sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Sol do Meio Dia


















A Redenção dos Excluídos

O cinema brasileiro tem muito que se orgulhar dos seus grandes e experientes cineastas, bem como dos emergentes talentosos que estão surgindo de uma boa safra, como Eliane Caffé, por exemplo. Já nos mostrara seus atributos ficcionais bem relevantes, como no filme Kenoma (1998), que tem na trama um pequeno povoado que recebe a visita de um forasteiro que apaixona-se por uma moça daquele lugar no fim do mundo, habitado por trabalhadores rurais, pequenos comerciantes e garimpeiros; no segundo longa Narradores de Javé (2003), uma cidade é ameaçada de desaparecer com as águas de uma enorme usina, alterando e ameaçando a vida literalmente de seus moradores.

Nos dois dramas anteriores eram abordadas situações típicas dos desvalidos e ora excluídos da sociedade, mas agora em O Sol do Meia Dia, terceiro e mais recente longa-metragem de Caffé, numa espécie de continuação de Narradores de Javé, temos um roteiro bem urdido e voltado para os personagens que buscam uma nova chance, como uma redenção, após os fracassos pessoais que a vida aplicou-lhes, numa metáfora do título ao sol que ofusca e pode embaralhar a mente, como daquele presidiário egresso da cadeia.

A trama tem em Matuim (Chico Diaz), um barqueiro que está em dificuldades com seus entregadores e clientes escusos, inclusive sendo humilhado constantemente pelo uso de sua animada peruca, como símbolo da masculinidade daquele homem derrotado e contraditório. Ao encontrar circunstancialmente Artur (Luís Carlos Vasconcellos), um ex-carcerário que matou a esposa, tendo que viajar para Belém do Pará, para tentar encontrar a mãe, figura feminina que poderá lhe dar a direção de sua nova vida, como uma simbologia de esquecimento pelo ato brutal que praticou. Os dois homens descem pelo rio na Amazônia com suas curvas sinuosas e repletas de arapucas perigosas, como na cena do assalto ao velho barco, que funcionava como suas residências e vínculo de ligação, interrompendo uma jornada, mas dando início a outra, como a sequência da continuação da vida naquela comunidade, tal qual em Javé e Keoma, em seu longas anteriores.

A pobreza logo se estampa e a prostituição aflora avassaladoramente, com todas as nuances típicas daquelas espeluncas fedorentas e sem cores vivas, até o encontro com Ciara (Cláudia Assunção), na pele de uma mãe que tenta resgatar sua filha entregue à "vida fácil" e nas mãos daqueles brutamontes, mas justificando seu ato de fuga de casa, sem convencer, atribuindo aos maus tratos do avô (Ary Fontoura), que não passa de um velho decadente, mais preocupado com as perdas dos amigos e parentes, numa clara e inteligente reflexão sobre a morte.

O trio tem um envolvimento intrincado que vai ao encontro de revelações assustadoras, deixando as emoções se estabelecerem, ainda que os conflitos e as brigas de Mutuim e Artur sejam secundárias, mas necessárias para o triângulo amoroso, pois o que realmente interessa e acaba fisgando os espectadores é a construção forte dos personagens e o psicológico atuando nas confissões, especialmente daquela criatura que matou a mulher, num misto de arrependimento evidente e a purgação da alma, na busca de um futuro e o esquecimento de um passado com fantasmas a atormentá-lo. As revelações contundentes e chocantes na última cena, demonstram o grau de maturidade da cineasta, sua forma eficiente e segura de condução diretiva, num cenário deslumbrante de um rio calmo e com uma fotografia belíssima, contrastando com a calhordice daquelas casas de prostituição, como meio de sustento daquelas meninas estraçalhadas pelo destino.

O Sol do Meio Dia tem por proposta mexer com os brios, como uma reflexiva e perturbadora chama, deixando aqueles excluídos de uma sociedade se entrelaçarem seus destinos e buscarem uma forma eficaz de redenção, depois daquela viagem sem destino definido, sem um vínculo total, pois o roubo daquele núcleo familiar, numa metáfora do barco subtraído, funciona como um amargo regresso às raízes de forma madura pela definição de postura e arrependimento, para um mundo desejado nas entrelinhas. A cena de Ciara e Artur lembra o notável filme italiano de Michelangelo Antonioni, A Aventura (1960), sem o requinte da burguesia num iate por uma ilha vulcânica. Não há lugar para deslumbramentos ou reminiscências baratas, mas a dor e a sutileza da proposta, assim como as revelações ficam martelando nesta magnífica película brasileira de pessoas de carne, osso e sentimentos adormecidos como o interior de um vulcão.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Abutres

















Indústria da Indenização

Pablo Trapero é um diretor que aborda as situações cotidianas e sociais pouco exploradas pela mídia de uma maneira crua e fria, sem grandes alegorias e metáforas. Assim foi com o excelente longa-metragem Leonera (2008), seu melhor e mais profundo filme, discutindo sobre o sistema prisional argentino para uma detenta grávida e as consequências nefastas para os filhos recém-nascidos naquele lugar inóspito e imundo. Sem esquecer ainda que fizera antes outros belos longas como Nascido e Criado (2006) e Família Rodante (2004).

Agora desponta com esta película de denúncia Abutres (Carancho, na Argentina, é um animal que vive de restos de outros bichos), embora a trama tenha um viés pela inverossimilhança, trata da máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das mais de oito mil vítimas fatais por ano, aproveitando-se das brechas deixadas pelas leis reguladoras do trânsito naquele país. Abutres tem em seu personagem principal o advogado Sosa (Ricardo Darín), uma figura patética e inescrupulosa, mas boa pinta e hábil na conversa, já com sua habilitação cassada, monta com um outro colega na ativa, com auxílio de policiais corruptos e peritos que fraudam laudos, uma verdadeira indústria para receber dinheiro de seguros decorrentes de vítimas fatais ou inválidas de acidentes de carros, até forjando atropelamentos de conhecidos, tudo visando angariar cada vez mais indenizações das seguradoras. Não só tem o apoio da polícia corrompida, como acaba por trazer para seu lado uma jovem médica bonita, inexperiente, estressada e viciada em morfina, Luján (Martina Gusman- a esposa do diretor, também em elogiado trabalho em Leonera), com o intuito de locupletar-se com mais dinheiro sujo, pois buscado sem nenhuma legitimidade, abstendo-se da moral e dos princípios éticos norteadores da legalidade e do bom direito.

A película aborda a ética profissional, tanto a médica, como dos peritos, policiais, e especialmente dos bacharéis sem escrúpulos, também chamados pejorativamente de "advogado de porta de cadeia", que atuam tais como corvos na morte, obsessivos por lucros e ganhos fáceis, sem limites de qualquer pudor, perdendo a vergonha e perdendo o caráter inapelavelmente. Em situações análogas acontece também aqui no Brasil, em muitas capitais, com a indestrutível máfia das funerárias, quase sempre em conluio com profissionais da saúde que fazem as ligações diretas ou indiretamente, colocando os famigerados agentes funerários ou abutres carniceiros, na frente dos familiares das vítimas de trânsito, numa hora de dor e fragilidade, quando as emoções suplantam o equilíbrio e a racionalidade.

Trapero é um daqueles diretores que vai direto ao ponto, sem muitos rodeios, com um roteiro inadequado para ilações ou entrelinhas, afastando-se de quaisquer artifícios ou linguagem sugestiva por elipses. Peca, por vezes, em alavancar um drama e não se deter como um analista mais mordaz, como neste Abutres. Se o plano-sequência do hospital é eletrizante, deixando todos os espectadores embasbacados, assim como do acidente forjado, não se pode dizer da cena final, que mais parece de filmes e seriados americanos enlouquecidos pelo barulho e correria no trânsito.

Falta verossimilhança para uma abordagem eloquente, com o intuito de aplastar com contundência a proposta do roteiro. Embora o tema seja pouco explorado no cinema, existem muitos subsídios que dariam consistência para um filme mais sólido e de denúncia, como se propõe, mas fica emperrado no meio do caminho. O longa é bom e esclarecedor em vários tópicos, mas se deixa levar por uma fragilidade de condução no epílogo. Também há muitas cenas de pessoas acidentadas desnecessárias, que poderiam ter o recurso da elipse, para não massificar através de uma violência quase que gratuita.

O cineasta tem em sua filmografia filmes bem melhores, especialmente Leonera, mas sua proposta é válida, com poucas chances de arrebatar o Oscar, pois a concorrência é bem superior, mas os "velhinhos" da Academia quase sempre surpreendem, podendo até acontecer que Abutres, um longa bem interessante, mas longe do melhor cinema argentino, obtenha a estatueta máxima.