Guerra de Palavras
Com exibição este ano no Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard, A Trama é o mais novo longa-metragem do festejado cineasta francês
Laurent Cantet, que divide o roteiro com Robin Campillo. Consagrado no filme Entre os Muros da Escola (2008),
vencedor da Palma de Ouro daquele ano, numa abordagem profunda sobre o universo
escolar da França em meio às diversidades étnicas para questionar as crises da
civilização contemporânea; também realizou o extraordinário Retorno à Ítaca (2014), inspirado no
romance La Novela
de Mi Vida (2002), do escritor
cubano Leonardo Padura, retrata os fantasmas do passado que são rememorados no
reencontro de cinco amigos adeptos do sonho das mudanças que viraram utopias e
as desagregações familiares de Cuba, limitando a ação a um terraço com vista
para o Malecón- o famoso calçadão de Havana- e as habitações empobrecidas como
cenário único que levou mais de dezessete noites, superando a licença
governamental, diante do fator climático de muitas chuvas.
O drama social, em sua última realização, é um retrato
conciso da história de um grupo de jovens adolescentes com problemas na escola selecionados
para uma oficina literária com o objetivo de criar um romance policial, sob a
orientação da famosa autora do gênero Olívia (Mariana Foïs- de interpretação
sóbria). Novamente a figura professoral e os alunos ressurgem, como no título
premiado de Cannes. Mas o enredo toma proporções de um conflito político sobre
as imigrações e os atentados na França, especialmente o do Bataclan, em Paris
de 2015, e de Nice, em 2016. Há farpas e uma guerra de palavras com o racismo e
a xenofobia sendo expostos como vísceras que vêm à tona num ambiente
conflagrado pelo medo do terrorismo e dos crimes em série com viés religioso. O
cenário é em La Ciotat ,
uma cidade portuária em crise no sul da França, após o fechamento dos
estaleiros navais que traumatizou a pequena população, dificultando ainda mais
o acesso ao emprego.
Cantet conduz com habilidade e elegância o desenrolar da
história, que tem como protagonista Antoine (Matthieu Lucci- excelente no
papel), um rapaz que sobressai com ideias contrárias ao bom senso e fere o
prisma da isenção com provocações rasteiras e uma tendência para o crime
organizado com tintas de terrorismo. Revisita assuntos do cotidiano com uma
visão míope sobre a humanidade ao defender a morte pelo simples prazer. Entra
em choque e cria inimizades com os colegas da equipe ao trazer distorcidas
questões raciais das minorias e uma posição minúscula dos imigrantes árabes,
com a atmosfera esquentando em tais situações que beiram as vias de fato. Já na
cena inicial fica caracterizada sua contrariedade, ao afastar-se do grupo e não
pegar o ônibus, preferindo ir a pé sozinho. O conflito logo irá se estabelecer
e a temperatura pelas animosidades se transformará num caldeirão com a perda do
controle dos envolvidos.
A Trama - com um
elenco quase todo amador, exceto os protagonistas, uma marca do realizador, como
também foi em Entre os Muros da Escola-
é um espelhamento dos dias atuais na Europa, com tensões sociais à flor da pele
entre aquelas moças e rapazes brancos, negros, católicos, proletários, árabes e
muçulmanos. As discussões acaloradas, que tem como mote a forma e o estilo da
narrativa do roteiro a ser elaborado para o próximo livro da escritora e
supervisora, motivo pelo qual o aluno se rebela e explode ao se sentir usado
como uma cobaia. É a ponta do iceberg para uma polarização entre o suposto bem e
o estigmatizado mal, que irão ao encontro das desavenças e a integração dos
imigrantes no território francês com o terrorismo radical aflorando, bem como são
lançadas ideias para se saber como tentar lidar com tais armadilhas que
espreitam a civilização.
O diretor cria um painel fascinante de um filme realizado
com maturidade de um retrato dolorido pela decepção, através de uma crônica
reconciliatória das ilusões perdidas, no qual o personagem central nada mais é
do que uma espécie de um lobo solitário na alcateia. Ele terá na aproximação da
escritora sua exposição quase que doentia sendo demonstrada numa relação
edipiana consolidada pela falta de vínculo na ausência de diálogos em casa com
os pais e a manifestação iminente de companhias que o levam para o pensamento
conservador do fundamentalismo. A raiva e o ódio se entrelaçam para a
transgressão do extremismo na oficina que flutua para sessões de terapia e
interrogações que se espraiam. O tiro na lua soa como um grito de prazer pela
descoberta da vida, posterior à falta de objetivo de vida durante a
participação no mundo das letras, embora desemboque em repulsa no primeiro
momento, haverá a libertação no epílogo revelador das angústias, mágoas, dor e
tristeza. Mas Cantet vê luz no fim do túnel e o desfecho no navio é uma síntese
da ressocialização redentora, e de que ainda há esperança numa geração perdida
pela falta de diálogos, numa simbiose magnífica de literatura com cinema nesta
obra de resistência.
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