domingo, 26 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Pequeno Quinquin)


O Pequeno Quinquin

Uma das agradáveis surpresas da 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo é o magnífico O Pequeno Quinquin, originalmente foi exibido como uma minissérie de TV, dirigido pelo competente francês Bruno Dumont, que assinou também o roteiro. Tem em sua filmografia A vida de Jesus (1993), vencedor do Prêmio do Júri Internacional na 21ª Mostra e do prêmio Caméra d’Or no Festival de Cannes; A Humanidade (1999), vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes; 29 Palms (2003); Flandres (2006), Grande Prêmio do Júri em Cannes; O Pecado de Hadewijch (2009), Fora de Satã (2011) e Camille Claudel 1915 (2013). Nesta sua última realização o mote da trama é a inusitada descoberta de uma vaca morta preenchida com restos humanos dentro de um galpão alemão abandonado após a Segunda Guerra Mundial. Outros crimes se sucederão na atmosfera criada em torno daquele lugar com seus mistérios contagiantes pelos intrigantes fatos que desfilarão nos 200 minutos que passam rapidamente, com o auxílio da fulgurante fotografia de Guillaume Deffontaine.

Dumont é tipicamente um diretor de ator e seu elenco é basicamente de amadores em seus longas. Anteriormente teve um olhar bem atento para a religião e a fé fervorosa, como no drama sobre a triste trajetória de vida da escultora que empresta seu nome ao título Camille Claudel 1915 (2013), revela-se um estudioso da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, fez uma análise avassaladora sobre o Cristianismo, na qual a devoção e o amor ao propalado Deus pertence ao irmão tresloucado pregando uma igreja que sustenta como o ser maior. Assim foi também com O Pecado de Hadewijch (2010), retrata uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos. Ela, uma católica que tem vocação, mas entra em conflito ao descobrir outras religiões, descobrindo a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema a obstinação pela igreja.

Agora, nesta comédia dramática, vai ao encontro de temas polêmicos, como o racismo e a xenofobia francesa pela visão da infância deturpada pelos adultos, num painel construído com um roteiro bem engendrado, com soluções nada convencionais. A cinematografia francesa é pródiga em realizar filmes sobre crianças, com uma abordagem marcada pelas traquinagens gostosas, mostra o lado sadio e debruça-se sobre os problemas de maneira eloquente, sem as basbaquices encontradas em realizadores norte-americanos que preferem elevar num patamar superestimado ou subestimar no geral. Assim foi com O Pequeno Nicolau (2010), dirigido por Laurent Tirard; François Truffaut, o precursor da Nouvelle Vague, esteve soberbo em Os Incompreendidos (1959) e Na Idade da Inocência (1976), dramas mostrando a transição da infância para adolescência. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme magistral sobre infância. Do Irã temos o não menos excelente O Balão Branco (1995), de Jafar Panahi.

O Pequeno Quinquin flutua da comicidade sutil com leveza para o rigor formal e técnico de situações escabrosas. Os personagens têm vida e demonstram fragilidades, arrogância, luxúria e ego inflado, como o capitão de polícia alemã Van der Weyden (Bernard Pruvost- uma atuação extraordinária) é um atrapalhado nas investigações, tem a autoestima nas alturas, um careteiro com tiques nervosos, embora inteligente é um paspalho que obtém poucos resultados práticos, numa bela sátira ao Nazismo pós-guerra. Lembra em algumas cenas o inesquecível inspetor Jacques Clouseau (Peter Sellers), da série A Pantera Cor-de-Rosa. O parceiro de Weyden é o folclórico Carpentier (Philippe Jore), um exibicionista no trânsito, com seus dois dentinhos apenas cria uma figura caricata alemã, simbolizando assim como seu colega o pior da herança que Hitler deixou. Enquanto buscam respostas, eles são seguidos pelo travesso Quinquin (Alane Delhaye), filho de uma família enigmática e racista, numa singular metáfora sobre a França conservadora com uma população sulista xenofóbica. Todos os personagens que mantêm algum tipo de relação com imigrantes impuros raciais terão seus destinos ceifados tragicamente, como uma dádiva maldita deixada pela guerra. O garoto tem ódio nos olhos e uma aversão pelos muçulmanos que entende não coadunar com os franceses de olhos azuis. Cria confusão por onde passa junto com seus amigos, tem uma namoradinha (Lucy Caron) que toca trombeta e também será uma das que terá um familiar morto estupidamente.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica e demolidora sobre um ambiente carregado de certa forma, em especial para os imigrantes e os que ousam avançar nas relações pessoais numa região conservadora, serão punidos para dar o exemplo de moralidade, como em O Porto (2011), de Aki Karismäki, ou no instigante Bem-Vindo (2009), de Philippe Lioret. Drumont coloca as relações infiéis e os relacionamentos com imigrantes num plano de absoluta discórdia de uma moral velhaca ultrapassada, como se lançasse um olhar de misericórdia e esperança, sendo realista e menos otimista que Claire Denis em Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke. Um soberbo questionamento sobre a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças também pela Europa. Um libelo contra a intransigência racial dos povos.

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