quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Lucky


Solidão e Existência

Lucky é o filme de estreia do discreto ator John Carroll Lynch, filho do cultuado cineasta David Lynch, que foi muito bem recebido pela crítica no Festival de Locarno, além de causar ótima impressão em outros festivais ao longo do ano. Chegou em setembro no circuito comercial como a grande despedida do nonagenário ator Harry Dean Stanton de antológico desempenho com seu semblante endurecido ressalta as dificuldades e vicissitudes do cotidiano, veio a falecer no mesmo mês, duas semanas antes do lançamento do longa. O astro que estará no remake Twin Peaks, já participou em mais de duas centenas de filmes e séries, como Alien, A Garota de Rosa Shocking e a obra-prima Paris, Texas. Neste seu trabalho derradeiro bem que merecia uma indicação ao Oscar. Uma realização em que o intérprete se assemelha de maneira mórbida ao personagem-título, tendo em vista que ambos não se casaram e serviram na Segunda Guerra Mundial.

A trama aborda o protagonista idoso de 91 anos que perambula pela pequena cidade onde mora, fumante inveterado que lembra o famoso personagem da propaganda de uma marca de cigarros, adora fazer palavras cruzadas e trocar informações com seus amigos numa velha taberna, que soa como uma terapia, como a do amigo Howard (David Lynch) e seu vínculo com um cágado de estimação que pode durar até 200 anos, mas que ao fugir de casa busca a alforria; ou do marinheiro em seu desabafo sobre a garotinha japonesa sorrindo para buscar o paraíso, em plena guerra; ou da insistência de Lucky para acender o cigarro dentro do estabelecimento, após um discurso libertário da quebra de paradigmas das normas rígidas civilizatórias para alcançar a liberdade do homem neste mundo passageiro. Vive à sua maneira, não faz concessões, é o tipo do politicamente incorreto até desmaiar num dia qualquer para começar a sentir o medo da morte, com o diagnóstico lacônico do médico de que apenas está ficando envelhecido.

Com um enxuto roteiro assinado por Logan Sparks e Drago Sumonja, o drama aborda de forma profunda a terceira idade e a tentativa de viver com intensidade. Um poema de amor à vida e exaltação à natureza, embora a decrepitude esteja estampada na fisionomia da compleição física com o fim bem próximo da morte espreitando. Uma magnífica reflexão sobre o passado e as amizades sendo fortalecidas neste epílogo de suspiro existencial. Martelam as lembranças de um rouxinol e seu canto que marcaram a época de garoto diante da morte por acidente do pássaro. Sem mulher e sem filhos, a companhia diária é apenas o cigarro e sua gaitinha de boca. Um personagem bronco no início da realização, mas que aos poucos vai cedendo lugar para um coração que amolece com a iminência da finitude, como no desabafo à amiga que o visita: “Eu tenho medo!”. O diretor assim sintetiza numa entrevista à revista Variety: “É um filme sobre a jornada na qual estamos todos seguindo, tendo de, ao fim, lidar com a fragilidade da vida, e, se tivermos sorte, podendo desfrutá-la ainda com vitalidade e valorizando o que realmente importa: cada momento”.

Eis uma obra sensível, poética e madura sobre a solidão. É memorável a cena do personagem central na festa de uma mulher mexicana com seus membros da família, quando canta junto com um grupo musical de mariachi e se enche de emoção, deixando o olhar perdido expressar através da imagem reveladora que dispensa o diálogo. É o restabelecimento da vontade de continuar existindo um pouco mais. É o estímulo que faltava e brota daquele núcleo familiar para abrandar a fragilidade do isolamento que dá lugar para o convívio e a fraternidade naquele espaço de harmonia prazerosa. Lucky é um filme sombrio, às vezes, mas no qual a melancolia, por alguns instantes, está presente e rasga os sentimentos através da triste convivência dos personagens solitários. Mas em outros momentos cede lugar para edificar, tanto pela amargura, pela dor, como por escassos momentos de prazer de um velho cowboy que manifesta os sentimentos de vínculos remanescentes de amor e anti-heroísmo. Remete pela similaridade temática enfocada para Sr. Kaplan (2012), do uruguaio Álvaro Brechner, e Nebraska (2013), do realizador independente americano Alexander Payne.

Um drama que poderia cair nas armadilhas do melodrama e derrapar no pieguismo, mas John Lynch se afasta com brilho e dá uma emoção dosada para se aprofundar numa reflexão sobre a existência e a finitude buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem da essência cinematográfica de um libelo sobre a velhice. O que busca o personagem é o reconhecimento da dignidade para ser valorizado como aqueles dos antigos faroestes no desfecho desta comovente narrativa contida e bem elaborada nos diálogos, com imagens deslumbrantes pela fotografia para um tributo ao cenário do Velho Oeste no Colorado, nos EUA, de uma paisagem deteriorada. Está bem coadjuvada por uma trilha sonora não invasiva que dá o tom certeiro na melodia, além da bonita homenagem ao pianista norte-americano Wladziu Valentino Liberace. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da morte pela jornada espiritual de aventuras de um ateu que começa a questionar o sentido da vida e a culpa pela magia peculiar da celebração de existir. Estão harmônicos os planos e contraplanos, adequados a um realismo visual inóspito apresentado com esmero cinematográfico daquele universo rude. Louva-se o promissor diretor por não ter se rendido a realizações descartáveis e fúteis que infestam nossas salas de cinema. Lucky é um candidato forte aos dez melhores do ano.

Nenhum comentário: