Feminicídio
Vem da França o perturbador suspense psicológico mesclado com thriller policial A Noite do Dia 12, com direção do alemão de nascimento e de nacionalidade francesa Dominik Moll. Tem em sua filmografia Harry Chegou Para Ajudar (2000), O Monge (2011), Más Notícias Para o Sr. Mars (2016), Only The Animals (2019), entre suas realizações anteriores. Reaparece com seu novo longa-metragem vencedor de melhor filme no César do ano passado, o Oscar francês, direção, ator revelação (Bastien Bouillon), ator coadjuvante (Bouli Lanners), roteiro adaptado e som. Enriquece o cinema pela intensa dramaticidade nesta exemplar narrativa de um crime hediondo praticado contra uma bela jovem ao retratar os desdobramentos dos elementos ocultos da natureza humana e o feminicídio recorrente contra a mulher. Retrata os desmandos de parte de uma polícia com viés machista demonstrada ao longo da situação apresentada sem a solução corriqueira. Segue os caminhos abertos da possibilidade de se transformar num relato sobre a agressividade humana, sempre gerada pelos enigmas apresentados e desconhecidos, algo sugerido pelo cenário da sequência do enredo.
Baseado em fato verídico ocorrido em 12 de outubro de 2016, o filme foi inspirado no livro de Pauline Guéna, que passou um ano acompanhando policiais parisienses para escrever sua obra, adaptado por ela mesma em parceria com o diretor e o roteirista Gilles Marchand. A trama, em seu prólogo, mostra a celebração de duas festas, a despedida de um chefe da repartição policial que se aposenta, o veterano e desiludido Marceau (Bouli Lanners), com seus problemas existenciais diante do rompimento do casamento após a revelação da gravidez da esposa. Assume seu posto o protagonista Yohan Vivès (Bastien Bouillon), um investigador da polícia perseguido por um caso que lhe causa um incômodo obsessivo marcante em sua carreira, neste início de uma nova etapa na vida como o novo capitão. A contagiante alegria de confraternização com sua equipe será substituída pelo crime antecedido pelas imagens da noite num cenário de solidão, apenas com um gato preto e toda a superstição advinda do passado medieval, na referência da queima das bruxas. Concomitante, uma nova alegria surge de uma casa em um vilarejo no sudeste da França, decorrente de uma festinha familiar finalizada com a presença de algumas amigas, surge a jovem Clara (Lula Cotton-Frapier), de 21 anos, usando descontraidamente um celular, grava um recado para sua melhor amiga, Nanie (Pauline Serieys), e acaba por ser assassinada de maneira cruel ao ser queimada viva com gasolina por um desconhecido, vira uma tocha humana.
O roteiro enxuto, mas com grandes reviravoltas, dá uma dinâmica de um clímax dolorido e preocupante, sendo que o filme é dominado por uma forte dramaticidade pela habilidade meritória do cineasta de forma sensível. Nanie, em flagrante fragilidade, dá um testemunho relutante para a investigação, profere uma frase marcante ao afirmar que Clara “morreu por ser mulher”. Outra voz contrária aos comentários sexistas é da policial Nadia (Mouna Soualem), ressalta que “os homens matam e os policiais que investigam são os homens”. Perigosamente, os encontros e desencontros da vítima com vários ex-namorados são vistos como uma espécie de culpabilização por parte dos investigadores para que haja motivos para seu assassinato. A partir deste ponto enviesado, segue um rumo inesperado, pois há um afastamento visível do empenho em busca do criminoso, no qual se revela o ciclo perverso da violência que se torna rotina ao retratar o crime porque “qualquer um poderia tê-lo cometido”. Porém, há uma resistência comovente do novo capitão Yohan, que tem como hobby, todas as noites, depois do expediente, andar em sua bicicleta de corrida numa pista oval, embalado pela canção de Olivier Marguerit. Pedala em círculos intermináveis, com a expressão compenetrada, como uma válvula de escape das imagens da moça que não lhe sai da cabeça, visando atenuar o estresse do cotidiano. Faz dessas corridas noturnas, que não levam a nenhum lugar, uma metáfora frustrante do crime que está tentando colocar um desfecho, quase desesperador do mistério indecifrável. Cada vez mais obcecado em solucionar o caso, embarca em uma espiral interminável de segredos obscuros em busca de pistas e sinais que possam levá-lo até o culpado do crime brutal.
Com sutileza e imparcialidade, o diretor foca a trama nas oitivas dos policiais com os suspeitos que surgem conforme destrincham a vida social e amorosa de Clara. As reações violentas diante de figuras e fatos são associadas a forças ameaçadoras contemporâneas, bem acentuadas no desenrolar da história. A violência contra a mulher está bem demonstrada na agressividade diante da resistência no comportamento e na chegada de valores pouco dignos de uma sociedade machista neste instigante relato sobre os preconceitos e a violência cultuada. Um retrato singular sobre o feminicídio através da misoginia encravada com cenas impactantes, capazes de despertar a repulsa desta realidade desprezível do ódio às mulheres, que reforça os efeitos do machismo incrustado. Os interrogatórios envolvem deboches e julgamentos pré-concebidos de uma cultura avessa ao gênero oposto, exceto as demonstrações de empatia advinda dos pais, da amiga, além do investigador que abraçou a causa com ardor. Há zombaria do rapper criador de letras, do primitivo homem orgulhoso que cultua sua força física como um agressor impiedoso, entre tantos outros investigados.
O longa, entre tantos méritos apontados, além de oferecer uma plêiade de personagens construídos de carne e osso com seus aspectos psicológicos marcantes, afasta os recursos apelativos, tanto da violência explícita, quanto dos recursos lacrimejantes superados, ainda escapa com habilidade do maniqueísmo ao retratar o processo com suas derrocadas. A violência dá o tom das interações entre os gêneros, mas ao ser naturalizada, torna impossível de identificar, isolar e punir pelo pragmatismo simbólico. Há uma imensa desilusão desta teia de mistérios de uma realidade melancólica que se esconde na sociedade dominada pela irracionalidade. Mostra as mulheres sendo desumanizadas e culpabilizadas pelos crimes dos quais elas são vítimas, na qual não é a mesma situação aos homens, bem exemplificado no brutamonte com histórico de violência doméstica que continua vivendo normalmente. Eis um ensaio das inerentes dificuldades nos relacionamentos humanos diferentes de gêneros, onde a essência da hipocrisia machista do macho alfa é apontada para contrastar com a dignidade do outro possível novo homem solidário e cortês com suas dores e obsessões de um futuro, quem sabe promissor, sinalizado pelo protagonista. Há elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que restam como sombras permanentes. Fica uma dolorosa sensação de insegurança pela falta de equidade que traz as diversas desconfianças transmitidas. Uma cumplicidade com o silêncio, ou a sátira, de personagens que deveriam se preocupar mais com o possível culpado ao invés da vida pregressa da vítima, com desculpas facilitadas para esconder a triste realidade mantida por uma sociedade ainda dominada e amordaçada pelo pensamento patriarcal. Um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência contra as mulheres neste extraordinário suspense, que deverá estar nas listas dos críticos dos 10 melhores filmes no final do ano.
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