Solidão no Pampa
O primeiro longa-metragem do diretor gaúcho Giovani Borba, Casa Vazia, que também assina o roteiro, é uma agradável surpresa no cenário nacional, nesta coprodução com o Uruguai. Foi vencedor no Festival de Gramado do ano passado nas categorias de melhor ator, roteiro, trilha sonora, desenho de som e a fascinante fotografia com cores desidratadas, assinada por Ivo Lopes Araújo, que também ganhou no Festival do Rio de 2021. Uma exemplar construção de uma encenação que reflete as perdas do cotidiano na medida em que os sentimentos dão a transição do dia para o anoitecer e as expectativas que reservam. O realizador segue os passos da conterrânea Cristiane Oliveira, no drama familiar Mulher do Pai (2015), bem como há também uma boa similitude com Rifle (2016), de Davi Pretto. Em ambas as obras existe um universo taciturno do Pampa gaúcho, onde a solidão salta aos olhos dentro de um contexto desolador do trabalho rural em franca decadência ao migrar para o plantio de soja nos grandes latifúndios, na qual a pecuária perde espaço e ruma para uma provável extinção, causando um sério constrangimento social pelo desemprego.
São escassos os filmes que retratam as paisagens dos pampas no Rio Grande do Sul, um dos maiores biomas do Brasil, com suas vicissitudes e idiossincrasias características. Além dos já mencionados, há épicos sobre a vida dos heróis da Revolução Farroupilha, como o de Beto Souza e Tabajara Ruas em Netto Perde Sua Alma (2001), Netto e o Domador de Cavalos (2008), de Tabajara Ruas, e Anahy de las Misiones (1997), de Sérgio Silva, interpretada pela estupenda atriz Araci Esteves, que agora encarna a mãe do protagonista em Casa Vazia. O cenário de aventuras agora dá lugar para os campos extensos, antes usados somente como pastagens e criação de gado, porém cedeu seu território para a monocultura do grão. É nesse lugar que vive Raúl (Hugo Nogueira - ator estreante de convincente atuação), um peão desempregado de meia-idade, pai de família, que vive em uma isolada casa humilde, ou seja, uma legítima tapera com paredes sem tinta, raros móveis, sem água potável e internet, com energia elétrica gerada pelos cataventos, na imensidão solitária dos campos. O cineasta aponta para a mão de obra tradicional da lida com bois, vacas e ovelhas que já não serve mais aos novos padrões dos donos das terras. Assolado pela pobreza e a falta de trabalho, o personagem central se junta a outros indivíduos para a prática do abigeato -roubar gado- durante a escuridão das noites nas estâncias. Ao retornar de mais uma madrugada de ilicitudes, encontra sua casa vazia, tendo sua mulher e seus filhos desaparecidos.
A realização mostra o microcosmo familiar sendo abalado pela desgraça, por isto Raul procura uma benzedeira, onde é evocada a lenda do negrinho do pastoreio, segundo reza a lenda, ele ajuda a recuperar algo perdido. Além do desemprego recorrente nacional, agora tem outro problema a enfrentar: tentar reencontrar seus familiares naquela paisagem de tristeza e desolação, na qual é retratada uma vida sem dignidade com conflitos pessoais pela depressão e o alcoolismo latente. Da ação vem a reação dos fazendeiros da região que se unem à polícia local para cercar os transgressores da lei - embora vítimas de um contexto social pela degradação gritante- e realizam vigílias armadas na caça aos larápios. Enquanto isso, a trajetória do protagonista fica cada vez mais repleta de incertezas, está pressionado pelo líder do bando (Roberto Oliveira), que teme perdê-lo e faz intimidações. Do outro lado, está seu cunhado (Nelson Diniz), chefe da equipe de segurança dos estancieiros que faz uma oferta para trabalhar na repressão aos abigeatários. Concorda com os dois lados, sem convicção, e se vê num beco sem saída para a busca da altivez. As imagens dizem tudo, nem é preciso diálogos, de acordo com o lado em que esteja, é matar ou morrer.
O diretor mostra a emblemática dúvida de um peão solitário perdido no universo da ética e da dignidade em confronto com uma situação caótica, onde terá de lidar com a realidade das perdas familiares pelo abandono, as diversas transformações que cercam o rumo de um homem, até então, sempre digno e trabalhador. As peculiaridades típicas do interior, mais precisamente nas pastagens da campanha, onde o cavalo é trocado pela bicicleta, num disruptivo gaúcho com suas tradições elementares, no qual ainda preserva o velho e bom chimarrão nas manhãs e nos finais de tarde. Observa o longínquo horizonte do prado sendo engolfados por outra cultura de trabalho. Embora haja um vazio circunstancial elementar pela dramaticidade dos personagens nas inerentes artimanhas, o roteiro deixa transparecer uma tristeza existencial profunda. Borba realça o olhar perdido daquele cenário de imensa solidão com a câmera apontada para aquele rosto sulcado. Há uma aparente indiferença quando o peão examina detidamente seu passado e a nova paisagem rural contrastando com uma inversão dos atuais valores que levaram aos píncaros da glória e do orgulho, mas que ficaram perdidos pelos caminhos tortuosos do passado, através do recurso apropriado de longos planos-sequência.
Um drama magnífico que dialoga com o suspense em que o silêncio é marcante, com imagens reveladoras e poucos diálogos, por serem necessários. Com sutileza e habilidade rara, o promissor cineasta acerta em cheio em sua estreia nesta sensível opção de abordar a temática do Pampa. Estamos diante de uma produção minimalista notável pelo esmero e zelo da construção do enredo e os personagens que desfilam com sobriedade. Há méritos na condução do espectador para acompanhar um vínculo de importância dos personagens, especialmente do protagonista, envolvidos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquela paisagem sóbria que lá atrás foi mais fértil e alvissareira, com seus usos e costumes cultuados no dia a dia. Casa Vazia é um filme peculiar e instigante que provoca conflitos que giram em torno do orgulho e da dignidade; sobrevivência, ética e honra; trabalho e desemprego. Cria contrastes de uma realidade caótica que compreende as necessidades de um Pampa fragilizado, outrora mitológico. Embora confabule com o naturalismo, passa por um realismo singular e cruel, transmite a melancolia com suavidade nesse cenário amplo, às vezes claustrofóbico, da fronteira com o Uruguai. Há méritos por não apelar para o melodrama rasteiro folhetinesco, deixando o sentido do existencialismo aflorar para a reflexão do espectador, num desfecho contemplativo pelo fogo em consonância com a liberdade metafórica na sua essência.