O cineasta finlandês Aki Kaurismäki ambienta sua trama na
cidade portuária Le Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, na
França, bem longe da glamourosa Paris com seus cafés, bistrôs e o romantismo da
Cidade Luz ou do litoral ensolarado de belas praias. O filme retrata a
solidariedade e a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente na
França, vindos como animais em contêineres e jogados em solo perigoso,
abordados de maneira magnífica no excelente O Porto, ganhador do Prêmio da
Crítica no Festival de Cannes de 2011.
O longa retrata o boêmio e escritor aposentado Marcel (André
Wilms) que engraxa sapatos e mora com a mulher Arletty (Kati Outimen), uma
estrangeira regularizada vinda da Escandinávia, que guarda suas economias numa
caixinha. O casal mora numa modesta casa e frequenta restaurantes baratos,
tendo na companhia o amigo vietnamita com seus documentos falsos comprados no
mercado paralelo, diante da burocracia e da xenofobia estampada inerentes para
os imigrantes em regularizarem suas vidas. Marcel abandonou a ambição literária
para residir naquela cidade portuária com dificuldades para os forasteiros que
não conseguem se estabelecer legalmente. Há uma frieza nas relações com a
polícia que parece estar sempre na caça daqueles evadidos de seus países e em
estado de desamparo na busca da liberdade de dias mais promissores, exceto a
parceria oculta do sensível comissário.
A vida do engraxate muda bruscamente com a chegada do garoto
africano Idrissa (Blondin Miguel), que tenta ir para a Inglaterra em busca da
mãe, após a morte do pai. Há uma semelhança incrível com o longa-metragem Bem-Vindo
(2009), de Philippe Lioret, focando a política das imigrações, através de um
garoto curdo refugiado da guerra do Iraque, na tentativa incessante de ver a
namorada na Inglaterra, tendo se estabelecido temporária e ilegalmente em
Calais, na França. Recebe ajuda do professor de natação que o treina
secretamente e logo mantém um estreito relacionamento de amizade, embora
confundido por vizinhos e pela própria polícia francesa de imigração, como um
"relacionamento especial”. Lioret tem um olhar de fidelidade com a
dolorosa saga dos imigrantes com todo o tipo de intolerância e preconceito, não
podendo sequer tomar um banho diariamente por serem ilegais, vivendo em
albergues de péssimas condições humanas, como se fossem prisioneiros da pior
espécie. Comem e dormem muito mal, sofrendo a ojeriza de uma casta que lhes
viram as costas, fruto da xenofobia racial.
Kaurismäki coloca a relação de Marcel com Arletty sendo invadida
pelo garoto africano, que acaba suprindo a falta da esposa gravemente enferma e
internada, em parceria com a cadelinha Laika, nos momentos difíceis da vida de
Marcel, restando a ternura de Idrissa pelas lentes do cineasta, que lança um
olhar de misericórdia e esperança, sendo mais otimista que Claire Denis no
instigante longa Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo do Grão
(2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Caché (2003),
de Michael Haneke; sem esquecer de O Visitante (2006), de Tom McCarthy, sobre a
situação dos imigrantes ilegais, também se questionava a política xenofóbica
aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças.
Os filmes que abordam o polêmico tema da imigração,
portanto, são vários, como elencados acima, mas em O Porto , Kaurismäki
sustenta o drama no escritor desiludido da raça humana, pois ele também é
constantemente enxotado de suas tarefas atuais de engraxar sapatos na frente de
estabelecimentos comerciais pelos seus responsáveis, embora seu trabalho seja
sério, honesto e humilde. O que lhe dá força moral também é o carinho de uma
mulher da vizinhança, que não dispensa a cooperação e o agasalho ao menino
fugitivo, sempre que solicitada.
O drama tem um ambiente carregado de certa forma, até
porque a cidade está na divisa com a Inglaterra, servindo de rota de passagem
por barqueiros que cobram valores escorchantes para o translado dos imigrantes
sem visto, logo se percebe a rede solidária clandestina para ajudar o africano,
numa alegoria da vida em risco e a falta de uma política de governo para
atender os refugiados da ex-colônias africanas da França, que buscam atravessar
o Mediterrâneo na esperança de viver com dignidade. Ou seja, ficar bem longe
dos campos de concentração espúrios mostrados, numa premissa otimista, mas sem
deixar de apontar e refletir sobre a ausência de vontade, neste manifesto crítico
de um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo, ainda
que tenha na mentira do seu personagem principal a forma ilícita para salvar a
pele do garoto, protegendo-o da sanha irascível de uma política de imigração
abominável que deve ser questionada à exaustão.