Civilização e Seus Demônios
O diretor coreano Bong Joon-ho já havia surpreendido com O Hospedeiro (2006), tratando seus monstros com seriedade numa dita civilização dos homens, tendo por cenário a beira do rio Han poluído ao extremo. Lá, uma família dona de uma barraca de comidas no parque é aterrorizada por um animal monstruoso que emerge do fundo do rio e leva a neta do patriarca. São abordadas as relações dos filhos e pais, sendo o mais velho um imaturo homem de 40 anos, a filha do meio é uma arqueira olímpica do time da Coreia do Sul e o caçula está desempregado. Mesmo sendo cuidada pelos tios e o avô, acontece a desgraça naquelas águas parecidas com um pântano de sujeira. Os monstros se confundem com os civilizados e os demônios são exorcizados no extraordinário longa que consagrou definitivamente Joon-ho.
Seu penúltimo filme é o episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), onde dividiu espaço com Michel Gondry e Leos Carax. Talvez um dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contado no cinema, onde um rapaz está enclausurado em sua própria casa há mais de 10 anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas. Conhece uma moça pela tele-entrega, num dia de terremoto que assola a cidade, que também ingressa no mundo claustrofóbico de distanciamento com o ser humano. A corrida louca do jovem pelas ruas de Tóquio completamente vazias se contrapõe com imagens coloridas e esquizofrênicas, ainda há tempo para um possível e enigmático relacionamento de uma paixão que por si só poderá romper com as amarras da doença contagiante das vidas solitárias e sem perspectivas numa cidade futurista e fria.
Joon-ho já demonstrara em seu primeiro filme aqui no Brasil, Memórias de um Assassino (2003), que o convencionalismo não faz parte de seu currículo, ao brincar com o público espectador, pois uma jovem brutalmente assassinada num lugar convence a polícia tratar-se de um serial killer, mas os fatos se repetem em outras localidades, deixando aturdidos os detetives, começa então um investigação minuciosa e interessante, demonstrando influência forte do mestre Alfred Hitchcock.
Agora, em Mother- A Busca pela Verdade, sua influência hitchcockiana aflora com mais intensidade e seu talento se espraia com qualidade invulgar, ao aproximar o realismo do fantástico e desqualificar o possível culpado, buscando no jogo de valores sua visão crítica. A cena inicial mostra esta mãe caminhando dentro de um campo de trigo e em seguida dança uma música, fazendo gestos tresloucados e enigmáticos, cena esta que terá a extensão no epílogo, porém agora o espectador já estará mais familiarizado com o cineasta e sua proposta, poderá então fazer suas observações e conclusões desta senhora de cabelos grisalhos que busca freneticamente provar a inocência do filho deficiente mental, mas chamado com prazer pela comunidade de retardado.
O instinto de defesa chega de maneira obsessiva e leva aquela mãe às raias da consciente loucura, buscando uma verdade irreal que está petrificada em sua mente e consciência, o processo civilizatório se brutaliza e os atos são todos convergidos para a inocência do rapaz, acusado de um crime bárbaro, logo após seguir aquela menina indefesa na saída de um bar noturno. Tudo é álibi, mesmo que isso recaia sobre possíveis inocentes com cara de culpados, como até mesmo o melhor amigo do filho preso. O catador de lixo é visto como algoz e paga caro por saber demais, ainda que um defensor da natureza com sua recliclagem, contrapondo com o processo de destruição já invocado no longa O Hospedeiro. A mãe, com aquele olho monstruoso, ao espiar o amigo no quarto se relacionando com uma garota, se revela como a extensão da continuidade do monstro do rio.
Os animais selvagens e irracionais de Joon-ho são bem identificados e estão entre aqueles que destroem e brutalizam o processo civilizatório da humanidade. Este diretor irrequieto, embora conduza sua filmografia pela violência não gratuita, quer sacudir e mostrar quem são os incivilizados e monstruosos de nosso planeta, assim como já o fizera em O Hospedeiro, como coloca de forma magistral toda sua angústia e a dor da solidão de uma metrópole desvairada em Tóquio. Difícil é ficar impassível com Joon-ho, pois ele tem a veia e o condão de perturbar seu espectador, criticando a preguiça da polícia e a inércia do advogado desleixado com olhos voltados para a luxúria neste magnífico Mother- A Busca pela Verdade.
A sociedade coreana serve de ponto de partida para sua contundência crítica, nada fica estático, tudo se move para a ilicitude, como os "bons velhinhos" que jogam golfe num belo campo com plácidas árvores que escondem suas maneiras desumanas, logo após o atropelamento com a fuga sem socorro daquele retardado, sem um mínimo de compaixão dos corretos cidadãos aristocráticos cansados de uma longa jornada de trabalho, ou quem sabe, de viver sem solidariedade. A reflexão é proposta e os monstros se multiplicam nos filmes de Joon-ho, à espera da conscientização oprimida pela repressão de valores que aguardam a absorção, como metáfora de uma civilização doente.