quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

De Coração Aberto
















Tormentas do Vício

O filme De Coração Aberto foi escrito e dirigido pela promissora cineasta francesa Marion Laine. Em 1998, dirigiu seu primeiro curta-metragem Le 28, após realizou outros dois curtas: Derrière la Porte (2000) e Quiproqu Eau (2006). Em 2003, participou do média-metragem coletivo Hôtel des Acacias, estreou em longa com Um Coração Simples (2008). Agora encanta com seu poder de sutileza e brutalidade mesclados no comovente drama que traz um tema recorrente no cinema como o alcoolismo e suas consequências devastadoras, tanto no relacionamento profissional como na vida íntima a dois, como no clássico americano Farrapo Humano (1945), do mestre Billy Wilder, onde Ray Milland protagoniza aquele triste espetáculo dantesco de uma pessoa desmoronando; ou de quem está preso e dependente, como bem retratado em O Ébrio (1946), drama brasileiro do cinema novo, dirigido por Gilda de Abreu, com Vicente Celestino no papel do homem derrotado; e ainda no recente Coração Louco (2010), de Scott Cooper, sobre um famoso cantor de música country, beberrão inveterado e fumante contumaz.

Embora haja uma grande paixão entre o casal de médicos cirurgiões, fatores externos como o vício da bebida alcoólica causa estragos irreparáveis do autodestrutivo marido Javier, de impecável interpretação do venezuelano Edgar Ramirez, que tem em seu currículo o protagonista “Chacal” no drama épico Carlos (2010), de Carlos Assayas, e também no filme em cartaz A Hora Mais Escura (2012), de Kathryn Bigelow. Na outra ponta está Mila, interpretada por Juliette Binoche, em mais uma grande atuação desta magnífica e talentosa diva francesa, esbanjando como sempre sua beleza, sensualidade e carisma; está no ápice da carreira. Foi vista recentemente no longa A Vida de Outra Mulher (2012), da estreante Sylvie Testud, e em Elles (2012), de Malgorzata Szumowska.

A trama é bem conduzida pela cineasta que mostra com sensibilidade ao abordar um casal feliz que está junto há dez anos e opta por não ter filhos. Tudo andava bem até a médica engravidar e querer abortar. Para surpresa o marido se opõe e resolvem ter a criança. Neste meio tempo surgem imprevistos em suas vidas, como o afastamento drástico de Javier do bloco cirúrgico do hospital em que trabalha. É impedido de continuar realizando transplantes de coração, mesmo sendo considerado o melhor profissional da área. Resta-lhe como prêmio de consolação a condição secundária de apenas dar aulas. Mas o pior ainda estava por vir, o motivo da decisão fora uma denúncia pertinente de alcoolismo do profissional no horário de trabalho. Um drama que não cai na caricatura fácil e nem no melodrama, pois Binoche atua com vida e constrói uma médica com seus problemas pessoais que se agravam ainda mais, diante das constantes bebedeiras homéricas do marido e suas constantes acusações infundadas, por vê-la cada vez mais perto do cirurgião (Hipolyte Girardot) que o substitui e deixa transparecer seu amor platônico, flertando com a linda colega.

Laine cria um enredo para causar um verdadeiro furor de turbulência na vida de Mila, através de uma reflexão madura sobre o alcoolismo. O clímax se acentua com a evolução da gravidez, surgindo discussões e brigas violentas que causam instabilidade no casal, com cenas de violência explícita, porém sem exageros. Há uma explosão de raiva e ressentimentos de Javier, que vê sua vida fracassar. Mergulha em delírios de crises de ciúmes, tornando-o agressivo, o que o faz colocar o apartamento abaixo depois de surtos incontidos. O próprio filho que está para nascer é questionado e sua paternidade é colocada em dúvida, ao perder a própria consciência pelo desequilíbrio emocional de uma mínima racionalidade. Há um transtorno de personalidade pela decadência humana de um médico bem-sucedido que vira um decrépito, onde tudo está à deriva e o grande amor de sua vida escorrega entre os dedos com a iminência da perda, diante de sua instabilidade e derrocada como pessoa segura, dando margem para desconfianças e a insegurança toma-lhe por completo, sentindo-se um inútil parasita.

Baseado no livro Remonter L’Orénoque, de Mathias Enard, o longa reflete em algumas cenas, que o único lugar que o protagonista sente-se bem é uma jaula no parque, junto com um chimpanzé, como se o instinto animal lhe estivesse a dominá-lo irracionalmente. Há algumas similitudes com o dilacerante drama Amor (2012), de Michael Hanecke, como na finitude do casal pelo temática do alcoolismo e com final inusitado. Os sentimentos de amor e paixão são mostrados com intensidade e o epílogo remete para o drama franco-austríaco ganhador do Palma de Ouro e do Oscar de melhor filme deste ano. O impacto é suavizado levemente por Laine, mas são corações que buscam uma abertura no infinito para dar continuidade ao vínculo entre um homem e uma mulher que viviam com bom humor dentro de uma paixão juvenil estabelecida na primeira cena, em plena cirurgia de um transplantado. A analogia da vida por um fio, mencionada pelo marido numa das cenas, já demonstra um contraste com a existência inconsequente levada quando se joga na bebida.

De Coração Aberto é o retrato da queda vertiginosa de um profissional e a derrocada fulminante de uma vida compartilhada a dois, tendo como resultado a busca no paraíso ou um pós-vida abordado no brilhante Amor. Com o nascimento de uma nova vida, fruto de um louco amor, ao som de Besame Mucho, na bela versão de Tino Rossi, há a busca de uma relação universal neste cativante drama intimista de perdas e ganhos, ao melhor estilo da velha escola francesa.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis














Musical Antigo

A adaptação do musical da Broadway escrita em 1980 por Alain Boubril e Claude-Michel Schönberg, traduzida para 22 idiomas, encenada em 42 países e visto por mais de 60 milhões de pessoas, foi baseada no clássico Os Miseráveis, obra publicada em 1862, pelo célebre escritor Victor Hugo. É ambientada em Paris, no ano de 1832, na fase pós-Revolução Francesa, em pleno século XIX e tem na direção Tom Hooper, o mesmo do burocrático, embora vencedor do Oscar daquele ano, O Discurso do Rei (2010). Simon Hayes é o responsável pela mixagem de sons diretos dos microfones dos atores em cena, descartando a gravação em estúdios, com um resultado pífio, diante da má qualidade da maioria dos atores cantando suas canções escolhidas no roteiro.

A trama está centrada na história de Jean Valjean (Hugh Jackman) que rouba um único pão para matar a fome da irmã caçula e é preso pelo insignificante delito. Consegue se libertar após alguns anos na cadeia, diante do ato de heroísmo de levantar a bandeira da França pregada num poste caído. Vai em busca da reconstrução de uma nova vida e tenta escapar do implacável inspetor Javert (Russel Crowe). Um filme que mostra-se previsível já na cena inicial da perseguição pelo homem da lei contra o fugitivo. Ao encontrar o abismo como saída, o final trágico do inspetor está traçado, diante da sua intolerância e sem uma mínima compreensão na busca da vingança a qualquer preço.

Quanto ao som direto, salva-se Anne Hathaway no papel de Fantine que consagra definitivamente as canções On My Own e I Dream a Dream, pela sua bela voz numa perfeita dicção; bem como Jackman pelos seus recursos vocais em carreira extensa no teatro musical nos EUA, Austrália e Reino Unido; outra surpresa positiva é a atriz novata Samantha Barks na pele da tristonha e desprezada Éponine. Já os demais intérpretes afundaram rotundamente, inclusive Amanda Seyfried como a personagem Cosette, filha de Fantine na fase adulta- na infância atuou Isabelle Allan-; nem Crowe se safa e suas tentativas de cantar direto são frustrantes; ou ainda o jovem revolucionário Marius (Eddie Redmayne), com risível desempenho, em nada convence. Para completar os destoantes há o casal de trapaceiros vividos por Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen que mais irritam do que agradam com um tedioso teatro de revista.

O melomusical que concorreu a oito Oscar e levou apenas como atriz coadjuvante para Hathaway, bem merecido apesar do pequeno papel; na maquiagem esteve correta a premiação, porém na mixagem de som, só ganhou pela ousadia, pois o resultado foi desastroso. Um filme frustrante que decepciona pela falta de qualidade no enredo, jogando fora um tema que poderia ser melhor aproveitado se tivesse um roteiro elaborado com acuidade e se houvesse uma montagem mais enxuta, pois as 2h40min são exaustivas, tornando-se desnecessárias ao espectador mais atilado uma trama tão enfadonha. Ao abrir mão dos diálogos tradicionais numa audácia que praticamente lhe custa um resultado mais satisfatório, Hooper busca nas imagens e nas canções emotivas uma fórmula para conquistar um público menos exigente e que se deixa levar por cenas de pieguismos, como o descartável encontro no paraíso ou no inferno- não fica bem claro- da continuação da revolução Francesa, com frases de heroísmo nacional exacerbado de apoteose; ou ainda na agonia de Éponine sob a chuva caindo nela e no amado que a socorre; sem esquecer o garotinho fuzilado à queima-roupa pelos maus soldados governistas.

Um musical pode ter dramaticidade para fisgar o espectador, desde que não seja apelativo por uma emocionalidade desproporcional e risível de interpretações calamitosas, como de Crowe, que não é um mau ator. Porém, se a proposta era uma reflexão sobre ética dentro de um ensaio de ficção, na abordagem do ex-presidiário solto após 19 anos recluso, por ter furtado um mísero pãozinho, o tiro saiu pela culatra e o cineasta perde-se totalmente no foco da questão. Ora ia para um meloso e antigo musical americano dos anos 40, 50 e 60; ora ia para a batalha sangrenta na França, deixando Fantine voltar só no epílogo, numa aparição equivocada e politicamente correta. Os Miseráveis está longe de ser um musical compromissado com uma reflexão mais elaborada, embora o diretor dê vazão ao deixar a música solta e sem concessões, num estilo quase que irresponsável, onde soçobra um tema profundo de um dos maiores clássicos de todos os tempos, para dar guarida a desempenhos malogrados de um equivocado musical que não empolga e beira ao inexpressivo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

As Sessões

















Poesia com Persistência

O longa-metragem As Sessões é um instigante drama com um bom humor refinado, que conta a história real da vida do escritor e poeta americano Mark O’Brien (1949-1999), interpretado pelo inspirado ator John Haukes, de atuação soberba e irretocável nos mínimos detalhes das minúcias e trejeitos da expressão física deformada de um protótipo aleijado; é o mesmo caipira assustador que atuou no filme Inverno da Alma (2010), de Debra Granik, indicado ao Oscar há dois anos. O diretor polonês Ben Lewin também foi vítima da mesma enfermidade quando criança, que lhe deixou sequelas e o faz andar de muletas, razão pela qual conhece bem a situação abordada.

O filme retrata a iniciação sexual do escritor, tendo em vista que na infância foi afetado pela poliomielite aos seis anos, que lhe retirou seus movimentos, exceto a cabeça que conseguiu girar, deixando-o paraplégico com uma vida quase vegetativa, pois está sempre deitado e respira através de um pulmão de aço ligado nas máquinas que o auxiliam no seu dia a dia. Faz frequentes visitas à igreja e tem no padre (William H. Macy) o seu confidente e conselheiro, assegurando-lhe que a iniciativa de buscar o sexo sem amor não é pecado, indicando-lhe uma terapeuta (Helen Hunt- mesmo discreta no papel, foi indicada ao Oscar como melhor atriz coadjuvante) para superar suas dificuldades físicas e as fragilidades inerentes de um homem, por sofrer de timidez e os temores são muitos, mas a persistência é seu lema para alcançar o objetivo maior que é a busca da forma do aprendizado para a sexualidade.

Um drama sobre uma deficiência física irreversível de um homem que quer relacionar-se sexualmente com uma mulher. Há na direção competente uma condução com suavidade e ternura na trajetória do personagem, como se fosse um percurso realizado por um determinado corpo no espaço, com base em um sistema coordenado e pré-definido, onde o vínculo afetivo entre a profissional e o paciente parece ser inevitável na abordagem, mas os parâmetros ficam evidenciados e pré-estabelecidos entre ambos para ser cumprido à risca, sob pena do resultado ser prejudicado e fracassar.

As Sessões é baseado no conto do escritor sobre a sexualidade efetiva em pessoas deficientes físicas. O tema é serio e o cineasta ao optar pelo tom cômico não esvazia a complexidade dramática da trama, muito pelo contrário, prende ainda mais o espectador. Há alguma similitude com o longa Intocáveis (2011), de Eric Toledano e Olivier Nakache, onde havia uma inesperada amizade entre um tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, que buscava seu reingresso social; porém sem a sisudez e o desconforto do relato de O Escafandro e a Borboleta (2007), de Julian Schnabel, que abordava um homem apaixonado pela vida, mas subitamente tem um derrame cerebral, acorda e se depara com uma rara paralisia. E o único movimento que lhe resta no corpo é o do olho esquerdo, comunica-se piscando letras do alfabeto e cria um mundo próprio, contando com aquilo que não paralisou: a imaginação e a memória; ou ainda do bizarro e inverossímil drama japonês Carterpillar (2010), de Koji Wakamatsu, numa reflexão sobre os efeitos nefastos e devastadores da sobra mutilada de um ser humano, resultantes da dor e da demagogia da guerra, decorrendo ódio e irresignação daquela que tem que lhe servir sexualmente, lavar e fazer sua higiene pessoal, dar comida e bebida compulsivamente.

A película é uma notável artimanha para mostrar que um deficiente paralítico pode sim ter vida normal e se satisfazer sexualmente com sua parceira, embora haja dificuldades e grandes percalços no caminho árduo, Lewin dá um tom emocional contido e sem pieguismo, com extrema sensibilidade na erotização de seu personagem. É difícil não torcer por O’Brien que busca na poesia e na sedução a fórmula adequada para obter o objetivo maior que é perder a virgindade e ser um homem realizado.

Embora simples na sua estética, deixando as metáforas afastadas do enredo, vai direto ao ponto pela ótica da comicidade, tendo como ingredientes essenciais: a poesia, o sexo, a vida e a morte do protagonista, resumida na comovente homenagem realizada na missa pelo padre, um mero interlocutor das palavras do escritor para as mulheres que o entenderam de alguma forma e o fizeram uma pessoa morrer quase que totalmente feliz. Há evidências de desprendimentos e a refutação de quaisquer tipos de ressentimentos, com notáveis cenas emotivas flutuando entre os espectadores, pelo olhar atento deste veterano cineasta que flerta com a sensibilidade e a compaixão, através de uma luz lançada na humanidade pelos méritos inegáveis ao abordar uma relação solidária de duas pessoas, além da gratidão e superação, nesta obra magnífica que se afasta do politicamente correto para buscar a alegria de viver.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Mestre



Alma Perdida

Em seu novo filme O Mestre, o diretor californiano Paul Thomas Anderson segue uma trajetória pessimista sobre o ser humano, assim como foi em Boogie Nights- Prazer sem Limites (1997), Magnólia (1999) e Sangue Negro (2007). Há cinco anos de abstinência criativa, o cineasta retorna com este devastador drama ambientado nos anos de 1950, nos EUA, sobre os reflexos posteriores da guerra como mote para a tentativa de recuperação, mesclada com a subjugação da vítima por um misto de pastor e mentor espiritual, com amplo domínio da palavra e da persuasão. Faz uso sistemático de métodos de regressão da mente por uma manjada hipnose, em forma de terapia de grupo para obter mais seguidores.

A trama tem o marinheiro Freddie Quell (Joaquin Phoenix) voltando dos combates da 2ª Guerra Mundial, com intermitentes lembranças sobre os japoneses. Fica evidente sua perturbação pelo passado das lutas travadas e seu comportamento errático como sinal de desequilíbrio extremo, que o faz um alcoólatra que se utiliza da violência física para resolver os entraves na vida. São evidências de um homem atordoado por traumas oriundos de sua passagem no fronte que lhe marcam profundamente, causando-lhe enormes dificuldades de readaptação à civilização pós-guerra. O longa traz ao espectador o momento que Freddie embarca por acaso num navio iluminado que parte para alto-mar. É mais uma de suas fugas para não ser morto, após aprontar mais uma tolice. Ao ser conduzido ao dono da festa, o reverenciado mestre Lancaster Todd (Philip Seymour Hoffman) detém a liderança de uma seita, mas que não passa de um golpista, auxiliado em seu séquito pela esposa controladora da situação (Amy Adams), o casal de filhos e o genro.

As atuações são extraordinárias, principalmente Phoenix com uma expressão facial agonizante e um andar encurvado de um corcunda, dando vida e construção para um personagem antológico, em sua melhor interpretação de toda carreira. Deveria ganhar o Oscar de melhor ator pelo arrebatador desempenho, pois já ganhou no Festival de Veneza, dividindo o título com Hoffman- que concorre na categoria de ator coadjuvante no Oscar-, abocanhou ainda prêmio de direção em Veneza. Bem que merecia concorrer no Oscar como melhor filme e direção, mas inexplicavelmente está fora, embora Ammy Adams concorra como atriz coadjuvante. Porém Phoenix tem pelo caminho um Daniel Day-Lewis na pele do presidente histórico no filme Lincoln, de Spielberg, que também impressiona pela exuberância na performance, com uma voz tênue e calma, costas curvadas, carismático e sem exageros ou clichês caricatos, carrega o filme nas costas praticamente sozinho.

O cineasta desfila com habilidade seus personagens e as situações vão se encaixando sem sensacionalismo, mas abstém-se das fórmulas e métodos quantitativos e qualitativos da quadrilha, Mostra o grupo seguindo a cura do passado e a suposta liberdade do futuro pelo livro “A Causa”, escrito pelo líder espiritual para arrebanhar suas ovelhas desgarradas. Ele mesmo se intitula um mestre e sabedor de tudo, ao autoproclamar-se como médico, médium, filósofo e físico. O livro condutor da seita mescla diversas alternativas de correntes, entre as quais o autocontrole, o conceito de extraterrestres e hipnose, com a finalidade de ajudar pessoas na busca de algo promissor, como bem enfatiza o estelionatário da cura.

Um filme com profundidade que apresenta Thomas Anderson com firmeza e estilo próprio nesta obra autoral, ao buscar na relação do ex-militar com o líder religioso. A desmistificação pelo diretor está alicerçada na amostragem de novos seguidores e celebridades captadas por uma ciência empírica de fundamentos duvidosos e deturpados espiritualmente. Deixa nas entrelinhas que a farsa continua e se espalha, aproveitando as fraquezas pessoais e o controle sobre os impulsos de um protagonista em crise existencial e sem um norte de vida definido, que está preso e acorrentado ao seu mentor espiritual pelo comando da palavra e a ameaça do retorno ao passado perturbador. Embora haja uma reação para cortar o vínculo, há uma complexidade e um terror que lhe são incutidos no seu psiquê de lembranças que tanto lhe assusta.

As águas revoltas simbolizam e remetem para seu estado de desordem mental e a lucidez se esboroa como pó e que são apresentados em forma de desenho de figuras humanas, como na cena sexual chocante entre Freddie com a abstrata mulher de areia, soa como um desafio para o espectador em desvendar os enigmas apresentados e tentar compreender aquela relação visceral de dentro de um vazio existencial do subjugado. E o surto latente que emerge e toma conta do protagonista é a simbolização do desespero autodestrutivo e revelador de uma caótica e delicada relação de dependência, como se fosse o criador com sua criatura.

O Mestre é um mergulho profundo no tema dos princípios da cientologia, retrata mesmo que de forma sutil e sem citá-la explicitamente, aborda com dignidade a irracionalidade das seitas, esmiuçando seus efeitos e consequências advindas de um líder negativo pregando a imortalidade da alma para afastar os traumas do passado que estão na memória, com uma notável reflexão sobre as doutrinas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade de um ser humano fragilizado pela atormentação de uma guerra dolorosa e suas perdas que teve, diante de um futuro incerto, numa fabulosa abordagem de um diretor de elenco.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Som ao Redor



Vidas Silenciosas

Pernambuco está vivendo um bom momento no cinema de autor, como Árido Movie (2005), de Lírio Ferreira; Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Era uma Vez Eu, Verônica (2012), ambos de Marcelo Gomes; Baixio das Bestas (2006) e Febre do Rato (2011), todos de Cláudio Assis. Surge agora o badalado O Som ao Redor, do ex-crítico de cinema e diretor em seu segundo longa-metragem, Kleber Mendonça Filho, que lhe rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de melhor filme no Festival do Rio. Ficou ainda ao lado dos festejados longas Amor, de Michael Haneke e Lincoln, de Steven Spielberg, ao ser incluído entre os dez melhores de 2012, pelo crítico Anthony Oliver Scott, do New York Times. Sua carreira começou com os curtas A Menina de Algodão (2002), Vinil Verde (2004), Eletrodomésticas (2005) e Recife Frio (2009), estreou em longas com o documentário Crítico (2008).

Um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre a rua Setúbal, na zona Sul de Recife, mostrando belos lugares com moradias bem protegidas. Logo se percebe as crianças nos edifícios gradeados e com assistência de babás, mas em contrapartida a classe menos abastada é representada por Bia (Maeve Jinkings), uma mulher insatisfeita sexualmente, que busca o prazer na maconha e na relação alegórica com a máquina de lavar roupas- uma citação ao seu curta Eletrodomésticas- enquanto o marido dorme e ronca. Um retrato do cotidiano de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha.

Mendonça Filho não deixa escapar a imposição do coronelismo dominador, representado por Francisco (interpretado pelo escritor W. J. Solha) que manda e desmanda no entorno. Demonstra seu poder ao chamar o recém-contratado segurança do bairro Clodoaldo (Irandhir Santos- de convincente atuação) para uma boa conversa e já pede sem constrangimento para deixar em paz seu neto que tem por hobby fazer pequenos furtos, pois não quer que o garoto seja incomodado. Existe até uma pressão inicial ao garoto, mas logo há uma recuada estratégica. Só o primo João (Gustavo Jahn), também neto de Francisco, um rapaz que vende e aluga imóveis bate de frente com protegido avô. O longa reserva para a cena final a revelação inusitada do encontro para o acerto de contas do passado.

O Som ao Redor é fundamentalmente um filme silencioso que capta os barulhos externos, como do cachorro que late sem parar e causa insônia em Bia; bem como o argentino perdido na rua sonolenta, não acha o caminho da festa; há os pássaros cantando no mato que tomou conta do cinema em ruínas; ou do inusitado banho de cachoeira com sangue, como um prenúncio de coisas ruins que estão por vir. Paradoxalmente a insegurança vai instalando-se e reflete lentamente naquele bairro de classe média alta, em franca decadência, a perda da propalada tranquilidade dos moradores. Foram anos áureos que ficaram para trás, quando inexistiam as grades nas janelas, portões encadeados e câmeras de vigilância, símbolos de uma brutal realidade atual. Até a natureza torna-se ameaçadora, como no banho de mar na madrugada em área infestada de tubarões loucos para atacarem. São metáforas de um Brasil inseguro e rodeado pela miséria e pela onda de violência.

Mas o cineasta retrata com sensibilidade e sem estardalhaço os contrastes pela visão social nordestina como uma realidade brasileira num drama preocupado com as anomalias e distanciamento entre as classes sociais e a insegurança rondando por todos os lados. É bem peculiar na reunião de condomínio, onde há moradores atônitos e outros fora da realidade e do contexto; ou ainda a busca de uma alternativa para despedir por justa causa o velho e descartável porteiro cansado da vida e do trabalho.

Não é um filme sobre a violência urbana repetida à exaustão em várias obras similares, mas Mendonça Filho vai além e se fixa numa rua aparentemente calma e sem problemas para refletir pela densidade que converge para fatos além do bairro. A segurança é contraditória para os moradores: para uns trará harmonia; para outros surge como uma ameaça à paz. Uma trama que avança com cautela e sensibilidade sensorial dos sonhos convulsivos que poderão ser realidade.

Um cineasta que fala de sua aldeia com magnífica precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi. Todos os sons são familiares para o diretor, que apresenta um singular domínio de cenas nos planos e contraplanos, quase impecáveis, com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade. Cada situação dos personagens torna-se autônoma na trama narrativa, embora direcione para a abordagem do coronelismo e seu domínio territorial no bairro, sem perder a poesia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este belo e badalado filme de cores bem brasileiras como uma obra maior no cenário nacional.