segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Dois Dias, Uma Noite)


Dois Dias, Uma Noite

Outro ótimo filme se fez presente na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o drama social Dois Dias, Uma Noite, dos diretores belgas Jean-Pierre e Luc, mais conhecidos como os irmãos Dardenne, que também são responsáveis pelo enxuto roteiro. O longa-metragem é baseado num fato verídico, em que uma funcionária é demitida de forma sumária do emprego, após uma votação conduzida de maneira parcial para afastar uma colega de trabalho depressiva, que recém retorna à fábrica de painéis solares após tratamento de saúde, para dar continuidade aos seus afazeres profissionais, é trocada como moeda por um bônus de mil euros para quem votar a favor da empresa.

Na obra anterior dos cineastas, O Garoto da Bicicleta (2011), tinha por tema um menino que buscava desesperadamente encontrar o pai ausente que o abandonara há um mês num orfanato, pois queria se livrar dele e reconstruir com outra mulher uma nova família. Uma criança nada dócil, de comportamento com sérios desvios de conduta, agressivo ao ser rejeitado definitivamente. Tratavam o drama com mais delicadeza e menos rudeza, embora sem perderem o foco e o cerne da questão. Os personagens dos cineastas geralmente parecem moribundos numa Bélgica que esqueceu das classes menos abastadas. Filhos e pais estão em confronto de relacionamento permanente, decorrente das mazelas de uma sociedade que virou as costas para uma classe menos protegida, que busca nasRosetta (1999), o grande vencedor de Cannes daquele ano; O Filho (2002); A Criança (2005) também vencedor do Palma de Ouro; O Silêncio de Lorna (2008), para muitos o melhor de sua invejável filmografia, na profunda abordagem de drogadição e gravidez psicológica.
drogas suas realizações pessoais e profissionais. Como também os pequenos furtos para sobreviverem são marcas registradas em seus filmes de excluídos que vagam pelas ruas. Assim foi com o mesmo rigor profundo de uma estética que aborda a virilidade e a violência reafirmadas das realizações anteriores:

Os irmãos Dardenne fazem uma análise profunda da crise do emprego e das condições paupérrimas de seus conterrâneos, sem dissociar das terríveis precariedades abordadas por eles em filmes anteriores, na busca incessante de uma realidade melhor, embora pelo prisma de um olhar pessimista e sombrio de escassa esperança, exceto a dignidade que é bem retratada com isenção e sem maniqueísmo barato e distante de cair na armadilha de um proselitismo ingênuo, diante do terror psicológico colocado pelos condutores diretivos de uma fábrica inescrupulosa, como metáfora de um país dentro de um continente em crise sócio-econômica.

Uma trama com uma história consistente segurada por um elenco elogiável de amadores, exceto a dupla principal de profissionais consagrados. Sandra (Marion Cotillard- dispensa apresentações, mais uma vez brilha sem nenhum glamour, em desempenho formidável e convincente) é a operária que vê seus colegas de jornada trocá-la por mil euros mensais em suas contas minguadas, ainda que explorados por chefes desonestos e antiéticos como os parceiros de labor têm preços, na maioria. Ou para reformar a residência, ou ajudar no sustento familiar, ou até crescer o patrimônio como a cobertura de uma amiga. Tem aquela que ainda mente no interfone para não recebê-la, mas há o imigrante negro que coloca seu emprego temporário em risco, demonstrado altivez de espírito. São decepções que se sucedem e ampliam seu pessimismo, levando-a para uma desesperada tentativa de suicídio, fruto do desencanto com o ser humano. Tenta reverter os votos, indo de casa em casa para a nova votação que irá acontecer na outra semana, com o apoio do marido (Fabrizio Rongione- o mesmo de O Silêncio de Lorna e O Garoto da Bicicleta).

O tema não é tabu, recentemente foi bem explorado pelo diretor francês Robert Guédiguian, em As Neves do Kilimanjaro (2011), adaptação livre do poema Os Pobres, de Victor Hugo, uma história do líder sindical portuário Michel (o fabuloso Jean-Pierre Daroussin- no sensível comissário em O Porto-2011) sendo demitido num sorteio, aonde vem a perder o emprego, porque alguém teria que sair, e apesar de sua estabilidade, registrou seu nome no rol dos concorrentes e acabou “contemplado”. Diante de uma aposentadoria compulsória, teve o apoio irrestrito da mulher generosa, que trabalha para ajudar na composição da renda da família. Vivem rodeados dos filhos, netos e são premiados na bonita cerimônia de aniversário de casamento no sindicato com uma viagem para o monte Kilimanjaro, mas a frustração vem logo, ao ser roubado por um ex-colega de trabalho também demitido, sob a alegação de pagar as contas atrasadas e criar os dois irmãos menores abandonados pelos pais.

Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai omisso dar o tom no longa, com os problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os irmãos Dardenne miram na ética profissional e o preço de cada trabalhador fragilizado pelo sistema competitivo: bastante para alguns e pouco para outros. Um mergulho dolorido sobre a perda do emprego e as consequências nefastas do cotidiano que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque. Dois Dias, Uma Noite é um drama notável pelos questionamentos e a exposição de cicatrizes ainda abertas do bônus financeiro, que remete para uma reflexão imparcial.

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