Dois Dias, Uma Noite
Outro ótimo filme se fez presente na 38ª. Mostra de Cinema
de São Paulo, o drama social Dois Dias,
Uma Noite, dos diretores belgas Jean-Pierre e Luc, mais conhecidos como os
irmãos Dardenne, que também são responsáveis pelo enxuto roteiro. O
longa-metragem é baseado num fato verídico, em que uma funcionária é demitida
de forma sumária do emprego, após uma votação conduzida de maneira parcial para
afastar uma colega de trabalho depressiva, que recém retorna à fábrica de
painéis solares após tratamento de saúde, para dar continuidade aos seus
afazeres profissionais, é trocada como moeda por um bônus de mil euros para
quem votar a favor da empresa.
Na obra anterior dos cineastas, O Garoto da Bicicleta (2011), tinha por tema um menino que buscava
desesperadamente encontrar o pai ausente que o abandonara há um mês num
orfanato, pois queria se livrar dele e reconstruir com outra mulher uma nova
família. Uma criança nada dócil, de comportamento com sérios desvios de
conduta, agressivo ao ser rejeitado definitivamente. Tratavam o drama com mais
delicadeza e menos rudeza, embora sem perderem o foco e o cerne da questão. Os
personagens dos cineastas geralmente parecem moribundos numa Bélgica que esqueceu
das classes menos abastadas. Filhos e pais estão em confronto de relacionamento
permanente, decorrente das mazelas de uma sociedade que virou as costas para uma
classe menos protegida, que busca nasRosetta
(1999), o grande vencedor de Cannes daquele ano; O Filho (2002); A Criança
(2005) também vencedor do Palma de Ouro; O
Silêncio de Lorna (2008), para muitos o melhor de sua invejável
filmografia, na profunda abordagem de drogadição e gravidez psicológica.
drogas suas realizações pessoais e
profissionais. Como também os pequenos furtos para sobreviverem são marcas
registradas em seus filmes de excluídos que vagam pelas ruas. Assim foi com o mesmo
rigor profundo de uma estética que aborda a virilidade e a violência reafirmadas
das realizações anteriores:
Os irmãos Dardenne fazem uma análise profunda da crise do
emprego e das condições paupérrimas de seus conterrâneos, sem dissociar das terríveis
precariedades abordadas por eles em filmes anteriores, na busca incessante de
uma realidade melhor, embora pelo prisma de um olhar pessimista e sombrio de
escassa esperança, exceto a dignidade que é bem retratada com isenção e sem
maniqueísmo barato e distante de cair na armadilha de um proselitismo ingênuo,
diante do terror psicológico colocado pelos condutores diretivos de uma fábrica
inescrupulosa, como metáfora de um país dentro de um continente em crise
sócio-econômica.
Uma trama com uma história consistente segurada por um
elenco elogiável de amadores, exceto a dupla principal de profissionais
consagrados. Sandra (Marion Cotillard- dispensa apresentações, mais uma vez brilha
sem nenhum glamour, em desempenho formidável e convincente) é a operária que vê
seus colegas de jornada trocá-la por mil euros mensais em suas contas
minguadas, ainda que explorados por chefes desonestos e antiéticos como os
parceiros de labor têm preços, na maioria. Ou para reformar a residência, ou ajudar
no sustento familiar, ou até crescer o patrimônio como a cobertura de uma
amiga. Tem aquela que ainda mente no interfone para não recebê-la, mas há o
imigrante negro que coloca seu emprego temporário em risco, demonstrado altivez
de espírito. São decepções que se sucedem e ampliam seu pessimismo, levando-a para
uma desesperada tentativa de suicídio, fruto do desencanto com o ser humano.
Tenta reverter os votos, indo de casa em casa para a nova votação que irá
acontecer na outra semana, com o apoio do marido (Fabrizio Rongione- o mesmo de
O Silêncio de Lorna e O Garoto da Bicicleta).
O tema não é tabu, recentemente foi bem explorado pelo
diretor francês Robert Guédiguian, em As
Neves do Kilimanjaro (2011), adaptação livre do poema Os Pobres, de Victor Hugo, uma história do líder sindical portuário
Michel (o fabuloso Jean-Pierre Daroussin- no sensível comissário em O Porto-2011) sendo demitido num
sorteio, aonde vem a perder o emprego, porque alguém teria que sair, e apesar
de sua estabilidade, registrou seu nome no rol dos concorrentes e acabou
“contemplado”. Diante de uma aposentadoria compulsória, teve o apoio irrestrito
da mulher generosa, que trabalha para ajudar na composição da renda da família.
Vivem rodeados dos filhos, netos e são premiados na bonita cerimônia de
aniversário de casamento no sindicato com uma viagem para o monte Kilimanjaro,
mas a frustração vem logo, ao ser roubado por um ex-colega de trabalho também
demitido, sob a alegação de pagar as contas atrasadas e criar os dois irmãos
menores abandonados pelos pais.
Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada
e de um pai omisso dar o tom no longa, com os problemas sociais do desemprego
de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os
irmãos Dardenne miram na ética profissional e o preço de cada trabalhador
fragilizado pelo sistema competitivo: bastante para alguns e pouco para outros.
Um mergulho dolorido sobre a perda do emprego e as consequências nefastas do
cotidiano que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma
pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque. Dois Dias, Uma Noite é um drama notável pelos questionamentos e a
exposição de cicatrizes ainda abertas do bônus financeiro, que remete para uma
reflexão imparcial.
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