Mas durante este período de imprecisão do romance, a obsessão lhe atormenta pelas dúvidas, logo acaba por descobrir que a sua amada está perdidamente apaixonada por seu melhor amigo, Giorgio (Lorenzo Richelmy), que também é membro do mesmo movimento em que lutam para depor o Dulce. Toma uma decisão difícil na sua trajetória, resolve ir atrás do grande amigo na bucólica e esplendorosa região de Langhe. O inesperado se sucede e Giorgio acaba de ser preso pelos grupos fascistas. O amigo tenta de toda as maneiras realizar uma troca de presos, mas suas tentativas são infrutíferas, sendo que em uma das raras chances ocorridas, o preso fascista era um maluco que simulava tocar bateria, mas sem prestígio para uma negociação, sendo que suas pretensões heroicas se encaminham para a frustração. E assim a trama se desenvolve com um certo marasmo rumo ao desfecho de pouca lucidez.

Há uma pífia reflexão sobre os efeitos da guerra civil e a truculência dos soldados e revolucionários em Uma Questão Pessoal, narrada pelo ponto de vista do protagonista partidário da missão assumida junto aos partisanos. Os jovens resistentes, entre os quais o personagem central e o secundário, atuam com pouca amplitude nas cenas contrastantes do cenário recriado pela elogiável reconstituição de época do figurino e da bonita trilha sonora, em especial, a encantadora canção do clássico infantil O Mágico de Oz (1939), de Victor Fleming e King Vidor, quando brilhou Judy Garland. Um filme que acompanha os sonhos ludibriados, a decepção, o sofrimento de um e a prisão de outro. A esperança que se esvai em um contexto de guerra entre compatriotas nas adversas causas que levaram para o confronto e o desencanto de uma geração que deu a vida nos campos ensanguentados da guerra sem limites, alimentados pelos déspotas de plantão, de forma brutal, tudo em nome do poder tirânico daquele período nebuloso, que é revisto nesta sofrível obra pouco inspirada e fragmentada pelo tédio da redundância criada sem grande esmero na temática.

sábado, 28 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (The Square- A Arte da Discórdia)


The Square- A Arte da Discórdia

Vai ser muito difícil surgir um filme melhor que The Square- A Arte da Discórdia nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Merecidamente foi o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano e representará a Suécia no Oscar de 2018. Esta comédia dramática tem a ótima direção do sueco Ruben Östlund, em seu quinto longa-metragem, também responsável pelo eclético e perturbador roteiro. Sua realização anterior, Força Maior (2014), foi vencedora do prêmio de melhor filme da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes daquele ano, retratava a atitude falseada da verdade com efeitos desastrosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção de lógica e equilíbrio, predominando o destempero pela facilidade da verve acusatória de não medir as consequências quase que trágicas no âmbito dos filhos e esposa, embora distante e ausente dos personagens. Ainda que tenha abusado das concessões, poderia ter um aprofundamento maior no tema da depressão, por exemplo, mas abordou com boa análise o sentimento de culpa e o ato pusilânime em relação aos familiares.

Agora o diretor se mete numa polêmica fascinante com The Square, esta extraordinária construção que marca como uma obra vigorosa e desafiadora ao questionar a arte contemporânea por uma crítica corrosiva, justamente num momento delicado em que museus estão fechando por pressão de setores conservadores e moralistas da sociedade, quase beirando a irracionalidade. Proíbe-se exposições para menores de 18 anos, sob a alegação de motivos como a pedofilia, a zoofilia, a sexualidade ousada, os órgãos genitais livres de cobertura, o racismo, e por aí vai. O ninho de vespas foi cutucado e remexido com vara curta, mas não falta contundência deste inquieto diretor de 43 anos. O foco do filme não é proibir e nem retirar o talento dos artistas sérios com seus potenciais reconhecidos, mas desmascarar os falsários que querem promoção através de uma arte empobrecida e sem valor significativo. Por isso, provoca e mexe com os brios de muitos blefes artesanais que são desprovidos de convicções estéticas minimamente definidas. Embora não esteja opinando de maneira definitiva, ao procurar a isenção, afasta-se com elegância da ridicularização por uma forma de simplificação barata, deixando para uma reflexão madura a liberdade de expressão.

O premiado filme tem consistência e um dinamismo num roteiro muito bem arquitetado, que deixa o espectador impactado em muitas cenas e em outra solta o riso fácil para desopilar de uma anterior mais pesada. Vai do clímax para o anticlímax com suavidade e eficiência de quem domina a arte do cinema. Östlund não tem um pensamento estreito que pudesse dar guarida aos defensores da moral e dos bons costumes que levasse para a retaliação ou um discurso vazio contra os artistas na acepção da palavra. Busca com força na dramaticidade apontar para as superficialidades de uma parte minoritária pseudocultural que quer dominar o mercado de maneira brutal. O fio condutor da narrativa está centrado em Christian (Claes Bang), um homem divorciado e um respeitado curador-chefe de um famoso museu de arte em Estocolmo, um pai dedicado às duas filhas menores que o visitam periodicamente, mas que, às vezes, até esquece dos dias agendados, pelo envolvimento com o cotidiano do trabalho, o que não invalida sua condição de abnegado por apoiar ironicamente boas causas. Mas as coisas se complicam quando se aproxima a nova exposição, que empresta o nome ao título do longa, diante da premissa de que a instalação deverá ter transeuntes convidados pelo altruísmo de seus papéis por serem dignos dos seres humanos responsáveis. Um cinismo comprometedor que coloca em xeque o profissionalismo dos organizadores.

A comédia mostra o paradoxo do protagonista que ignora seus próprios ideais ao ter seu celular e sua carteira furtados no meio da rua, quando estava em pleno convencimento de pedestres para compor o cenário que está montando. Ao deixar-se convencer por um de seus assessores, o curador acusa todos os moradores de um prédio popular, o que levará para uma situação caótica pelo inusitado garotinho que se sente injustiçado e quer reverter o fato junto aos seus pais. Ambos sentem-se envergonhados, acusador e acusado entram numa paranoia para um dilema sem precedentes, com um desfecho de purificação da alma e o resgate pelo trauma causado. Outra cena marcante pela eloquência é a de uma agência de relações públicas que cria uma fatídica campanha para promover uma das atrações aguardadas, a obra conceitual perfeita representando a preservação dos direitos e deveres, O Quadrado (referida no título), de uma artista argentina, com um vídeo viralizando nas redes sociais, num retrato mordaz como divulgação antiética. Não pegou bem explodir uma garotinha mendiga de cor branca, a reação na imprensa foi instantânea, com implicações das minorias pelos imigrantes de pele escura espalhados pelas ruas pedindo dinheiro e comida, que acabam sendo substituídos por uma loirinha. Exageros à parte da população e da cobrança midiática, tanto o museu como o curador sofrem retaliações, que levará para a explosão de uma crise que desemboca num desfecho pouco convencional nas relações estremecidas entre o homem e a instituição.

No embalo de uma magnífica trilha sonora que sustenta a realização da arte e seus questionamentos da estética em jogo, assim como no prólogo há a entrevista da jornalista com o curador, sem saber o que fazer da sua bolsa, ironicamente recebe a proposta para deixar num canto que poderá vir a ser um bom material para a exposição. Os montinhos de cascalhos com areia como representação de um fato pitoresco, mas que num incidente desabam alguns deles, causam um certo desconforto e a pergunta que fica: Isto é arte?. Mas o ápice do filme é a sequência devastadora e aterrorizante no sentido psicológico, quando ocorre a apresentação de um artista denominado de o homem-macaco (Dominic West- desempenho elogiável do ator que atua na franquia dos últimos longas Planeta dos Macacos) diante de uma plateia da elite num jantar de gala, estática e amordaçada pelo medo da importunação, que faz uma performance imitando um primata interagindo com o púbico e partindo para uma explícita tentativa de estupro de uma mulher. É o retorno da selvageria com tapas, bofetões, puxões de cabelo, mesa virada, tudo em meio à expectativa da arte e suas inquietações sociais, confundindo-se com a dissimulação de uma sociedade de consumo nos limites atropelados como vísceras expostas. Uma aula de cinema provocativo pela condução da realidade de uma temática polêmica com os subtemas propostos pelo expressivo diretor. Surpreende o desfecho com a materialização de uma crise existencial reveladora sobre a opressão, hipocrisia e os valores éticos. Uma mini obra-prima que contextualiza uma sarcástica crítica para debates que deverão polarizar sobre arte e cultura, causas e efeitos.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Amante Por Um Dia)


Amante Por Um Dia

A França está com outro importante representante nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o belo e sensível drama familiar intimista Amante Por Um Dia. Após ficar quatro anos afastado das câmeras, Philippe Garrel está de volta na direção, depois do autobiográfico O Ciúme (2013), que realizou com seu filho Louis Garrel sendo o protagonista. Divide o roteiro com Jean-Claude Carrière, Caroline Deruas e Arlette Langmann. O veterano cineasta, discípulo da Nouvelle Vague, que tem em seu currículo o longa de estreia Marie Pour Mémoire, ganhador do Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de Hyères, em 1969, também abocanhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992 com J'Entends Plus la Guitare, prêmio que voltaria a receber por Amantes Constantes, em 2005. Dono de uma filmografia elogiável como A Fronteira da Alvorada (2008) e Um Verão Escaldante (2011), entre tantos outros, além dos já citados.

Os amores com ciúmes como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente apimentado prepondera nos temas sempre presentes no cinema francês. O mestre François Truffaut obteve resultados magníficos com Jules e Jim (1961) e A Mulher do Lado (1981), assim como o festejado Claude Chabrol retratou com eficácia em Ciúme- O Inferno do Amor Possessivo (1994). Da Finlândia veio outro ótimo filme sobre a temática O Ciúme Mora ao Lado (2009), dirigido por Mika Kaurismäki. A realização anterior de Garrel manteve a tradição de boas obras sobre a temática recorrente e indispensável para um bom contingente de espectadores fiéis. Neste seu último drama, Amante Por Um Dia segue a trilha e não decepciona seu público devotado pelas inequívocas circunstâncias da alma e do coração. Não falta o amor com ardor e dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura beleza como uma poesia dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa amada.

Importante destacar a primorosa fotografia em preto e branco de Renato Berta, num tom melancólico e sem glamorização das relações, dá o equilíbrio exato nesta trama bem urdida da história sobre um pai, Gilles (Éric Caravaca) que namora uma aluna da faculdade, na qual ele dá aula de filosofia, Ariane (Louise Chevillotte), de 23 anos, sem tornar público o relacionamento por motivos éticos, mas que convivem no mesmo teto. Não está previsto que sua filha, Jeanne (Esther Garrel), que tem a mesma idade da futura madrasta, está voltando em definitivo para casa, logo após romper o namoro com Mateo, que parecia ser duradouro. O cineasta disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor em toda sua extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes. A solidão, o abandono, a iminência da terceira idade e a traição estão presentes nos personagens envolvidos que representam os papéis da vida no dia a dia da ficção e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã, como simbologia da existência e sua finitude.

O genial Alain Resnais, um dos expoentes da Nouvelle Vague, foi insuperável ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que torna-se ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio em Amar, Beber e Cantar (2014), um drama de sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como em Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011). Garrel tem uma admiração pelo velho mestre já falecido, por isto se esmera como um bom seguidor na essência do amor, do ciúme e da traição. No filme anterior sua relação é visível e magnífica na trama de um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com uma atriz e levam uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades financeiras. O rapaz faz de tudo e mais um pouco para ajudá-la a superar a crise e tenta arranjar um emprego para a amada. Encontra tempo para ser um pai presente e manter-se próximo à filha que reside com a mãe, mas é provocada pela garotinha que faz sentir ciúmes uma da outra. Já no drama atual, o ciúme está presente novamente, filha e namorada se aturam, mas uma desconfia da outra, até que ambas irão deixando rastros pelo caminho que levam para uma aleivosia, rompimento, a reconciliação de um outro personagem mergulhado na solidão, além das idas e vindas nas relações conturbadas. Há simplicidade com profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao drama.

Não há culpados apontados por Garrel em Amante Por Um Dia. São as escolhas livres e as consequências que os personagens irão assumir. A tentativa de suicídio pela perda de uma grande paixão, as infidelidades contumazes e fugazes no prazer sexual sem vinculação afetiva, como se fossem pessoas normais nas atitudes tomadas, além do desconforto do flagrante e da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos tacanhos pela falsidade ideológica. O cineasta cria imagens realmente fabulosas num preto e branco estristecido propositalmente, como nas sequências que indicam a felicidade sendo engolida pela decepção sombria nos passeios noturnos pelas ruas do bairro, ou na conversa entre pai e filha, e no desfecho simples e fascinante. A dor da perda e da falta de sinceridade a dois, diante da confiança que se esvai de um possível grande amor. Ao desenvolver a narrativa com a reconstrução do microcosmo familiar, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor incondicional. É boa a dose de emoção, neste aspecto estão presentes as grandes virtudes deste comovente drama que deixa fluir os traços de uma realidade dolorida e prazerosa.

Mostra de Cinema São Paulo (A Floresta)


A Floresta

Vem da Rússia talvez o melhor filme até agora da 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo. A Floresta tem um eclético roteiro e uma excelente direção do russo Roman Zhigalov, em seu primeiro longa-metragem. Nascido na região de Arcangel, atualmente vive em Moscou, formou-se pela Universidade Federal do Ártico Norte, trabalha com cinema e televisão em diferentes funções desde 2007. Uma agradável surpresa considerando ser um jovem cineasta estreante. É um drama contundente sobre a interação de uma família como núcleo e base para a contextualização com a vizinhança e seu cotidiano inerente, explora as fraquezas sem limites do ser humano, o prazer quase ilimitado pela aventura com as digressões amorosas retumbantes pelos destemperos de uma comunidade reprimida sexualmente, além do sofrimento cruel do próximo pelo alcoolismo e o papel da mãe superprotetora em xeque, bem como o avanço acelerado do capitalismo e da ganância diante da crise de valores.

O mote da trama é a descoberta de uma relação amorosa de Danila (Oleg Shibayev), um garoto de 16 anos que sofre bullying dos colegas, mas que falta as aulas no colégio para se deliciar no êxtase prazeroso da paixão juvenil por Katya (Natalya Rychkova), uma mulher que tem o dobro de sua idade e leva a vida com invejável garra e muita luta, pois seu marido vive bêbado e jogado em qualquer lugar da residência ou na rua, sempre dormindo, raramente está lúcido. Antes da explosão do romance, o menino passava horas observando a vizinha de uma velha cabana na floresta, não tinha coragem de tomar a iniciativa e sequer pensava em tentar se declarar para o seu amor platônico. O realizador habilmente coloca o pai do adolescente no caminho do filho, depois de fugir de um turbilhão de problemas, investe forte e pesado na mesma mulher. Mas o longa não tem somente o viés da disputa acirrada e quase doentia entre os dois, isto é apenas uma das alternativas para o desenrolar do enredo impiedoso e suas consequências nefastas.

Num mar de disputas coléricas, atentados contra a serralheria por possíveis concorrentes para a exploração da madeira numa concorrência desleal para auferir lucros, como bem retrata o epílogo com imensas toras empilhadas para serem vendidas, simboliza o descaso e a ausência de um vínculo mais afetivo na relação do microcosmo familiar, diante da vingança executada. A presença em cena, que tem na mãe superprotetora, preconceituosa e com uma atitude machista que reflete a sociedade daquela região. A aldeia em chamas está expondo suas diferenças, como o estupro da garotinha, a violência física e moral de Katya, mais a morte da velha senhora e o assassinato do homem moribundo pelo vício. Também há o incêndio criminoso e sem rosto numa ferrenha batalha pelo espaço e pelo poder financeiro. Neste contexto de intrigas e guerrilhas de gangues juvenis com brigas pré-agendadas nas ruas, está o pai e o filho arrastados para uma série de acontecimentos nos quais os vizinhos se revoltam em disputas alimentadas entre eles. Eis uma comunidade dividida ao meio que desembocará em acontecimentos trágicos.

Os fatos se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele lugar com seus mistérios contagiantes pelos intrigantes fatos que ocorrem e passam a fazer parte do núcleo de habitantes, com o auxílio da fulgurante fotografia de Yury Sergeev, bem coadjuvada por uma bela trilha sonora de Alexander Leonov e Olga Gaydamak. Uma alegoria das profundezas do poder e os métodos de mecanismos pouco convencionais para uma nação contrária à democracia e ao capitalismo. A mãe e esposa é uma personagem que é pouco convencional na história, não percebe a traição e preocupa-se com o desenlace do triângulo amoroso em que se meteu o filho, mas ao mesmo tempo suas atitudes são contraditórias. Não imagina e sequer vislumbra o que está bem próximo, mas deixa o sentimento maternal falar mais alto e ofuscar seus pensamentos pouco liberais e de alguma lucidez. Não entende o amor juvenil do menino, julga e conduz a situação de maneira pouco inteligente. Ao invés de atenuar, incendeia o ambiente hostil entre os dois, tal qual os mandantes e executores fizeram com a serralheria da sua família.

O drama explicitado em A Floresta comove o espectador, perturba pela exuberante narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas diferenças que levam para um desfecho sinistro pela iminência dos fatos que se desenrolam pela culpa assumida para livrar o verdadeiro culpado. A catarse na cena final inusitada é a sequência de mais um crime para lavar a alma, vingar outro, e ir ao encontro da redenção para um reencontro de desassistidos no purgatório da clausura pelas suas penas a serem cumpridas. Uma narrativa singular para uma realização maiúscula que aborda de forma clara e inequívoca os preconceitos, o machismo, a estupidez humana, a traição, o bullying, a violência juvenil, a disputa pelo poder financeiro e as contradições de uma aldeia que refletem uma sociedade em ruínas. Uma guerra velada que vai às vias de fato entre vizinhos conflitados por um capricho do orgulho nefasto quase sem freios que invadem um suposto universo de paz nas relações humanas civilizadas, ora atropeladas cruelmente num contexto amargo. A dramaticidade genuína flui com autenticidade para demolir um ambiente carregado de certa forma numa região conservadora e de falsa moralidade.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (El Pampero)


El Pampero

Mais um outro argentino na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em coprodução com o Uruguai e a França, El Pampero é um bom thriller policial com toques de drama familiar intimista, num retrato de uma situação aparentemente simples do personagem principal sendo colocado em uma conjuntura ameaçadora, de certa forma misteriosa, em uma fuga do seu destino para uma missão que se tornará perigosa com requintes que parecerão impossíveis de escapar das armadilhas que a vida propõe e na ameaça velada. Num cenário intrincado de dúvida quanto à inocência acaba inconscientemente envolvido na trama bem arquitetada. A direção é de Matias Lucchesi, que dividiu o roteiro com Gonzalo Salaya, neste segundo longa-metragem do jovem cineasta argentino nascido em Córdoba. Deu início em sua carreira com o curta Distâncias (2010), e a estreia nos longas se deu com Ciências Naturais (2014, 38ª. Mostra), vencedor do Urso de Cristal de Melhor Filme na Seção Generation Plus do Festival de Berlim.

Um suspense psicológico com um roteiro enxutíssimo, conciso, que vai direto ao ponto, sem grandes elucubrações de retóricas cinematográficas exaustivas com mirabolantes planos e contraplanos. El Pampero aborda com suavidade e, às vezes, levanta o tom para atingir um clímax bem satisfatório. Fernando (Julio Chávez- em desempenho elogiável) é um homem com um diagnóstico médico de uma doença terminal, como se vê no prólogo. O telefone toca enquanto ele arruma suas coisas para afastar-se da realidade e rumar para uma viagem espiritual sem destino. Ouve-se a voz do filho tentando insistentemente falar com o pai, que não atende e mostra-se sombrio com o triste quadro daquela dor pela amargura de seu olhar perdido. Embarca numa jornada em seu barco veleiro em busca de refúgio na aprazível natureza. Mas aparece de supetão uma grande surpresa no interior da embarcação, quando se depara com uma mulher jovial (Pilar Gamboa- impecável em seu papel) dentro do banheiro. Toda ensanguentada, ela foge de um assassinato ocorrido num barco de propriedade de um homem poderoso no Puerto Madero, jura ser inocente e não ter nenhuma participação no crime.

O roteiro dá uma guinada significativa, diante da decisão de Fernando em mudar seus planos para interromper seu retiro existencial. Ajudá-la seria sua última chance de sentir-se útil e continuar vivendo não como um parasita ou um pobrezinho resultado de uma rasteira do destino, mas como qualquer pessoa normal, sem piedade ou estigmatizado pela vitimização na sociedade. No trajeto de extradição da mulher, o barco singra as águas do estreito rio mansamente e repleto de lugares esplendorosos de uma natureza invejável de arbustos e árvores frondosas. Brilha a fotografia magistral de Guillermo Nieto, com uma invejável elaboração na qualidade do colorido e as sutilezas captadas pela precisão das suas lentes. Ela quer retornar para o Uruguai, seu país de origem, mas há um imprevisível imbróglio com um guarda costeiro (Cesar Troncoso- sempre ótimo em suas atuações) que se diz amigo do protagonista. Surgem diversos entraves e desejos doentios que dificultarão a missão da dupla, cada um com seu objetivo traçado.

Com a câmera dinâmica acompanhando os movimentos dos personagens em suas trajetórias, atua como cúmplice na realidade temporal e pela invasão da privacidade. A história é contada em doses homeopáticas para ir desenrolando lentamente o emaranhado dos enigmas que vão se dissipando e que irão se sobrepondo. Como se estivesse investigando um possível crime, embora exista uma forte tendência, há dissimulações que causam algumas dúvidas. A possível culpa escondida e uma tênue vingança se entrelaçam e caminham juntas para um desenlace de moderada dosagem de suspense que traz uma boa eficácia numa densa narrativa fiel, seca e de inegável qualidade, embora fosse possível um aprofundamento maior. O protagonista abatido por uma moléstia fatal e nebulosa mergulha numa imensa solidão, sendo sugerido pelo realizador uma possível ausência do filho que possa estar atormentando e corroendo seus pensamentos com um devastador sentimento de injustiça. A ligação telefônica no epílogo é reveladora e parece que é um grito para afastar os fantasmas decorrentes de uma situação da qual tenta se livrar com consequências bem realistas do acaso, como metáfora do vento (que empresta o nome ao título do longa) soprando para todas as direções do quadrante.

Importante se ressaltar a trilha sonora sem histeria e perfeita, que não chega a interferir na narrativa vigorosa e com sustentável fôlego no transcorrer do enredo. El Pampero pode não surpreender como uma notável obra, mas tem méritos no conjunto da produção, tanto pela bela fotografia que explora as belezas naturais, como pelo homogêneo elenco sem estrelismo, além do roteiro enxuto. Um thriller que apresenta uma razoável construção psicológica para um contexto de emoção contida e, de certa maneira, acertada, sem se afastar do ponto de um equilíbrio mesurado para um clímax adequado. Um filme que segue o caminho da inarredável luta pela liberdade, mas sem perder a dignidade até a tentativa de deportação, embora haja dissabores num calvário de tormentos para um retorno inesperado. Uma criação típica do gênero com as ferramentas organizadas para a direção do isolamento de circunstâncias do personagem central em um plano que envolve sua solidão pelos fantasmas misteriosos que assombram um presente de pouca perspectiva. Promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar um desfecho revelador que contextualiza a amargura, o pessimismo e um sopro de otimismo para os desacreditados.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Saudade)


Saudade

Numa coprodução do Brasil com Portugal e Angola temos outro sensível e interessante filme na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Saudade, com direção do paraibano (foi em Pernambuco que fez a carreira cinematográfica) Paulo Caldas, que dividiu o roteiro com Giovanni Soares. O cineasta realizou seu primeiro longa-metragem em parceria com Lírio Ferreira, o badalado Baile Perfumado (1997); dirigiu o documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (2000); depois veio Deserto Feliz (2007, 31ª Mostra) e País do Desejo (2011, 35ª. Mostra). Foi um dos roteiristas de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, 29ª Mostra). Voltou com energia renovada para fazer um apanhado da busca para entender com dignidade o significado da palavra que empresta o nome ao título do filme. Retrata com sutileza a relação transversa estabelecida entre a produção artística e a saudade apresentada pelo olhar de artistas brasileiros e portugueses contemporâneos, entre os quais estão atores, atrizes, diretores de cinema, escritores, roteiristas, poetas, historiadores e cenógrafos, entre tantos.

Um quadro magnífico retratado nas viagens pelos países de língua portuguesa, com sotaques, melodias e olhares diversos, além dos aspectos plásticos e sensoriais que faz o espectador mergulhar no documentário através dos mares profundos de beleza e poesia, através da bela fotografia de Pedro Sotero. Uma instigante viagem com fados típicos pelo modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes lusófonos, como a fadista Ana Moura cantando sobre a temática proposta pela palavra náufraga que serve de título. Nos diálogos da entrevista com Caldas, ao melhor estilo do documentarista célebre Eduardo Coutinho ou do uruguaio Ricardo Casas, que realizou El Padre de Gardel (2013), domina a técnica de entrevistar e ouvir os personagens no vasto painel humano, deixando fluir o tema com brilho e elegância. Pode-se ver o historiador Duval Muniz afirmando que “a saudade é ontológica”; o ator luso-africano Miguel Hurst recita uma bela poesia sobre o verbete existente só na língua portuguesa, menciona o aroma de uma comida da infância: “O cheiro provoca algo tão vazio quanto as palavras que você não disse”; o escritor Bráulio Tavares é categórico: “Quem vive só para o presente é uma casa sem alicerces”; o trovador Antonio Marinho é direto: “Não ter saudade de nada é não ter nada na vida”.

Além das frases marcantes, há os depoimentos do festejado escritor Milton Hatoum definindo saudade como uma melancolia grega, embora a origem venha da etimologia do negro; o cineasta Ruy Guerra (na foto acima) manifesta-se sobre o pavor da morte derivando para um estado de irritação; o teatrólogo Zé Celso Martinez explica a relação da morte com a saudade pela tragédia na qual o drama perde espaço significativo. Uma atriz alemã não conhecia o sentido da palavra e toda sua extensão em seu país, descobriu aqui no Brasil, e indica definições como ausências de casa e do mundo como as mais próximas. Sem o uso da internet ou de outros meios, são vários depoimentos para a câmera em som direto dos intelectuais, além dos já mencionados, há a escritora Adriana Falcão, a fotógrafa Adelaide Ivánova, a coreógrafa Ana Guerra Marques, a roteirista Marta Nehring. Foram 300 horas de material filmado, decantados por dois anos na edição do olhar apurado da montadora Vânia Debs em harmonia perfeita pela sinestesia deste diretor autoral que se debruça sobre relatos de sobrevivência e de reinvenções com seus entrevistados.

Saudade não é somente um filme de planos de sensação de digressões alternados com falas e cantos entristecidos dos fados que exploram muito a dor do passado, quase à exaustão. É um fabuloso mergulho na sensibilidade do espectador, através dos enunciados sobre as derivações que vão da melancolia até o saudosismo, passeia pela dilacerante nostalgia enraizada, passando pelas “perdas de quem só sente por que já teve”, como afirma um personagem. Também a saudade da maternidade que passou e deixou marcas positivas relevantes para sempre, como afirma uma mulher; ou aquele que diz que só sente quem fica, quem parte vai em busca de novos horizontes, por isto a saudade está atenuada. O historiador Miguel Gonçalves Mendes parte para o exercício político: “Após 48 anos de ditadura, compramos o papel de vítima”. Uma similitude no tema está no comovente drama familiar Chega de Saudades (2008), de Laís Bodanzky, sempre atenta às circunstâncias e às reflexões de todas as idades e à intolerância, ao retirar o peso da terceira idade, mas com muita doçura demonstrava todos os seus problemas inerentes à velhice e o tempo que se esvai lentamente, deixando recordações mescladas com mágoas e lembranças de saudades da vida.

Um excelente filme que faz emergir as dores das mais diversas pulsações afetivas, pois há uma imensa identidade visual no filtro da realidade pela confissão espontânea com certa amargura de alguns mais saudosistas. Eis uma diversidade de definições e reflexões preciosas deste exercício documental de um ensaio para o significado de uma palavra eloquente, que todos da plateia sentiram no âmago, por já terem de alguma forma se deixado trair pelo choro, ou até esboçado um sorriso maroto de alívio de uma tensão, ou de uma dor lancinante acusada pela alma ou pelo coração. O cineasta marca com tintas fortes esta singular contribuição sobre a saudade e seu senso mais amplo derivando para o existencial, contado com ardor e dor, falando da morte que se aproxima ou que já tenha deixado rastros. O melhor é se deixar levar pelos fados melodiosos lusitanos com sua tradição e ouvir os relatos com vozes embargadas e em outras beirando uma existência da mais alta reflexão sobre a vida, mesmo com uma sensação melancólica inarredável e poética do sentimento e dos seus efeitos sensoriais.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Zama)



Zama

Um outro filme que havia uma grande expectativa nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo é o épico Zama, quarto longa-metragem da argentina Lucrecia Martel, que também é a responsável pelo roteiro, numa coprodução da Argentina com o Brasil, Espanha, França, México, EUA, Holanda e Portugal. Fez sua estreia como diretora na obra-prima O Pântano (2001), ganhador do prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim, depois filmou A Menina Santa (2004), que recebeu menção honrosa na 28ª.  Mostra de São Paulo, e A Mulher Sem Cabeça (2008) foi sua derradeira realização. Agora, quase dez anos inativa, envereda em seu novo longa para uma abordagem sobre a história de um homem amordaçado por ele mesmo num contexto ambientado em uma região pantanosa, onde hoje está fincado o Paraguai. O cenário é o final do século XVIII, na América do Sul, lugar no qual os colonizadores brancos escravizavam os negros e os indígenas eram deixados de lado, mas lutavam pelos seus direitos numa batalha inglória e desproporcional pelas suas terras. Eram guerras pelas independências contra a Espanha, mas que surtiria discutíveis resultados bem depois aos países latinos independentes.

Um relato histórico baseado no romance homônimo de Antonio di Benedetto, publicado em 1956, no qual o protagonista dom Diego de Zama (Daniel Gimenez Cacho), um funcionário da Coroa Espanhola com a função de assessor jurídico, aguarda ansiosamente por uma carta do rei concedendo-lhe a transferência do lugar onde está (Assunção) para um outro melhor e menos estagnado, sem a insalubridade ali existente, como se percebe nas casas caindo aos pedaços com requintes de mofadas, os mosquitos infestando os ambientes e o calor insuportável, apenas atenuado pelos negros que abanam os bancos como se fossem ventiladores manuais. Enquanto isto, na sua espera em vão, vai tocando suas tarefas de submeter os demais integrantes da expedição da colonização aos seus conhecimentos. Para garantir que nada irá atrapalhar sua mudança, ele é forçado a aceitar de forma submissa qualquer tarefa dada pelos diversos governadores que chegam ali por algum tempo e logo vão embora sem a menor cerimônia. Diante da série de entraves e dificuldades de comunicação com a Capital, a cobiçada transferência de retorno é adiada com frequência e sua paciência vai se esgotando.

No desenrolar da trama, a cineasta vai apimentando as relações do personagem-título com as autoridades coloniais que se deterioram cada vez mais. Acaba por entrar em choque com uma nobre sedutora e devassa (Lola Dueñas), seus conflitos ficam acirrados até com a população de índios e escravos negros. Não à toa esbofeteia uma nativa logo na sua chegada naquele lugarejo inóspito, por uma simples brincadeira da mulher. É o recado direto dos colonizadores aos colonizados. Os anos passam e a mensagem do rei nunca chega. Quando percebe que isso jamais acontecerá, ele já cansado da situação kafkiana se junta a um grupo de soldados num comboio militar que procura por um bandido célebre, Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele), que aterroriza a região, quase como uma figura mítica que morrerá muitas vezes e reaparecerá em outras tantas. Sempre surge alguém que jura ter liquidado o bandoleiro, chegando a exibir suas orelhas como um troféu cobiçado, porém sempre fica a dúvida. Na metade da narrativa, vê-se o personagem central liderar uma caçada humana, mergulhado na natureza e exposto a elementos e situações típicas que não mais controla. Deixa para trás o filho concebido com uma índia e mergulha numa febril e dolorosa missão que terá pela frente um confronto espetacular com tribos indígenas à noite, numa imersão pela floresta com o silêncio se contrapondo com o barulho da cavalaria e os gritos dos índios como silvos noturnos, numa cena inesquecível pela brilhante fotografia captada nas lentes do fotógrafo Rui Poças.

O filme mostra as mentiras da colonização e revela as trambicagens para obter-se resultados satisfatórios. Nada parece ser o que realmente parece como verdadeiro. O bandido assassinado e decapitado não passa de uma farsa teatral, já as pedras preciosas são cristais sem valor de mercado pela pobreza da qualidade. Zana é um personagem ambíguo por ser contraditório, rude e frágil, forte e frouxo, um anti-herói na essência, que parece não se completar como o que pretende realmente. A complexidade da situação colonial com a tentativa de transpor para a bacia do rio da Prata é um esforço recompensável da diretora neste terreno pantanoso que as cenas vão sendo retratadas para o espectador atento, embora de maneira um pouco cansativa, quase à exaustão, mas com bons méritos de uma trilha digna de um filme desta grandeza, considerando que representará a Argentina no Oscar estrangeiro do próximo ano.

Tanto nas realizações anteriores de Martel, como em Zama, as cenas são construídas de forma sensorial e com uma narrativa de intensidade baixa. As imagens são mais reveladoras e eloquentes que os diálogos, deixando o lado perceptivo da imaginação falar mais alto como forma de expressão. Não é daqueles filmes que primam pela descrição bem comum em ficções históricas com o viés épico da epopeia de heroísmos marcantes que entram para o rol dos afortunados. O rigor da abordagem pode variar quando se trata de colonização com vítimas e algozes para uma estreita relação das forças da natureza interagir com as dos seres humanos travestidos de homens desbravadores a qualquer preço.

Para alguns setores da crítica o filme se aproxima de um universo de filmes de jornadas delirantes e transcendentais, tais como: do tailandês Apichatpong Weerasethakul no polêmico filme Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), passando pelo Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979), e por Werner Herzog nos notáveis Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972) e Fitzcarraldo (1982). São os exageros pelo deslumbramento ou graças à bondade que parece estar presente em alguns críticos mais apressados que se deixam trair pela emoção momentânea. Zama cumpre com boa importância seu papel de abordar uma colonização vista por muitos como glamorizada, embora haja abjetas sujeiras empurradas para o limbo, que não são aprofundadas com rigor histórico imparcial. Em produções menores faltaram questionamentos de cobranças éticas de situações escabrosas de nossos antepassados. Méritos para a cineasta que tira o véu da impunidade para um bom debate.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Visages, Villages)


Visages, Villages

Vem da França outro interessante filme na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Visages, Villages, com direção e roteiro da dupla Agnès Varda e JR. Eles têm coisas em comum: a admiração apaixonante por imagens e o interesse pelos outros, além do questionamento sobre os lugares onde são mostradas as fotografias e a maneira como são compartilhadas e expostas, com entrevistas simples e soltas de personagens comuns do povo e sem voz, em especial as mulheres pelo perfil feminista da diretora. JR, de apenas 34 anos, é famoso por criar galerias e murais fotográficos ao ar livre, uma paixão deste artista visual brilhante. Quando os dois se conheceram, em 2015, logo deu o estalo, foram trabalhar juntos e realizar um filme no interior da França, bem longe das grandes cidades. Montaram um roteiro com um plano pré-concebido e até certo ponto aleatório e discutem o espaço de fruição da arte. Logo partiram rumo ao encontro de pessoas que são convidadas para segui-las em sua viagem no caminhão para realizar este comovente documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes.

A cineasta belga, naturalizada francesa, de 89 anos, que parece uma jovem pela energia abundante, é a grande homenageada deste ano na Mostra de São Paulo, em uma justa celebração deste ícone do feminismo nas telas, que teve As Praias de Agnès (2008), seu último filme e o segundo longa autobiográfico, ganhador do prêmio César de melhor documentário, com uma narrativa sensível e poética num passeio pelas praias que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida. Além de lançar um olhar breve de lembranças do passado, não deixa de mostrar seu presente e a alegria de dizer “estou viva, e eu me lembro” e na mais bela frase do filme que resumia seu amor imensurável pela sétima arte, assevera: “o cinema é minha casa”. Prestou um belo tributo ao seu marido morto de Aids, em outubro de 1990, o inesquecível Jacques Demy, autor de obras como Lola, A Flor Proibida (1961), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) com Catherine Deneuve e Duas Garotas Românticas (1967). Demy foi seu grande e único amor, mas quando fala dele embarga a voz, bem como ao prestar a homenagem com pétalas de flores e afirmar que é a pessoa que mais lhe faz falta na convivência diária, numa cena emocionante.

Varda é uma realizadora extraordinária e sua participação junto ao marido no antológico movimento Nouvelle Vague é uma contribuição valiosa e histórica para o cinema, ao lado de monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Marguerite Duras, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. Tem uma filmografia marcante e recheada de grandes filmes como Cleo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000). A diretora autoral e o muralista colocam na tela um mosaico do presente e o futuro, onde aparecem intercalados personagens com seus gatinhos de estimação; cabras com o leite sendo ordenhado manualmente para se evitar o barulho das máquinas; a voz sendo dada para três mulheres de estivadores colocarem seus pontos de vistas e ainda posarem em murais nos contêineres no local de trabalho dos maridos; a visita ao minúsculo cemitério para reverenciar Henri Cartier-Bresson, o pai da fotografia; mas há ainda o frustrante desencontro com o colega Godard, que grosseiramente a deixou esperando e não apareceu para um reencontro tão desejado, mas pouco inteligente de parte dele. Não faltou uma merecida alfinetada no veterano diretor.

Visages, Villages é uma verdadeira jornada itinerante pelas estradas em uma busca no paraíso de histórias contadas pelos outros para enriquecer com simplicidade, sutileza e sensibilidade o universo rico do cinema e seu fascínio inesgotável. Uma aula de vitalidade desta octogenária jovial acoplada com o gosto de viver intensamente, deixa sua zona de conforto em casa para se jogar numa aventura repleta de reminiscências e otimismo de uma realizadora fabulosa na companhia do talentoso fotógrafo e muralista, para dar vida a este documentário instigante desta “baixinha fofa” que mantém a alegria de viver como uma menina serelepe e altaneira. Atenta ao mundo e suas modificações e inovações, nem parece aquela garota que viu bombas explodirem da 2ª. Guerra Mundial, ao deixar Ixelles (sua terra natal), próximo de Bruxelas, e ir para a França buscar agasalho; presenciou crianças judias serem levadas para os campos de extermínio, além de outras adversidades como a prematura morte do marido, como registrou no filme anterior.

Uma vida dedicada exclusivamente ao cinema como elementos de amor e paixão pela vida e pelo que faz, que se fundem como uma simbiose com JR, neste quase ensaio em forma de apresentação dos resultados dos trabalhos realizados em torno de uma temática eclética, que desfila como a busca pelo novo e o interesse genuíno pelo ser humano, embora seja uma artista realizada com sua produção, mas que não pode parar, pois tem muito ainda para dar. Um filme delicioso e leve sobre a essência da existência, seus ensinamentos reflexivos e emoções com tiradas incríveis como: “Vai ver se eu estou lá na esquina”. Eis uma boa obra que contribui neste registro magnífico sobre a arte da criação cinematográfica com simplicidade e amor dos eficazes moradores contando suas histórias e situações típicas, registrando tudo aquilo que achavam interessante sem ter um personagem central, captando sons e as belas imagens da região com seus locais pitorescos que fundamentalmente giram em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares com as idiossincrasias regionais. Um cinema da pura essência.

domingo, 22 de outubro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (A Cordilheira)


A Cordilheira

Um filme que era aguardado com boa expectativa e não decepcionou na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este misto de drama político com familiar A Cordilheira, terceiro longa-metragem do argentino Santiago Mitre, que também é responsável pelo instigante roteiro em coautoria com o parceiro Mariano Llinás. Mitre foi roteirista dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero, fez sua estreia como diretor em O Estudante (2011), ano marcado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa, tendo abocanhado mais de 20 prêmios em festivais pelo mundo. O seu segundo longa, Paulina (2015), foi baseado no filme homônimo La Patota, de Daniel Tinayre, produção de 1961, retratando a temática da violência contra a mulher de uma maneira pouco convencional, sem ser sensacionalista, contextualizou a trama e deu luzes à história em uma reflexão mais profunda, tendo como subtema a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. O sucesso sorriu para este cineasta de apenas 36 anos, que obteve premiações de repercussão com a realização anterior em San Sebastián, Lima, Turim, Biarritz e Chicago, mas a principal láurea veio ao ganhar o troféu principal da Semana da Crítica em Cannes.

Eis um belo painel sobre os bastidores da política mesclado com os problemas pessoais de um chefe da nação que são abordados com esmero em A Cordilheira. Estão bem construídos psicologicamente pelo diretor os personagens fictícios, mas que são até bem facilmente identificáveis no cenário atual. Um retrato mordaz e bem fundamentado de uma conferência de presidentes latino-americanos na Cordilheira dos Andes, no Chile, na deslumbrante fotografia captada pelas lentes de Javier Juliá. Lá se discutem as estratégias com alianças espúrias para as geopolíticas da região num luxuoso hotel cinco estrelas. O presidente argentino recém-empossado em crise Hernán Blanco (Ricardo Darín- impecável e quase sempre ótimo em seu desempenho) enfrenta um drama que o forçará a encarar os mais intrincados conflitos das relações internacionais com seus vizinhos países. Numa situação antiética é mostrada toda a podridão dos bastidores da política e os principais componentes bem apontados no roteiro desta trama que enfoca o primeiro mandatário argentino (seria Macri?) tomando decisões que podem mudar o curso de sua vida púbica e privada para sempre, mas mesmo assim faz e joga pesado com a corrupção e os malefícios dos porões palacianos a serviço da grande farsa.

A reunião dos chefes de Estados da América Latina para discutir um projeto de aliança petroleira, mas que atrai a América Central por osmose, é recepcionada pela líder máxima do Chile, que tudo indica ser Michelle Bachelet, do México, Venezuela, Uruguai, Paraguai e o do Brasil (Leonardo Franco), apelidado de Imperador (seria Lula por ser espaçoso?), tendo em vista ser o país mais importante do Continente Sul-Americano financeiramente, além da presença de um representante dos EUA, que chega de repente para balizar os destinos e observar de perto as decisões da vizinhança e fazer ofertas indecorosas para Blanco virar o jogo e incluir os norte-americanos por tabela. Nem mesmo a filha, Marina (Dolores Fonzi- atriz de Truman, O Crítico e Paulina), escapa das tramoias do pai, embora casada, mas em fase de separação, na qual o ex-genro acusa o sogro de falcatruas na presidência, o que lhe custará muito caro, pois mexer com o poder tem um preço fatal.

A trajetória da realização é como se fosse um jogo de xadrez, com as mudanças no tabuleiro com tacadas certeiras e diretas ao ponto. Leva ao clímax somente no desfecho, pois no desenrolar do enredo gira entre as armações quase que sem saída, com os surtos psicóticos da mulher doente no hotel e a chamada com urgência de um médico que usa a hipnose como um método eficaz para trazer Marina para uma realidade, que parece não ser a mais adequada para o futuro da política do pai. Revelações do passado vêm à tona e poderá explodir um cataclismo pelos segredos guardados como fantasmas enjaulados e amordaçados, metáfora da filha vista pelo pai como um estorvo que continua sem tratamento para mantê-la alienada e ausente do núcleo familiar dos pseudolúcidos. No meio do turbilhão do processo que se desenvolve, a corrupção campeia nas cúpulas diretivas de alianças com tensões e desdobramentos escusos que os mortais ficam à mercê e sequer imaginam os resultados e o quanto lhes custarão no futuro. Abafar o escândalo que se avizinha como devastador é iminente, o que pode resultar na interdição da própria filha e calar sua precária lucidez.

Em A Cordilheira, todos os discursos daqueles homens da cúpula de líderes soam falsos, vazios e hipócritas, mas aos poucos vira uma contraditória verdade no voto derradeiro do pouco carismático presidente em sua busca obstinada pela manutenção do poder. Um filme que aborda os ardis inescrupulosos, torna-se cético e tem uma forte consistência de personagens com diálogos de interesses tacanhos e, às vezes, reverte e muda o rumo das expectativas que poderiam se encaminhar como soluções transparentes. Não é só uma reflexão ou crítica aos bastidores dos porões governamentais, mas o paradoxo da sutileza da mentira para fazer valer uma liderança contestada. Muitos golpes baixos e deslizes tumultuados pela falta do decoro, pois não há lugar para ingênuos e bonzinhos. O maquiavelismo está explícito onde “os fins justificam os meios”, parece ser copiado com maestria do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, criador do verdadeiro manual da política. O longa cumpre seu papel objetivo de apresentar as falcatruas das abjetas coligações, o jogo da politicagem e a sujeira empurrada para debaixo do tapete, vender a alma para o diabo, os conflitos de lealdade e confiança e o questionamento ético na vida pública. Fica a visão doentia dos homens obcecados pelo poder e seus envolvimentos com situações escabrosas, dignas de maracutaias da melhor estirpe. Um drama sutil e objetivo na sua conjuntura temática das causas e efeitos pelas imagens com força de grande expressividade, com rostos e olhares de certa perplexidade por algumas surpresas.