terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Os 10 Melhores Filmes do Ano


Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2014, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Cães Errantes (foto acima), de Tsai Ming-Liang;

02. Alabama Monroe, de Felix Van Groeningen;

03. Nebraska, de Alexander Payne;

04. Inside Llewyn Davis- Balada de um Homem Comum, dos irmãos Ethan e Joel Coen;

05. O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira;

06. Heli, de Amat Escalante;

07. Relatos Selvagens, de Damián Szifrón;

08. A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino;

09. O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra;

10. Boyhood- Da Infância à Juventude, de Richard Linklater.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- 7 Caixas, de Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori;
- Amar, Beber e Cantar, de Alain Resnais;
- Filha Distante, de Carlos Sorín;
- Gloria, de Sebastián Lelio;
- Vic+Flo Viram Um Urso, de Denis Côte.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O Abutre


O Preço da Audiência

Dan Gilroy estreia como diretor no instigante longa O Abutre, em que também assina o roteiro da conturbada Los Angeles sem glamour, para contextualizar os bastidores do jornalismo de uma rede de TV que tem por objetivo a audiência sem mensurar o custo e as consequências, mesmo que para isto haja muito sangue e um sensacionalismo barato e despudorado. O realizador tem em sua bagagem a assinatura dos roteiros dos filmes Tudo Por Dinheiro (2005), Gigantes de Aço (2011) e o mais reconhecido O Legado Bourne (2012).

A trama tem como fio condutor o inescrupuloso cinegrafista Lou Bloom (com o insosso Jake Gyllenhaal, de O Segredo de Brokeback Mountain (2005), que não passa confiança e tem uma atuação pífia, ainda que arregale os olhos e fale mansamente), um personagem que está longe dos padrões éticos e morais politicamente correto, mas que mergulha fundo pela distorção da concorrência desleal, demonstra ser um vilão sem zelo com o profissionalismo, distante do senso de coleguismo ao apresentar de maneira sórdida o desrespeito com a categoria, como se vê na cena do desfecho com seu auxiliar de equipe (Riz Ahmed), bem como com o cinegrafista veterano que quer fazer uma sociedade (Bill Paxton). A fraude e a armação são suas duas armas potentes e prediletas para combater os concorrentes, além do jogo de sedução que se faz presente na construção psicológica do protagonista que as utiliza como meios inevitáveis para obter seu ideal nefasto.

O drama aborda com consistência a imprensa marrom, embora tenha alguns excessos na narrativa do sangue jorrando na tela, seu resultado é bom pelo foco que pretende mostrar de forma nua e crua. A ética é pisoteada no desenrolar da trajetória que apresenta a busca da audiência a qualquer custo na acirrada concorrência dos canais televisivos de noticiários com imagens fortes que prevalecem, pois é isto que o povo quer ver, como enfatiza em uma das cenas a editora-chefe Nina (Rene Russo- esposa do cineasta), responsável pelo conteúdo do meio de comunicação. Não importa que vidas sejam ceifadas ou que a urbanidade com a categoria seja burlada de forma medíocre pela busca com atropelos pela fama e do dinheiro fácil, sem se importar que para isto o bom senso seja vilipendiado e que a ética se exploda. Ninguém escapa da tramoia da história bem contada por Gilroy.

O diretor gaúcho Jorge Furtado, no recente e elogiado documentário mesclado com teatro O Mercado de Notícias (2014), lançou dúvidas e debateu o futuro do jornalismo, a evolução da internet, a ética e os interesses econômicos das grandes companhias jornalísticas como ponto culminante o papel da mídia, em que a voracidade para informar é cada vez maior, às vezes atropela os princípios básicos do jornalismo, como ouvir os dois lados, causando injustiça e destruição. em O Abutre que é um filme bem construído estruturalmente, também temos a interação com o público, mas pela ótica da concorrência sem limites numa crítica ácida à mídia televisiva de baixo nível intelectual e informativo, principalmente na busca insana da audiência, numa reflexão sobre as consequências das engrenagens quando há manipulação.

Furtado debate a essência do jornalismo e suas origens, num retrato fiel sobre a busca da verdade onde aconteceram os fatos e as fontes fidedignas e seus interesses na publicação da matéria, bem como a obrigação desta escolha. Gilroy retrata a mentira, a empulhação e o fator sanguinário como elementos que norteiam as necessidades que levam para uma imprensa antiética, numa visão crítica para questionar os abusos e falcatruas que são jogadas para os telespectadores. Há uma essencial convicção de encontrar novidades, de revelar novas histórias com o desejo urgente de colocar a matéria no ar, passando pelo crivo traumático de ferir suscetibilidades pelo interesse da sobrevivência, sem se preocupar com os dissabores enormes que poderão advir, ou com a defesa da retidão, embora esteja presente a ausência da neutralidade ou da imparcialidade da notícia na sombria realidade de tempos fustigados pelo dinheiro.

Outro filme que dá suporte ao drama norte-americano é a película de denúncias Abutres (2010), do badalado cineasta argentino Pablo Trapero Abutres (2010), expõe a máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das mais de oito mil vítimas fatais por ano na busca da notícia privilegiada pelo advogado patético e desonesto, mas boa pinta e hábil na conversa, já com sua habilitação cassada, monta com um outro colega na ativa, com auxílio de policiais corruptos e peritos que fraudam laudos, além de uma jovem médica bonita, inexperiente, estressada e viciada, criam uma verdadeira indústria para receber dinheiro de seguros decorrentes de vítimas fatais ou inválidas de acidentes de carros, até forjando atropelamentos de conhecidos.

Através de uma magnífica fotografia quase sempre escurecida pela madrugada, ou pelos ofuscantes holofotes dos fotógrafos com suas câmeras iluminando por lentes refletoras e lançando um facho de luz, O Abutre aborda a ética profissional pela falta de escrúpulos, em que um cinegrafista ambicioso atua no submundo do crime, registrando tragédias pessoais de acidentes e até um assalto inusitado, tal como um corvo na morte, obsessivo por lucros e ganhos fáceis, sem limites de qualquer constrangimento, perde a vergonha e o caráter inapelavelmente como um anti-herói. Um retrato pujante de um jornalismo apelativo como também é visto nos finais de tarde em vários canais de TV, inclusive em nosso país, onde o sangue é o protagonista das matérias sem qualquer cuidado de princípios com a boa, correta e fiel informação de credibilidade.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ventos de Agosto















As Transformações

Mais um jovem promissor cineasta pernambucano alça alto voo e conquista prêmios importantes, como a menção honrosa no Festival de Locarno, na Suíça, com Ventos de Agosto, único filme brasileiro a participar do evento. Premiado ainda no charmoso 47º. Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia e o troféu Vagalume de melhor filme. Com apenas 31 anos, Gabriel Mascaro torna-se um proeminente realizador por esta admirável e consistente estreia na ficção, após dirigir com boa receptividade de público e crítica os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).

O drama contou com um elenco de amadores e figurantes, exceto a premiada atriz profissional Dandara de Morais que interpreta Shirley contracenando com Geová Manoel dos Santos no papel do namorado Jeison. O par central foi um dos poucos que estava previsto inicialmente no roteiro de Mascaro, que logo misturou com o pré-escrito para dar liberdade nas ações de improviso dos personagens que desfilaram na tela de forma espontânea. Nem mesmo a protagonista tinha um roteiro definido, ao atuar sem um regramento ortodoxo, ficou à vontade para improvisar. “Assim como a vida e a morte, que não são separados, o real e o ficcional também estão ligados. São parte da mesma questão. É por isso que para mim é importante trabalhar a convergência entre tudo. São partes da mesma experiência de filmar e experimentar a vida”, em entrevista coletiva do cineasta à imprensa do Festival de Locarno. Também o diretor agiu de forma não convencional, ao filmar e montar simultaneamente, como expõe: "tudo foi pensado para incorporar o imprevisto, apropriar-se das coisas que iam surgindo".

A trama retrata Shirley que deixou a cidade para viver numa pequena e pacata vila litorânea para cuidar da avó, em Alagoas. Lá, trabalhava numa plantação de coco dirigindo um trator, gosta de música punk-rock, passa Coca-Cola no corpo para se bronzear, tem como meta ser tatuadora e testa suas habilidades num porco. Busca a felicidade na relação íntima com o namoradinho que também trabalha na colheita de cocos. O rapaz tem como lazer a pesca subaquática e chega até encontrar uma cabeça humana no fundo do mar. O filme tem imagens deslumbrantes que contrastam com a pobreza e a desinformação dos antigos moradores daquele lugar, onde o progresso inexiste e as pessoas já envelhecidas vivem isoladas do mundo da tecnologia e seus avanços como a internet, que estão completamente ausentes naquela região, em que até o celular apresenta dificuldades de sinais.

O pequeno povoado litorâneo sai da mesmice diária com a chegada de um pesquisador (o próprio diretor atua) de som dos fortes ventos alísios com rajadas violentas no mês de agosto, oriundos da Zona de Convergência Intertropical, trazendo altas marés que atingem a costa e mexem com as ossadas dos mortos no cemitério próximo que está na iminência de desaparecer. Sua estadia trará alguns inconvenientes involuntários e seu destino fará com que muitas coisas se revelem, como a falência das instituições pela simbologia da Delegacia de Polícia fechada em pleno dia, tendo um preso por equívoco, sem rosto, mas com voz de protesto. É ele quem responde aos apelos de Jeison e informa que não há expediente e nem servidores. Esta mesma polícia é comunicada pelo rapaz da existência de um cadáver, acaba sendo designado o guardião do corpo, que com o passar do tempo entra em estado de putrefação. Nenhum policial busca o morto e a peripécia para levá-lo à cidade é digna de um romance de Kafka. Ali o cinema é um instrumento de denúncia e indignação de uma comunidade isolada e esquecida, refletida nos barcos velhos e sem segurança que são o único meio de transporte daquela região inóspita e em ruínas.

Ventos de Agosto tem uma fabulosa fotografia de imagens radiantes captadas que superam os diálogos, através de uma trilha sonora adequada na maioria das cenas às pequenas alterações que ocorrem naquele lugarejo pobre e hospitaleiro, com ruídos dos ventos uivantes e suas intempéries climáticas, também presente no comovente drama familiar Filha Distante (2012) de Carlos Sorín, bem como no belo longa gaúcho A Oeste do Fim do Mundo (2012), de Paulo Nascimento. É inevitável também a comparação com O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.

O cinema autoral de Mascaro, assim como Mendonça Filho e Nascimento, se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. Todos os sons e ruídos são familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade e sem perder a poesia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este drama com essência da revolta da natureza para colocar os contrastes da vida de um lugar pré-histórico com a existência do mundo dito civilizado de embarcações com turistas ávidos pelo descanso, ignorando a total falta de assistência social àqueles nativos e suas superações que virão como se um peculiar novo dia nascesse como sugere o desenlace, embora dentro de um contexto negativo da estratificação social pelas desigualdades contundentes.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Boyhood- Da Infância à Juventude


Passagens do Tempo

Richard Linklater conquistou fãs pelo mundo com sua badalada trilogia do “Antes”, através de realizações de pouca ambição estética, em que havia mais transpiração e menos inspiração para um público limitado, embora cativo e atento aos lançamentos, que começou com Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr do Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013). Agora dá um salto de qualidade com Boyhood- Da Infância à Juventude, um projeto mais consistente e demorado que levou 12 anos rodando com os mesmos atores sendo reunidos de 2002 a 2013, sem se preocupar com indicações ou datas nos períodos que se desenvolvia a história. Amparado pela sensibilidade para abordar a temática da evolução do ser humano com o passar do tempo, numa abordagem sem estereótipos da transição da criança para a fase adulta e seus anseios à flor da pele, acompanhados pelo desenrolar dos pais e suas dificuldades para encontrar o parceiro certo, especialmente no que se refere à mulher, numa reflexão com ternura dolorida numa temática sobre o futuro de todos.

O drama de Linklater conta a vida com os percalços inerentes de um casal de pais divorciados (Ethan Hawke e Patricia Arquette) e dos filhos Mason (Ellar Coltrane- começou com 6 e terminou aos 18 anos as filmagens) e Samantha (Lorelei Linklater, filha do diretor). O foco da narrativa está na trajetória do menino ao retratar a relação dos filhos durante a fase do amadurecimento com os enroscos e turbulências em mais de uma década dos pais e seus novos romances, com cenas dramáticas e por vezes até engraçadas, além de muitos diálogos de bom nível, deixando as imagens como plano secundário, como no belo epílogo repleto de naturalidade, diante da beleza das situações simples como se fosse um piquenique. Ou antes, no retrato da emoção da mãe orgulhosa ao ver o filho se formar no ensino médio, já se preparando para a faculdade, através do canto familiar numa bonita roda, em que todos estão com as mãos entrelaçadas como forma de união.

A história mostra uma mãe e suas dificuldades em reconstruir a vida com a sina de arranjar companheiros alcoólatras e violentos. Luta para alcançar seu objetivo de formar-se no nível superior, às vezes parece distante e melancólica com o que lhe reserva o destino. Já o pai parece ser um bon vivant, ligado ao meio musical, faz campanha para Obama e odeia Bush. Porém, tem um caráter duvidoso, como nas cenas da carteira do dinheiro que esquece no carro e do automóvel que prometera para o filho e não lembra mais. Quer fazer do garoto um predador das menininhas, quase sempre ausente nas horas difíceis, ressurge nos bons momentos para mostrar um lado pouco preocupado com um futuro promissor, numa característica bem descolada, mas demonstra afeto e algum vínculo paternal, ao mostrar-se preocupado com a gravidez indesejada e precoce da filha que poderia acontecer. As idas e vindas das relações do pai e as frequentes mudanças de cidades, ou seja, com o equilíbrio da vida, deixam os filhos à margem de uma convivência mais próxima da estabilidade.

Outro acerto inquestionável é a prazerosa trilha sonora com canções diversificadas, que brindam a plateia com Yellow, do Coldplay, Band on the Run, de Paul McCartney, passa por Blink 182, Daft Punk, Pharrell Williams, Foo Fighters, Wilco e até Lady Gaga. Um filme belo pela agridoce singeleza que deixa circunstâncias que agravam e logo depois atenuam a caminhada de Mason em situações comuns cercado por pessoas que também crescem e buscam um futuro, bem secundado pela presença da irmã Samantha, que cria uma personagem marcante e não menos importante na trama que se desenrola com vagar e lucidez nas passagens do tempo. As transições dos irmãos estão bem colocadas e inseridas dentro de um inteligente roteiro singular de Linklater, com a sincronia do envelhecimento natural dos atores desde o início das filmagens, o quer faz o espectador ir percebendo na tela a realidade quase que naturalista do tempo que flui. A acertada direção leva para uma realização que remete para ideias em detrimento da parafernália dos efeitos especiais que pululam o cinema.

Além de ser uma obra instigante no todo, Boyhood- Da Infância à Juventude retrata as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras, por isto é inevitável a comparação pela similitude de conteúdo dos questionamentos na infância com os excelentes filmes brasileiros de trama aparentemente simples, mas de muita complexidade, entre os quais: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho, Antes que o Mundo Acabe (2009), da gaúcha Ana Luiza Azevedo, e As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky. Reconhecido no Festival de Berlim, Linklater recebeu o Urso de Prata de melhor direção, enfatiza o latente aspecto sombrio nos rostos de seus personagens, como no da mãe e do protagonista. Na relação com o futuro, o filho sente que existem outras fronteiras para serem desbravadas e seu mundo é muito maior que imagina em relação ao cotidiano que deixará para trás, faz refletir sobre uma triste beleza dos prazeres e desprazeres da adolescência que se distancia do universo juvenil com a iminência da difícil passagem para o mundo adulto repleto de preconceitos e complicações inerentes pela transição.

Também lembra o filme Em Paris (2006), de Christophe Honoré, onde os irmãos moravam com o pai, pois a mãe os abandonara para viver uma vida livre, após a morte trágica da filha; neste quem sai é o pai a ganhar o mundo, ficando a mãe cuidando dos filhos. O vazio existencial dá lugar para as brincadeiras e os conflitos na busca das conquistas, tendo por objetivo principal ser um vencedor no contexto geral, como incentiva o pai ao protagonista, pois assim os olhares estarão voltados para o conquistador, numa clara alusão da busca insistente de uma autoafirmação e uma identidade ainda debilitada. É forte a influência de Honoré sobre relação e o núcleo familiar com os jovens na escola e seus problemas fluentes da tenra idade, como a perda da virgindade e a tentativa de se aproximar da mais encantadora aluna como fatores que apenas servem de combustão para questionar situações mais abrangentes e profundas entre jovens pré-adolescentes diante das arraigadas idiossincrasias, buscando suprir as lacunas deixadas pelo pai ou a mãe, bem como os conflitos que se estendem neste drama original sobre os fragmentos familiares do tempo que passa.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Boa Sorte


Destinos da Vida

A estreia na ficção de Carolina Jabor não empolga e quase que decepciona em Boa Sorte, ao contar uma história numa narrativa linear, baseado no conto Frontal com Fanta, de Jorge Furtado, autor do roteiro com seu filho Pedro. O enredo é pouco consistente ao filmar a trajetória de João (João Pedro Zappa) que é internado numa clínica psiquiátrica pelos pais (Felipe Camargo e Gisele Fróes), por apresentar problemas comportamentais depressivos e visões esquisitas que o atormentava frequentemente. Lá conhece Judite (Deborah Secco), uma soropositiva dependente química de todas as drogas imagináveis e já em fase final de sua existência, da qual tem consciência plena. Recebe o carinho da avó (Fernanda Montenegro) que lhe empresta alguma solidariedade afetiva, mas faz questão de frisar não ter culpa na atual situação da neta.

O romance do casal coloca os personagens no mesmo caminho, com a paixão que arrebata os dois a continuidade é improvável no futuro traçado. A reabilitação do rapaz poderá vir pelo amor que constrói, sem se importar com os empecilhos do HIV que não o farão sentir repulsa ou revolta, pelo contrário, joga-se de corpo e alma, como conduz a cineasta para a relação afetiva com culpa de Judite, que demonstra ser boa moça ao armar um fato inusitado para salvar seu príncipe e fazê-lo entrar nos trilhos para recuperar-se de uma pseudodoença, contrário às consultas da cautelosa médica (Cássia Kis Magro), como demonstra o roteiro equivocado.

O filme não chega a inovar e há alguns momentos de lirismo pueril no relacionamento do casal, mas a saga da doença incurável faz o longa navegar pelas águas dos ajustadinhos e simpáticos mocinhos vítimas do destino que lhe aplicou uma punição pelo infortúnio do acaso. Carolina, filha de Arnaldo Jabor, não é uma neófita, pois já tem duas experiências ao codirigir com Lula Buarque dois documentários: Milton Nascimento- A Sede do Peixe (1997) e O Mistério do Samba (2008). Em seu terceiro longa demonstra firmeza na direção, sem se deixar trair pelo maniqueísmo ou descambar para o melodrama fácil. Esbarra num roteiro frágil e mais afeito para uma minissérie televisiva, previsível e recheado de baboseiras, entre as quais coisas que somem e aparecem do nada, talvez por cacoete de Furtado e suas histórias para a telinha global.

Boa Sorte tem uma proposta da procura de autoafirmação redentora, mas derrapa no vício de contar a condenação do ser humano por um fato atípico e sua vitimização em excesso, embora consiga fugir com algum mérito das lágrimas fáceis que partem corações, mas não evita a compaixão desmedida. Neste aspecto e num cenário similar, Laís Bodanzky foi soberba em Bicho de Sete Cabeças (2001), ao mergulhar seus personagens no inferno do hospício e criticar o sistema do modus operandi que existia na época, como os choques elétricos e clima de tensão e horror ali existente; ou no extraordinário e premiado O Estranho no Ninho (1975), de Milos Forman, com Jack Nicholson; ou ainda em Garota, Interrompida (1999), de James Mangold, com Winona Ryder. Carolina busca a piedade e envereda pelo lado bonzinho dos personagens, sem estruturá-los psicologicamente de maneira convincente, com um humanismo adequado sem extrapolar, para explorar os erros e acertos e suas fraquezas e vicissitudes. Peca pelo maneirismo e pela fuga de uma abordagem mais profunda da complexidade reflexiva.

O grande acerto do drama que merece um registro à parte é Deborah Secco, magérrima ao emagrecer 11 quilos, sem glamour, cabelos picotados e sem viço, carrega o filme com competência e talento ao lado novato e eficiente Zappa. A atriz revela mais uma vez seu carisma e domínio cênico, como já fizera em Bruna Surfistinha (2011), de Marcus Baldini, na qual foi maravilhosa fazendo aquela menina meiga, dócil, ingênua, com cara de santa do pau-oco, mas ao mesmo tempo tinha um tempero feminino especial de uma conquistadora singular. Boa Sorte tem um desfecho ortodoxo e de certo modo previsível, mas o filme se não é elogiável, decepciona em parte para os mais exigentes, porque cinema é mais que simplórios alertas e conselhos fugazes, deixando uma lacuna no vazio existencial, para um epílogo que beira o autoajuda, com a presença recorrente do amor reabilitatório do recomeço pelo fim sombrio.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Castanha


Ficção Real

A trajetória da vida e da carreira do ator teatral João Carlos Castanha é o foco do longa-metragem gaúcho Castanha, escrito e dirigido pelo estreante Davi Pretto, de apenas 26 anos, produção executiva de Paola Wink, com produção associada da Casa de Cinema de Porto Alegre, Sandro Fiorin e Gogó Conteúdo Sonoro, com selo da inovadora Tokio Filmes. A realização aposta na mistura da realidade com a ficção para criar um tom intimista na narrativa que mescla documentário e drama para dar uma correta e adequada sintonia de um núcleo familiar, ao contar com riqueza de conteúdo as andanças do artista que mora com sua mãe Celina Castanha e dois cachorros no IAPI, um simpático bairro classe média de Porto Alegre, onde nasceu e residiu na adolescência a cantora Elis Regina, em que é mencionada. Além das dificuldades financeiras, a doce mãe de 72 anos divide o tempo de convivência para dar apoio moral ao ex-marido no asilo e com um neto drogado que ronda o apartamento para buscar comida e dinheiro, criando situações embaraçosas com os vizinhos.

O protagonista tem 52 anos, trabalha à noite em bares gays como transformista, é mostrado com crueldade a luta diária, além de se apresentar em peças infantis e programas de televisão. Tem uma saúde debilitada por baixa imunidade, além de seu futuro incerto e sombrio, de pouca perspectiva para uma realização profissional que procura com seriedade. É atormentado pelo passado que traz alguns fantasmas à tona e o presente do sobrinho craqueiro, na qual faz o personagem transitar com alguma leveza entre a própria realidade com a encenação e o diálogo com sua vida atribulada pelos dissabores e a violência sempre presente no cotidiano que o ronda com amargura, através do clima melancólico da bela fotografia de Glauco Firpo num cenário sóbrio de lusco-fusco.

O docudrama flutua pelas mesmas águas de O Céu Sobre os Ombros (2010), do mineiro Sérgio Borges, em que aborda com dignidade pessimista o retrato das vidas perturbadas de três criaturas aparentemente exóticas na cidade de Belo Horizonte, com personagens reais para construir um filme que mescla ficção e documentário. Não utiliza um roteiro tradicional, com o mérito maior ao buscar personagens bem peculiares e fruto de uma pesquisa detalhada e consistente dos meandros e das consequências pelas dificuldades impostas aos cidadãos menos favorecidos pelo destino. Pretto filma o dia a dia do protagonista e sua mãe, faz a mesma integração para ter uma perfeita harmonia dos ingredientes, como também visto em Terra Deu, Terra Come (2010), de Rodrigo Siqueira, na abordagem de um garimpeiro conhecedor dos vissungos, as cantigas em dialeto banguela cantadas durante os rituais fúnebres da região, que eram muito comuns nos séculos 18 e 19 e Girimunho (2011), de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, drama que tem uma dinâmica documental como exemplo de beleza e criatividade na história de duas amigas viúvas octagenárias que reinterpretam seus cotidianos. São produções de pouco ou nenhum apelo comercial, mas de um conteúdo significativo e marcante como expoentes de uma mesma estética cinematográfica singular.

Apontado por alguns críticos como o mais significativo longa gaúcho depois de Deu Pra Ti, Anos 70 (1981), de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, exageros à parte, o badalado Castanha teve estreia mundial na seção Fórum do Festival de Cinema de Berlim, também foi exibido em Hong Kong, Las Palmas, Edimburgo e Copenhagen, bem como esteve no Festival do Rio e de Paulínia e na Mostra de São Paulo. Com um roteiro baseado em conversas do ator com o cineasta durante quatro meses, rendendo aproximadamente 40 páginas e gravado em 19 dias, com cenas ficcionais e outras dentro de ambientes reais de bares, uma loja no centro, peças que o ator tinha em seu acervo; outras documentais fora do roteiro, entre as quais indo para o trabalho, arrumando-se, apresentando-se. Uma composição total, em que às vezes, nem a equipe sabia se estava rodando algo ficcional ou documental, como salienta o diretor e conclui "A vida de João é muitas coisas ao mesmo tempo, a história de João tem crime, tem amor, tem drama, tem passado, tem muita história".

O longa tem como fator primordial ser híbrido, onde a ficção mistura-se com a triste realidade dos indivíduos desglamourizados, em que vão passeando e apresentando suas diferenças e dificuldades pela tela, deixando registradas as aspirações do protagonista e sua empatia, embora mantida com certo distanciamento proposital nos seus vários retratos, interpretados com desenvoltura e elegância pelo brilho de João Carlos Castanha. O resultado é um filme denso, que mostra as relações do ator com a família e seu trabalho, além da morte bem presente e do envelhecimento que se aproxima, deixando uma trama consistente para uma reflexão digna da realidade da comunidade homossexual com sobriedade, sem ser definitivo na sua pretensão neste mergulho intimista.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Seleção de Filmes Bourbon (O Ciúme)


O Ciúme (La Jalousie)

Este é o quinto filme que Philippe Garrel realiza com seu filho Louis, entre os quais estão A Fronteira da Alvorada (2008), Amantes Constantes (2005) e Um Verão Escaldante (2011), que confessa: “O Ciúme é um filme autobiográfico, no qual o meu filho Louis Garrel interpreta o seu próprio avô aos 30 anos- a mesma idade que Louis tem hoje. A ideia era falar sobre um caso de amor entre o meu pai e uma mulher, a qual me causou admiração e provocou ciúmes na minha mãe, que era exemplar. Eu fui um menino criado pela minha mãe (no filme, eu sou a menininha).” Seu primeiro longa-metragem, Marie Pour Mémoire, ganhou o Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de Hyères, em 1969. Discípulo da Nouvelle Vague, ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992 com J'Entends Plus la Guitare, prêmio que voltaria a receber por Amantes Constantes, em 2005.

O amor com ciúme como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente preponderante são temas sempre presentes no cinema francês. O mestre François Truffaut obteve resultados magníficos com Jules e Jim (1961) e A Mulher do Lado (1981), assim como o festejado Claude Chabrol retratou com eficácia em Ciúme- O Inferno do Amor Possessivo (1994). Da Finlândia veio outro belo filme sobre a temática O Ciúme Mora ao Lado (2009), dirigido por Mika Kaurismäki. Agora com O Ciúme, o último longa de Garrel, a tradição se mantém com ardor e dor, angústia e prazer, criado através de momentos de pura poesia dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto recorrente do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição da pessoa amada.

O cineasta disseca numa lúcida reflexão os atritos de relacionamento surgidos no cotidiano, em que o teatro surge como pano de fundo dos personagens envolvidos que representam não só a peça ensaiada para a apresentação, mas os papéis da vida sem ficção e lançadas dentro de uma realidade inafastável e presente na vida daquelas criaturas sofridas diante da incerteza do amanhã. O genial Alain Resnais foi insuperável ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que torna-se ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio cênico, como visto recentemente em Amar, Beber e Cantar (2014), um drama de sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como no longa anterior Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011), em ambos fundiu-se o teatro com a vigorosa obra do cinema.

A trama é dividida em duas partes: "Mantive os anjos" e "Fogo na Pólvora". Centraliza em Louis (Louis Garrel- de bom desempenho), um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com a atriz Cláudia (Anna Mouglalis- atuou em Gainsbourg: O Homem que Amava as Mulheres (2010), de Joann Sfar e Coco Chanel & Igor Stravinsky (2009), de Jan Kounen). Levam uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades financeiras, tendo em vista que a carreira dela vai de mal a pior, sem perspectiva de um grande papel no futuro. O rapaz faz de tudo e mais um pouco para ajudá-la a superar a crise e tenta arranjar um emprego para ela. Encontra tempo ainda para ser um pai presente e manter-se próximo à filha Charlotte (Olga Milshtein) que reside com a mãe (Rebecca Convenant) recém-separada, mas é provocada pela garotinha que admira Cláudia, o que a faz sentir ciúmes da outra.

O cineasta conseguiu criar imagens realmente notáveis na fotografia preto e branco melancólica de Willy Kurant, responsável pelas obras anteriores de Garrel, como na sequência que indica a felicidade num passeio pelo parque em família, ou na conversa entre pai e filha. Ou ainda a cena bíblica de uma mulher que lava os pés de um idoso como se estivesse procurando expiar um pecado. Mas logo surgem os fragmentos como cacos de vidros estilhaçado pela dor da perda e da falta de sinceridade a dois, diante da troca atraiçoada do grande amor em nome da segurança e da independência econômica. Ao desenvolver a narrativa com a reconstrução do microcosmo familiar, busca essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor incondicional. É perfeita a dose de emoção e neste aspecto estão presentes as grandes virtudes deste comovente drama que deixa fluir os traços autobiográficos nostálgicos.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Relatos Selvagens
















A Civilidade Vingativa

A 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo abriu com Relatos Selvagens, que já está em circuito comercial e vem precedido de ser um fenômeno de público, com mais de 2,8 milhões de espectadores na Argentina. Tem recebido elogios constantes da crítica este postulante da Argentina a uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, foi o selecionado para a Competição do Festival de Cannes deste ano, nesta coprodução dos irmãos Pedro e Agustín Almodóvar. Uma típica comédia de humor negro de Damián Szifron, também responsável pelo instigante roteiro que não faz concessões ao revelar sentimentos que transitam pelo surrealismo e atinge em cheio o espectador com o modo improvável que lidam os personagens com as situações absurdas e fantasiosas do cotidiano.

O diretor que tem em sua filmografia dois longas-metragens: El Fondo del Mar (2003) e Tempo de Valentes (2005), conta seis histórias independentes, imprevisíveis, divertidas que exploram o tema da vingança de maneira desafiadora. Já no primeiro episódio, a situação é bem peculiar no avião, a partir de uma singela cantada de um crítico musical de meia-idade (Dario Grandinetti) numa jovem modelo (Maria Marull) que resultará num desfecho inusitado. O fator desforra está presente novamente no restaurante de beira de estrada, quando a garçonete do estabelecimento (Julieta Zylberberg) recebe um cliente bem conhecido do passado numa noite chuvosa, a conclusão é trágica com a entrada em cena da cozinheira perversa (Rita Cortese).

Na quinta história, há a tramoia para salvar um garoto playboy que mata uma gestante e seu filho. Entra como ingredientes indigestos a corrupção e o dinheiro que compra tudo, arquitetado pelo pai (Oscar Martinez), um advogado e um investigador de polícia. Acaba sobrando para o jardineiro humilde, pobre e ingênuo (Germán Silva), numa alusão de que a vida de um vale mais do que a de outro. Crítica ácida ao sistema corrompido que passa por cima como uma patrola do mais necessitado financeiramente, em favor do melhor aquinhoado. No último evento, está a traição nas cenas de um casamento, não as de Ingmar Bergman em sua obra-prima, mas da noiva (Erica Rivas) que descobre no dia da festa da cerimônia que seu recém-marido (Diego Gentile) a trai com uma colega de trabalho. Vira uma batalha tragicômica ao melhor estilo pastelão, duradouro e excessivo. É o mais fraco de todos pela redundância exagerada diante da falta de um corte na hora certa pela montagem.

O realizador está ótimo no terceiro episódio, um dos melhores, quando nos remete para uma perseguição de carro numa estrada, em que dois motoristas (Leonardo Sbaraglia e Walter Donado) se ofendem numa discussão banal de trânsito que desencadeará numa aventura animalesca de fúria, ao melhor estilo da violência registrada nos filmes de Quentin Tarantino, ou ainda na inesquecível perseguição no suspense Encurralado (1971), de Steven Spielberg. Ali está destilado todo o ódio e a ira com o sentimento da barbárie que entram em rota de efervescência como numa caçada humana em que o homem vira irracional num desfecho espetacular que se confundem presa e predador. Mas Szifron, um dos mais promissores cineastas do cinema argentino, chega ao ápice na quarta parte, na qual o engenheiro (Ricardo Darín- sempre elegante na interpretação) sente-se injustiçado pela prefeitura do município em que trabalha e reside. Seu carro é guinchado várias vezes, até surgir com maestria na trama o instinto vingativo com uma técnica magnífica, num desabafo contra o sistema de governo opressivo reinante que sufoca o cidadão de bem e o faz um marginal aos olhos da comunidade e o humilha perante a família, como a filha que espera o bolo de aniversário e a esposa em conflito matrimonial, prestes a se divorciar. A cena no presídio é impagável e sintetiza uma escolha às avessas do politicamente correto, numa edificante volta da autoestima diante da dignidade maculada.

Relatos Selvagens retrata uma realidade cruel e imprevisível de personagens que transitam sobre a tênue linha divisória que separa a civilidade da barbárie. Um filme que aborda o pequeno detalhe do cotidiano que vira uma caçada; ou uma traição amorosa; o retorno ao passado trágico; uma simples viagem de avião que vira uma violência descontrolada; ou ainda um problema de trânsito local que desemboca numa catarse decorrente da perda do controle pelo excesso burocrático aliado com uma corrupção que virou praga daninha, também presente na polícia, na família como alegoria de um país que sufoca seus filhos.

Com a exímia fotografia de grande estilo visual de Javier Julia, a boa trilha sonora de Gustavo Santaolalla combinada com um elenco coeso e irrepreensível, contribuem para esta bela comédia girar em torno da humanidade do homem bom até ter seus instintos primitivos fustigados no seu interior num cenário brutal. No momento em que a estima é cutucada em boa dose, logo os valores se corrompem e destroem o equilíbrio com o vínculo existente da civilização, passa para a selvageria desenfreada que choca a criação equilibrada e a lucidez se esvai de forma definitiva e eloquente num clímax arrebatador pela maturidade estética do bom cinema com um ritmo forte e seco surrealista, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexão deste hospício chamado mundo.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (As Bruxas de Zugarramurdi)














As Bruxas de Zugarramurdi

Uma das aguardadas realizações vem da Espanha na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo, As Bruxas de Zugarramurdi, dirigido pelo espanhol Alex de la Iglesia que dividiu o roteiro com Jorge Guerrica Echevarría. Vencedor de oito Prêmios Goya, incluindo melhor atriz coadjuvante (Terele Pávez). Não é um neófito, antes realizou filmes até interessantes, entre eles os longas Ação Mutante (1993); O Dia da Besta (1995, 20ª Mostra); Perdita Durango (1997); 800 Balas (2002); Crime Ferpeito (2004); Balada do Amor e do Ódio (2010), vencedor dos prêmios de direção e roteiro no Festival de Veneza.

Os espanhóis sempre se notabilizaram por ótimas obras sobre o período do ditador Francisco Franco, morto em 1975. Tanto pelos quadros de Salvador Dalí, Pablo Picasso, como nos filmes de Buñuel, Saura e Almodóvar, entre tantos outros notáveis, de uma lista imensa, quase que interminável. Porém, o mais conhecido dos longas de Iglesia, o resultado não foi nada bom e Balada do Amor e do Ódio não passou de uma comédia equivocada nos seu diagnóstico final, ao abordar o período do franquismo, numa sucessão de erros e gafes intermináveis e desgastantes para um cineasta que pretendia construir uma película com alguma pretensão.

Em sua última realização o cineasta tropeça novamente e seu resultado é irregular, abalando uma carreira promissora que perde o rumo e o foco de um cinema sério voltado para as questões sociais, parece estar mais inclinado para os blockbusters hollywoodianos e recheados de clichês inapropriados, dirigidos para uma plateia sem exigência e com viés para o puro entretenimento dos velhos matinês dominicais. Mais do que isso, expressa a ausência de critérios que permite que o cinema seja dominado por produções que nada acrescentam e integrem um processo destinado a transformar o espectador num ser desprovido de senso crítico e o faz aumentar seu distanciamento de obras comprometidas com uma qualidade superior de mínima reflexão.

As Bruxas de Zugarramurdi é baseada num caso real ocorrido em Logronõ, no distante ano de 1610, quando a Inquisição se fez presente e queimou 40 habitantes acusados de serem bruxas daquela comunidade. O filme conta a história de José (Hugo Silva), um pai divorciado e um jovem desempregado, Antonio (Mario Casas), que assaltam uma ourivesaria em Madrid e conseguem levar uma sacola cheia de anéis de ouro. Tentam fugir para França num táxi, após o roubo espetacular, mas esta viagem começa a correr mal quando mergulham nos bosques do País Basco. Acabam nas mãos de uma família de bruxas, com três gerações dominadas essencialmente por mulheres, sob o prisma do rótulo de feministas extremadas. Tudo acontece no reinado de Felipe III, um povoado acusado de formas de cultos e bruxarias, impostas por uma lei de execução dos habitantes, exceto claro, de uma mulher que testemunhou sobre o caso e que domina as florestas impenetráveis. Além das dificuldades de fugir das garras das vampiras, enfrentam ainda uma polícia bisonha e arcaica. Nem as personagens interpretadas como Graciana (Carmen Maura) e sua filha Eva (Carolina Bang) conseguem salvar a trama diabolizada.

Zugarramurdi é uma vila em Navarra, norte de Espanha, a cerca de 80 quilômetros da cidade de Pamplona, também conhecida como A Catedral do Diabo, é conhecida como a cidade das bruxas, devido aos fatos em seu passado envolvendo as lendas com o paganismo. Este era o cenário que o cineasta tinha nas mãos e levava o enredo até a metade do filme dando mostras de uma realização significativa. Chegava a dar indícios de feitos maiores como Convenção das Bruxas (1990), de Nicolas Roeg e o clássico A Dança dos Vampiros (1967), de Roman Polanski. Ledo engano, o roteiro desabou do meio para o epílogo e descambou para o intragável Godzilla (1998), de Roland Emmerich, refilmado depois em 2014, por Gareth Edwards, próximo de outros estereótipos antigos da categoria. Nem a grande-mãe, figura horrenda com seios maiores que as mulheres de Fellini, deu estofo para sustentar o imbróglio. Tudo vira um grande corre-corre, muitos gritos, sangue jorrando num cenário típico de filmes B. Ou de videogames em que a brutalidade do grotesco se sobressai no visual e se sobrepõe à história.

Mostra de Cinema São Paulo (Obra)















Obra

Decepciona de certa maneira na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo a aguardada promessa Obra, do cineasta paulistano estreante Gregorio Graziosi, responsável pelo roteiro com Paolo Gregori, dirigiu diversos curtas, entre eles Saba (2007), exibido em Cannes; escreveu o roteiro de Boa Sorte, Meu Amor (2012), de Daniel Aragão. O filme foi premiado no Festival do Rio com o prêmio FIPRESCI e ganhou na categoria de melhor fotografia pelo competente André Brandão. Está longe de um resultado melhor, tendo em vista que o longa não deslancha, vacila e tropeça numa montagem equivocada por uma estrutura irregular e sem força. Tem previsão de estreia no Brasil somente para março de 2015, antes passara no Festival Internacional de Toronto como o único representante brasileiro selecionado.

O cenário da trama é São Paulo, às vésperas do nascimento do primeiro filho do arquiteto João Carlos (Irandhir Santos). Seu mestre de obras (Julio Andrade) encontra uma ossada na construção que está prestes a iniciar e a descoberta desestabiliza os sonhos profissionais do protagonista, fazendo com que ele questione até mesmo a profissão e a cidade em que vive. Tudo se complica ainda mais quando vem à tona que o terreno é do avô, que tem uma condição de vida vegetativa e mora com os pais dele numa casa litorânea. Bem longe da metrópole poluída e barulhenta de um cenário acinzentado de prédios em construções gigantescas cobertas por uma névoa de poeira no céu, eis um dos acertos do longa, através da instigante fotografia em preto e branco para desglamourizar a cidade e dar um tom de uma selva de pedras.

O tom de opressão proposto logo se esvai, quando enredo se perde num emaranhado estéril, ao misturar o relacionamento com a sua mulher (Lola Peploe), que também dá seu pitaco e menciona indícios de indígenas como um tesouro arqueológico ali depositado. Além do peso da responsabilidade do nome do arquiteto, quando chamado para um projeto de restaurar uma igreja antiga e com obras inestimáveis, tem nas mudanças da rotina que o faz refletir, pensar no filho que está nascendo e nas dores lombares de avô para neto. Mas seu problema maior que o deixa em crise é a descoberta do cemitério clandestino no terreno da herança familiar.

Obra foi uma questão de urgência para o cineasta: "Eu tinha que fazer esse filme. Ele tinha que ser o primeiro, pois eu queria muito falar da minha relação com São Paulo. Para mim, a cidade só pensa no cotidiano, no novo, não sabe lidar com o que veio antes", afirmou. Mas o cineasta desperdiça talentos como Irandhir e Júlio Andrade, este muito mal aproveitado, numa atuação longe da habitual; já o ator pernambucano está caricato e sem expressão convincente, por falta de uma construção de um personagem adequado com a trama da cidade retratada como opressiva para causar claustrofobia. Mas nada disso acontece, diante de um roteiro frágil e inconsistente na falta de um ritmo condizente, através de cenas insossas e longas em planos apanhados de maneira distante, desnecessários e sem convencimento na plateia.

O filme tem de bom o primoroso som de Fabio Baldo, pela constância para criar um desequilíbrio emocional das máquinas que induzem um trabalho diário irritante, mas acaba por se perder na parafernália ideológica criada pelo realizador, que admite a inspiração para a sonosplastia dos filmes de David Lynch. Mas não passa disto, porque qualquer comparação mais aprofundada é pura heresia e insulto ao velho mestre. Nem a linguagem estética experimentada pelo cineasta em seus elogiados curtas estão presentes no longa, que até tem um embrião filosófico considerável como a cidade emparedada por todos os lados.

Graziosi não se debruça especificamente num ângulo reflexivo como os aspectos típicos de uma outra São Paulo, deixa o filme naufragar por estar solto e sem qualquer emoção de cinema, foge do foco inicial, migra do nascimento para a descoberta inusitada e a dor física com a sentimental. Falta profundidade nos temas elencados, diante de uma rasa abordagem inodora e insípido pela falta de dinamismo estrutural do roteiro com o desenrolar da história, onde havia elementos com bastantes subsídios para dar uma melhor resposta, sucumbe diante de uma desarmonia e uma mistura de ingredientes que tornaram Obra insatisfatório, exceto os dois acertos: fotografia e som.

Debate em São Paulo

Após a exibição do filme, o diretor Gregorio Graziosi com sua equipe técnica, entre eles o fotógrafo e montador, participaram de um bate-papo com o público. Durante a conversa, o cineasta falou que os atores tinham liberdade para opinar e escolher alguns lugares- chave para filmar; ressaltou como importante ter realizado desenhos para construir e colocar o plano do longa como realidade; falou da opressão da cidade de São Paulo que todos sentem e o papel importante das janelas e corredores para a comunicação com o espaço externo; a ideia do tema veio após filmarem quatro curtas no período da faculdade, para a partir daí se chegar finalmente no primeiro longa filmado e concluído em 2013; reescreveria a cena final novamente, mas que, ainda assim, tem orgulho junto com a equipe do trabalho realizado, porque foi o melhor que puderam fazer.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Carvalho)



O Carvalho (Balanta)

Não decepciona a comédia política romena O Carvalho, que tem roteiro e direção de Lucian Pintilie, na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo. Esta antiga produção de 1991, que levou o batismo anterior de Balanta, é um poderoso retrato da Romênia antes da queda de Ceausescu, com imagens significativas e contundentes do fotógrafo Doru Mitran. O veterano diretor estreou com Sunday at 6 (1965), seguido por The Reconstruction (1968). Querendo escapar da perseguição do governo comunista, mudou-se para a França em 1973, onde continuou filmando obras como Un été inoubliable (1994) e Terminus Paradis (1998).

A Romênia, antes da queda de Ceausescu, é narrada através da história de Nela (Maia Morgenstern), filha de um ex-coronel da Securitate, a temida polícia política daquele país ditatorial. Ao contrário da irmã dependente, ela se recusa a tornar-se uma agente infiltrada também, ainda que vivendo com seu pai covarde, herói e patriota, contraditório como todo o regime. Mas, com a morte dele, muda-se de Bucareste para uma pequena cidade do interior, onde conhece Mítica (Razvan Vasilescu), um cirurgião famoso e descendente de italianos que adora rir da vida e de si mesmo, igual a ela, uma mulher que sempre viveu abafada à sombra da figura paterna conservadora, numa alegoria do sistema brutalizado vigente por décadas. O médico mantém uma relação estreita com a figura máxima daquele lugar, o procurador (Dan Condurache), que também é conflitado com a seriedade, não passa de um atrapalhado na condução de sua comunidade já incontrolada, assim como o país, dá sinais de debilidade e começa a esboroar.

Um painel construído com um roteiro bem engendrado, com soluções nada convencionais, com risos fáceis em situações complicadas, até com dor e sentimentos de perda ou de agressão física desmesurada, típica de um regime autoritário com performance do ditador que lá se instalou e enraizou-se no poder, mas que logo começará a afundar como um barco torpedeado. O filme flutua da comicidade moderada com alguma sutileza para o escracho do formalismo da arbitrariedade, induzindo para situações escabrosas que acontecem nos subterrâneos, como o estupro humilhante. Os personagens têm vida própria só na sátira, pois logo já se demonstram as fragilidades decorrentes que os assolam na intimidade.

O Carvalho é um questionamento sobre a política institucional aplicada naquele país, derivando daí o ódio entre os conterrâneos, satiriza literalmente as incongruências daquele ambiente hostil, que se distancia cada vez mais da aprovação civilizatória dos valores e da ética. Há méritos inegáveis na construção correta de Pintilie do tormento social com deformações de guerrilha, bem apanhadas. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis condizentes daquele universo em luta constante num cenário bucólico, mas paradoxalmente aterrador sobre o dia inesperado do amanhã, quase que assustador, pois traz uma violência contida que brota como um libelo contra a intransigência. Mostra os desmesurados rituais desgastantes que sufocam e tiram o ar puro, numa retórica de opulência, também bem enfatizado pelos protagonistas.

A comédia tem boa fluidez, sem perder a essência dramática de forma autêntica e demolidora quando se faz necessário, como na instigante cena do ônibus metralhado com manifestantes acompanhados de crianças massacradas. Tudo acontece logo após as cinzas do pai serem depositadas sob a frondosa árvore. Não se suportará os desmandos, causando o conflito bélico como metáfora de um governo desabando por falta de sustentação política. O almoço do procurador foi suspenso, pela decorrência da explosão das ruas e da carnificina de uma redentora contestação de um ideal libertário. Os desatinos e as falcatruas expostas são zombadas para serem condensadas na história pela ironia corrosiva que soará como uma exaltação final de uma loucura incontida.

Mostra de Cinema São Paulo (Jauja)


Jauja

Uma das surpresas negativas na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo é Jauja, embora vencedor do Prêmio da Crítica da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, dirigido pelo argentino Lisandro Alonso que dividiu o roteiro com Fabian Casas. Não é um estreante, antes realizou filmes que passaram despercebidos, entre eles La Libertad (2001); Los Muertos (2004), Fantasma (2006) e Liverpool (2008). A se julgar por esta sua última realização que aborda os povos antigos que diziam da existência de uma terra mitológica de abundância e felicidade, a mesma que empresta o nome ao título do longa, uma experiência que o realizador poderia ter permanecido nas sombras que abrigam diretores de menor expressão, que só conseguem destaque graças à bondade que parece estar presente em alguns setores da crítica.

Com uma paisagem centrada por longos planos fixos na bela composição fotográfica assinada pelo finlandês Timo Salminen, autor das imagens dos filmes de seu compatriota Aki Kaurismäki, o longa conta a historia do capitão uniformizado Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen), um colono dinamarquês que empreende uma louca viagem pela Patagônia para tentar liquidar os ditos cabeças de coco. Tem como companhia a filha Misael Saavedra (Viilbjork Agger Malling), mas o destino pretendido é um deserto localizado no fim do mundo. Esta é uma empreitada onde muitos já se aventuraram, mas poucos conseguiram concluir com sucesso, tendo em vista ser um lugar de muitos mistérios sobre a existência buscada por ambos, que se dispersam e perderam as referências de vínculos afetivos.

Alonso não consegue se aproximar de algo mais consistente em momento algum de seu estéril drama que retrata diversas expedições tentando encontrar o lugar para comprovar a lenda. O imaginário fez com que ela crescesse com o tempo de forma desproporcional como reza o lema que todos os que tentaram encontrar este xangrilá escondido na terra, em que seria um lugar onde as pessoas vivem como se fosse um paraíso, onde ninguém morre, mas muitos sumiram pelo caminho. E até o cinema, que aparece como instrumento que capta imagens e preserva a memória, às vezes é vítima da ineficiência de cineasta despreparado que se utiliza de relatos passageiros e inconsistentes. Nos momentos finais, na cena da menina com os cachorros na mansão que vai desembocar no pequeno lago, tudo soa falso como se ela acordasse de um sonho. Bem que a proposta encaminha para este desfecho insosso e frio se não fosse utópico e longe da realidade.

A definitiva ausência do pai coloca a filha diante de um impasse não resolvido, sendo que a trama girou quase que o tempo tudo na procura pela filha que fugiu com um homem desconhecido. A peregrinação pelo reencontro tem alguns momentos de inteira desolação e cansaço do protagonista, como uma demorada caçada num velho western sem ritmo, primando pela repetição desmotivada de um enredo fragilizado, que não pode criar um clímax de superação dos pobres personagens infantilizados. Até o encontro com a mulher das cavernas (Ghita Norby) não tem fluidez suficiente para agregá-la como um indicativo maternal do epílogo sugerido. As causas são do modorrento roteiro sem inspiração, com criaturas caminhando sem estrutura psicológica. Há inclusive índios figurando como elementos perversos, em mais um equívoco da direção nesta concessão imperfeita.

Jauja não avança, por isto as digressões com total ausência de profundidade, sem o efeito de romper a continuidade de uma viagem fabular deixa o enredo tênue e vacilante para alternativas enigmáticas naquele ambiente falso como prenuncia os usos e costumes preponderantes ali, com pouca ênfase ao tema proposto, omite os sonhos e ilusões com mais densidade neste filme de resultado pífio e sem autonomia pela busca de um resultado melhor. Inclui-se nas realizações de formato experimental pela desconstrução estrutural de uma narrativa com enormes distorções de um cinema e sua contribuição efetiva, mas pela ambiguidade adicionada deixa ruir uma análise mais profunda que ficou pelo caminho, também.

domingo, 26 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Pequeno Quinquin)


O Pequeno Quinquin

Uma das agradáveis surpresas da 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo é o magnífico O Pequeno Quinquin, originalmente foi exibido como uma minissérie de TV, dirigido pelo competente francês Bruno Dumont, que assinou também o roteiro. Tem em sua filmografia A vida de Jesus (1993), vencedor do Prêmio do Júri Internacional na 21ª Mostra e do prêmio Caméra d’Or no Festival de Cannes; A Humanidade (1999), vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes; 29 Palms (2003); Flandres (2006), Grande Prêmio do Júri em Cannes; O Pecado de Hadewijch (2009), Fora de Satã (2011) e Camille Claudel 1915 (2013). Nesta sua última realização o mote da trama é a inusitada descoberta de uma vaca morta preenchida com restos humanos dentro de um galpão alemão abandonado após a Segunda Guerra Mundial. Outros crimes se sucederão na atmosfera criada em torno daquele lugar com seus mistérios contagiantes pelos intrigantes fatos que desfilarão nos 200 minutos que passam rapidamente, com o auxílio da fulgurante fotografia de Guillaume Deffontaine.

Dumont é tipicamente um diretor de ator e seu elenco é basicamente de amadores em seus longas. Anteriormente teve um olhar bem atento para a religião e a fé fervorosa, como no drama sobre a triste trajetória de vida da escultora que empresta seu nome ao título Camille Claudel 1915 (2013), revela-se um estudioso da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, fez uma análise avassaladora sobre o Cristianismo, na qual a devoção e o amor ao propalado Deus pertence ao irmão tresloucado pregando uma igreja que sustenta como o ser maior. Assim foi também com O Pecado de Hadewijch (2010), retrata uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos. Ela, uma católica que tem vocação, mas entra em conflito ao descobrir outras religiões, descobrindo a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema a obstinação pela igreja.

Agora, nesta comédia dramática, vai ao encontro de temas polêmicos, como o racismo e a xenofobia francesa pela visão da infância deturpada pelos adultos, num painel construído com um roteiro bem engendrado, com soluções nada convencionais. A cinematografia francesa é pródiga em realizar filmes sobre crianças, com uma abordagem marcada pelas traquinagens gostosas, mostra o lado sadio e debruça-se sobre os problemas de maneira eloquente, sem as basbaquices encontradas em realizadores norte-americanos que preferem elevar num patamar superestimado ou subestimar no geral. Assim foi com O Pequeno Nicolau (2010), dirigido por Laurent Tirard; François Truffaut, o precursor da Nouvelle Vague, esteve soberbo em Os Incompreendidos (1959) e Na Idade da Inocência (1976), dramas mostrando a transição da infância para adolescência. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme magistral sobre infância. Do Irã temos o não menos excelente O Balão Branco (1995), de Jafar Panahi.

O Pequeno Quinquin flutua da comicidade sutil com leveza para o rigor formal e técnico de situações escabrosas. Os personagens têm vida e demonstram fragilidades, arrogância, luxúria e ego inflado, como o capitão de polícia alemã Van der Weyden (Bernard Pruvost- uma atuação extraordinária) é um atrapalhado nas investigações, tem a autoestima nas alturas, um careteiro com tiques nervosos, embora inteligente é um paspalho que obtém poucos resultados práticos, numa bela sátira ao Nazismo pós-guerra. Lembra em algumas cenas o inesquecível inspetor Jacques Clouseau (Peter Sellers), da série A Pantera Cor-de-Rosa. O parceiro de Weyden é o folclórico Carpentier (Philippe Jore), um exibicionista no trânsito, com seus dois dentinhos apenas cria uma figura caricata alemã, simbolizando assim como seu colega o pior da herança que Hitler deixou. Enquanto buscam respostas, eles são seguidos pelo travesso Quinquin (Alane Delhaye), filho de uma família enigmática e racista, numa singular metáfora sobre a França conservadora com uma população sulista xenofóbica. Todos os personagens que mantêm algum tipo de relação com imigrantes impuros raciais terão seus destinos ceifados tragicamente, como uma dádiva maldita deixada pela guerra. O garoto tem ódio nos olhos e uma aversão pelos muçulmanos que entende não coadunar com os franceses de olhos azuis. Cria confusão por onde passa junto com seus amigos, tem uma namoradinha (Lucy Caron) que toca trombeta e também será uma das que terá um familiar morto estupidamente.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica e demolidora sobre um ambiente carregado de certa forma, em especial para os imigrantes e os que ousam avançar nas relações pessoais numa região conservadora, serão punidos para dar o exemplo de moralidade, como em O Porto (2011), de Aki Karismäki, ou no instigante Bem-Vindo (2009), de Philippe Lioret. Drumont coloca as relações infiéis e os relacionamentos com imigrantes num plano de absoluta discórdia de uma moral velhaca ultrapassada, como se lançasse um olhar de misericórdia e esperança, sendo realista e menos otimista que Claire Denis em Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke. Um soberbo questionamento sobre a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças também pela Europa. Um libelo contra a intransigência racial dos povos.

sábado, 25 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência)



Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência

Surge um dos melhores filmes da 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o notável Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência faz uma reflexão profunda sobre a existência e o sentido da vida, seguindo o título já analítico da comédia dramática. Foi o grande Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, com a impecável direção e roteiro do sueco Roy Andersson, que realizou seu primeiro filme ao se formar em cinema, no ano de 1969, com A Swedish Love Story. Dirigiu vários curtas com o estilo de tomadas longas. Na Mostra de São Paulo esteve presente com Vocês, os Vivos (2007) e Canções do Segundo Andar (2000), no qual venceu o Grande Prêmio do Júri em Cannes.

Com uma trama aparentemente simples, mas logo se evidencia a complexidade de um tema filosófico sobre o existencialismo através de dois homens cansados da vida que estão viajando a negócios. Ao melhor estilo de Groucho Marx, um comediante norte-americano celebrizado como um dos mestres do humor, Sam (Nils Westblom) e Jonathan (Holger Andersson) são dois vendedores ambulantes de artefatos engraçados que estão cansados do mundo. Uma bela construção de dois personagens consistentes dentro de suas fragilidades emocionais, vencedores ou vencidos, não importa, diante das circunstâncias que levam a vida. É um salto sobre o caos no mundo moderno, quase que apocalíptico pela sugestão derrotista da dupla em estado de pura reflexão sobre o futuro da humanidade.

István Borbás e Gergely Pálos são os responsáveis pela bela fotografia esmaecida em tons pastéis com visão de dor e tristeza, dentro do silêncio onipresente ambientadas nas cenas de elipse criativa que dá brilho aos olhos, dentro do apreciável formalismo de um universo deslumbrante em que o cineasta dá uma visão de esperança, embora minúscula, mas que faz os dois desencantados enxergarem um mundo repleto de pequenos momentos únicos no cotidiano, com um bálsamo de sonhos para dar imaginação às fantasias. Tudo é muito complexo dentro de uma analogia que vem das boas lembranças de grandeza de uma vida tênue pelas fragilidades do ser humano vulnerável.

Por vezes nem parece uma comédia dramática, ao oscilar para o drama melancólico, faz deste um filme maior pelo humor corrosivo, satiriza o rei e sua arrogante tropa que vão para a guerra e voltam alquebrados, embora mantenha a pomba dos superiores que perderam, com a empáfia dos sangues azuis hipócritas e tiranos. Aqueles dois homens moribundos a tudo assistem como fantasmas ambulantes que vendem uma alegria inexistente para os fregueses, pois paradoxalmente são tristonhos e visivelmente pessimistas. Comercializam dentes de vampiros, sacos de risadas e máscaras horrendas que assustam mais do que provocar risos. Ninguém acredita neles e nas mercadorias ultrapassadas e ingênuas, sequer na forma de alegoria como transposição à civilização.

O drama Winter Sleep (2014), do turco Nuri Bilge Ceylan, faz uma abordagem do mesmo tema existencial, aprofunda-se nos diálogos doloridos com questionamentos implacáveis, através do extremo realismo de cenas que retratam os efeitos do tédio. Já Andersson faz um filme complexo que deriva para o desencanto humano e a civilização colocada em xeque, como na cena do macaco sendo torturado psicologicamente, que remete para o início da criatura, hoje hostil e perversa, ligada num celular discute a relação e pouco se importa com o animal no estado de vítima. Ou ainda no pesadelo do protagonista que sonha com os negros sendo queimados vivos dentro de um tambor enorme com esboço de sistema de som, saindo fumaça preta de um lado. Ou seja, desta vez não foi o Nazismo embrutecido de Hitler que pratica o holocausto, mas os escravos sendo chicoteados covardemente que ardem no fogo do inferno.

A trilha sonora é também fundamental e preponderante para o desenvolvimento do clímax entediante que sufoca como se o espectador estivesse num claustro. Mas o diretor compensa com um humor sutil na deliciosa paródia musical que soa como o hino religioso Glória, Glória, Aleluia. Outro achado da direção é o personagem que ouve uma canção no quarto do hotel até a madrugada, desata numa melancolia incontrolável, fica triste porque não quer se encontrar com os pais no paraíso, refuta o reencontro e desaba como um farrapo. Não é à toa o filme ter no prólogo três atos sobre a morte, anunciando situações como esta no inovador e singular roteiro que dribla a plateia com tiradas bem-humoradas, para depois jogá-la novamente para a reflexão da existência e seu sentido.

A dor da vida e do cotidiano com escassos recursos financeiros, tanto pode ser num dos tempos indicados: 1943, como nos dias atuais. Um filme perturbador pelo dolorido sentimento de derrota, em que há um leve sorriso das situações embaraçosas que se misturam. A câmera que percorre o cenário silenciosamente deixa espaço para meditar sobre um profundo mergulho na alma partida e sua lucidez perdida neste fabuloso Um Pombo Pousou...de emoções contidas e equilibradas sem apelar nunca para o melodrama.

Mostra de Cinema São Paulo (Alentejo, Alentejo)

























Alentejo, Alentejo

Vem de Portugal outro interessante filme na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Alentejo, Alentejo, com direção e roteiro do paulistano Sérgio Tréfaut, ex-assistente de vários diretores portugueses. Estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009), tendo no longa-metragem Viagem a Portugal (2011) a única experiência na ficção. O documentarista faz um retrato digno de dezenas de grupos amadores que se reúnem regularmente na cidade que dá título ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiam antigos cantos polifônicos e improvisam modinhas contemporâneas, numa instigante viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes, através da bela fotografia de João Ribeiro.

O “cante” nasceu nas tabernas e nos campos, entre camponeses e mineiros, repassado ao longo de várias gerações como um criativo e real lamento choroso das canções. Nas últimas décadas, novos grupos apareceram na periferia de Lisboa e em diversos países para onde os alentejanos emigraram. Miguel Gomes realizou o similar magnífico Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com duas horas e meia de duração, recebeu inclusive o prêmio da crítica na Mostra de São Paulo, com filmagens em Argamil, na região central de Portugal, próximo de Coimbra. Apresentou inicialmente um país não globalizado, em que o mês de agosto é marcado pelas festas típicas nos bucólicos lugarejos entre a serra e o interior, com seus grupos musicais tradicionais nos festivais de verão. Buscou uma banda folclórica que aceitou ser filmada em suas atividades e apresentações, uma boa mescla com suas complexidades que lembrou o admirável Nashville (1975), de Robert Altmann, que tinha como palco vários acontecimentos durante a Guerra do Vietnã.

Também Manoel de Oliveira faz uma pequena incursão pela cantoria folclórica em O Estranho Caso de Angélica (2010), onde a música é cantada em forma de fado pelo capataz para os lavradores num trabalho subalterno e arcaico, mas determinados em aplainar as terras dos vinhedos com as foices para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias que emolduram o painel bonito, num canto melódico e triste de uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva. Tréfaut cria um clima saudável na inversão de papéis, mistura o realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos da ficção para o puro documentário e vice-versa.

O cineasta peca por cenas longas com explicações didáticas, deixa o ritmo quebrar pela excessiva conversação repetitiva, mas não invalida esta boa contribuição sobre o folclore e o desemprego no país, contadas com ardor e dor, falando da morte que se aproxima ou já deixou rastros. O diretor uruguaio Ricardo Casas realizou com melhor resultado objetivo em El Padre de Gardel (2013), sem falar no estilo do veterano documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, morto neste ano de forma trágica, o melhor de todos, pela genialidade na técnica de entrevistar e ouvir os personagens do povo no seu vasto painel humano. Deixava fluir o tema com brilho e elegância.

Alentejo, Alentejo é um filme preocupado com o povo que sofre com o desemprego torturante que reina naquela região. Ali há muitas terras improdutivas que poderiam dar o pão que vem da terra, ressaltado com entusiasmo nos cânticos tradicionais que enaltecem a situação caótica, através de uma crítica pontual ao sistema de governo desumano implantado sem dar alternativas às crises recentes em toda Europa. Torna-se mais palatável quando as crianças se manifestam em aula e dizem que seus avôs foram embora para o exterior, buscando emprego na França e Suíça.

Eis um bom filme que contribui neste registro interessante sobre a cultura e a história dos alentejanos. São jovens que se esmeram para seguir o legado dos pais, sem se importarem em divulgar o cântico dos sábios velhos sonhadores nativos daquele lugar. São bem eficazes os moradores contando suas histórias e situações típicas, registrando tudo aquilo que achava interessante sem ter um personagem central, captando sons e as belas imagens da região com seus locais pitorescos que fundamentalmente gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares com as idiossincrasias regionais. O melhor é se deixar levar pelas melodias lusitanas com sua tradição.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Reino da Beleza)



O Reino da Beleza

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama O Reino da Beleza, com direção e roteiro do consagrado canadense Denys Arcand, que venceu o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com O Declínio do Império Americano (1986). Dando continuação filmou As Invasões Bárbaras (2002) que abocanhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Participou com estas duas obras-primas na Mostra de São Paulo, para retornar na edição 31 com A Era da Inocência (2007). Agora neste último longa retrata uma grande paixão de um homem casado que conhece por acaso uma mulher linda, intrigante e sedutora como um combustível que faltava para explodir uma grande paixão, que revira sua vida e o abala psicologicamente, uma espécie de atração fatal.

Arcand é um cineasta preocupado basicamente com as mazelas sociais, entre as quais as más condições hospitalares, além das relações humanas familiares, como vista na temática de As Invasões Bárbaras que se dá em torno de um historiador em fase terminal de um câncer, no qual o filho tenta proporcionar ao pai um final de vida melhor, com menos sofrimento. Durante o filme se explicita o conflito entre os dois que há tempos não se viam e que, em razão das circunstâncias, são obrigados a se reencontrar. À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, busca encontrar a paz no pós-morte com a ajuda contraditória do filho ausente, sua ex-mulher e velhos amigos.

Mesmo sendo uma realização menor em sua filmografia repleta de obras magníficas, o filme atual está bem acima da maioria das mediocridades que são despejadas no mercado cinematográfico. Tem uma trama gostosa e densa ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça. Luc (Éric Bruneau) é um jovem arquiteto talentoso, que tem uma vida aparentemente tranquila com a esposa, Stéphanie (Mélanie Thierry), em um lugar paradisíaco nas imediações da aprazível Québec. O casal tem uma casa moderna, são atléticos e praticam vários esportes como tênis, caça e golfe, participam de jantares com os seletos amigos de sua roda social, levam uma rotina agradável como poucos. Num dia qualquer ele aceita ser o membro de um júri de arquitetura em Toronto. Lá, encontra Lindsay (Melanie Merkosky), a bela e misteriosa organizadora de eventos em Toronto, que fisga o coração e a alma do marido fiel, até ali.

O novo filme de Arcand é bem coadjuvado pela deliciosa trilha sonora de Pierre-Philippe Cote e com a primorosa fotografia de Nathalie Moliavko-Visotzky, captando imagens em lindas locações, como os lagos, campos, rios com embarcações suntuosas, estações de esqui sendo bafejadas por nevascas, tudo com belezas naturais de um Canadá festejado. Com uma narrativa pontuada pelo drama pouco denso familiar, após os acontecimentos do evento e as descobertas do protagonista, de que sua vida nunca mais será a mesma, o filme dá uma oscilada no meio pela frieza nórdica, faz perder um pouco o ritmo, para retomar o clímax e acelerar na reta final, com um pouco mais de emoção pela dor da possível perda se confrontando com o sentimento de culpa pela traição, seguido da tentativa de suicídio.

O drama traz no seu bojo as nuances de um romantismo desbragado, com boa dose de lirismo e sutilezas, mesmo que em situações indesejadas juntas de um egoísmo, sem grandes reviravoltas e de pouco argumento reflexivo quanto ao casamento na sua essência e os relacionamentos extraconjugais do casal, especialmente do marido que valoriza a beleza plástica na sua profissão, incluindo-se mulheres e casas bem definidas como valoração de coisas supérfluas. A trama no desfecho revela como uma ode ao Don Juan na nova conquista amorosa e a criação material quase que num mesmo plano. As crises da mulher bissexual no aspecto de depressão e transtornos de pânico avançam lentamente, embora haja delírios e fantasias pouco consistentes, ficam pelo meio do caminho nas perturbações psiquiátricas incapacitantes que afetam diretamente a relação conjugal, mas caracterizadas sem muito elã.

O Reino da Beleza pode não ter um roteiro de grande complexidade, mas faz pensar sobre as futilidades impostas sobre a beleza como objetivo de discórdia e a transmutação da vida aparentemente feliz de um casal, teoricamente, é claro. O epílogo em Paris é antecipado pelo prólogo no reencontro dos velhos e apaixonados amantes. O fim do casamento não chega a ser questionado com profundidade, deixando interpretações evasivas sobre o marido que se esconde para aparentar uma relação normal, mesmo levando sua vida pela metade até certo ponto, como a corrosiva cena em que abandona a amante no luxuoso hotel e vai se refugiar num quarto de motel modesto, diante do velho e surrado sentimento de culpa.

O diretor deixa para o final para uma tentativa de realizar um bom ensaio sobre as novas conquistas, sem que haja o rompimento do vínculo matrimonial, permanecendo o amor acima de tudo. Não há muita poesia, mas tem boa dose de cenas apimentadas de prazer nas cenas tórridas de sexo explícito. Traição e culpa são abordados com alguma desenvoltura, embora com distanciamento, como decorrências de um casal que mora junto, diante do inesperado choque do surgimento de outras pessoas envolvidas no seu cotidiano, de lado a lado. Há um bom realismo na intimidade com o espectador nas cenas de tristeza da perda iminente de um grande amor e a solidão que se escancara como resultado final, mas no seu contexto há muito mais do que sexo livre, afasta os preconceitos repressivos na abordagem, mesmo que desemboque em rupturas do cinismo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Que Horas São no Seu Mundo?)



Que Horas São no Seu Mundo?

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama Que Horas São no Seu Mundo?, do estreante em longas Safi Yazdanian, que também assina o roteiro. Não faz parte dos conterrâneos do cinema que tinham como cenário o interior do Irã, predominando o chão batido de terras poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).

O promissor Yazdanian se aproxima em muito de Asghar Farhadi, autor de A Separação (2010) que demonstrou muita simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política na extraordinária metáfora do regime ditatorial, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente pelo marido e, principalmente, por O Passado (2013) obra voltada essencialmente para as coisas do cotidiano de seu país, embora tenha filmado na França, bem distante de seu povo, não se afastou das relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade de uma temática consistente dos planos intimistas do cineasta que se detém mais na abordagem moral e ética familiar.

Que Horas São no Seu Mundo? é um drama rodado num cenário urbano de muito silêncio e reflexão, com uma trama bem estruturada na protagonista Goli (Leila Hatami- de grande atuação mesclada com uma beleza deslumbrante, a mesma de A Separação) que, de uma hora para outra, decide regressar ao Irã depois de 20 anos vivendo em Paris. Ao pousar em Rasht, sua cidade natal no interior do Irã, ela é recebida por Farhad (Ali Mosaffa é o mesmo que brilhou em O Passado), um fabricante de molduras que dá aulas de francês como entretenimento. Embora pareça conhecê-la muito, ela não tem nenhuma lembrança do vizinho.

A tensão inicial estabelecida entre a recém-chegada e o conterrâneo com aspecto de espião está ligada diretamente num passado de um romance que não aconteceu numa relação improvável no futuro. O sutil conflito instalado trará muitas revelações do passado e feridas abertas sem cicatrizações serão removidas com boa dose poética e sensibilidade para esclarecer alguns mal-entendidos colocados em xeque para os personagens conviverem e discutirem as nuances marcadas pelo tempo. A chegada de Goli no Irã é semelhante à de Ahmad na França, em O Passado. Ambos despertaram alguns segredos guardados e jogados para baixo do tapete. Farhad nutre pela conterrânea uma paixão doentia decorrente de uma relação ensandecida advinda de uma psicopatia social controlável.

Há um olhar de interrogação e dúvida no retorno de Goli nesta viagem sentimental, uma espécie de reminiscência para um mergulho no passado, com circunstâncias alteradas na trajetória pelas descobertas que se revelam. São visitas ao barbeiro; um velhinho esclerosado como seu país, pai de uma amiga; bem como a visita clássica ao cemitério para rever o túmulo da mãe. Mas o personagem Farhad é determinante para o andamento da história, pois ele sabe tudo sobre sua paixão secreta, o grande amor platônico guardado em segredo, como as lembranças da sala da aula, em que eram colegas e dali nasceu o dolorido e avassalador vínculo emocional imensurável. Uma patologia de uma doença chamada amor, embalada por uma fascinante trilha sonora assinada por Christophe Rezai.

Nos dois filmes, O Passado e Que Horas São no Seu Mundo?, há uma grande semelhança conceitual com a figura dos protagonistas: um sai do Irã, enquanto o outro retorna para lá, porque um tem o sentimento da volta sentimental, enquanto o outro quer ficar bem longe na busca da liberdade como forma de independência. O encontro na velha casa da protagonista terá as confissões e os detalhes de toda uma vida afastada dali. Ela se assusta num primeiro momento, mas como um lindo poema que se traduz para decifrar um enigma de uma relação inimaginável por falta de estreitamento de um vínculo, que por parte do dono da casa de molduras em nada mudou com a saída da amada para o exterior. Pelo contrário, aumentou ainda mais o seu interesse.

O drama retrata um presente muito atual com verdades irrecuperáveis para uma análise sobre a emoção contida derivada de uma situação peculiar para a complexidade do enredo e dos personagens sob uma chuva poética que cai lentamente no silêncio daquele lugarejo bucólico que irá propiciar um clima de rara beleza. Digno de um cinema voltado para a ternura e o afeto num país envolvido constantemente por conflitos internos de lutas religiosas e políticas, sob o manto de um regime ditatorial, tendo os direitos femininos restritos. Mas para contrabalançar há vida, amor e dignidade naquele povo sofrido. Há uma reflexão sobre uma parte perdida do que ficou para trás, ressurge como esperança para acariciar ego e alma, sem culpa ou arrependimento. Todavia, nem mesmo o que há como elemento forte de ligação justifica o que ficou à deriva. Repete-se o olhar realista para um mundo em ruínas, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta significativa obra contextualizada.