sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Um Homem Que Grita



Dor Silenciosa

O cinema da África está de parabéns com este excelente filme vindo da República do Chade Um Homem Que Grita, quarto longa-metragem do cineasta Mahamat-Saleh Haroun e ganhador do Prêmio do Júri de Cannes do último festival, que esteve na competição da 34a. Mostra de Cinema Internacional de São Paulo deste ano. Fizera antes seu primeiro longa Bye Bye Africa (1999), eleito o Melhor Filme do Festival de Veneza. Também dirigiu Abouna, Notre Pére (2002) e Durrat, Dry Season (2006), ganhando o Prêmio Especial do Júri de Veneza, todos inéditos no circuito comercial brasileiro.

O diretor foi feliz no seu roteiro enxuto e conta com elegância esta comovente história de um pai de 55 anos e seu filho de 20 anos, dentro uma conturbada guerra civil no país africano da República do Chade, onde muitos habitantes fogem desesperadamente para países vizinhos como a República do Congo e República dos Camarões. A cena inicial dá o mote e a diretriz que seguirá a película, numa metáfora esplendorosa, quando dentro da piscina do hotel de luxo da cidade de N´Djamena, fica evidente a disputa fratricida. De um lado o pai Adam (Youssouf Djaoro, em notável atuação) é um ex-campeão nacional de natação em conflito com seu filho Abdel (Diouc Koma) que busca espaço profissional e disputam a mesma vaga de salva-vidas daquele hotel comprado por investidores chineses. Adam simboliza um falso patriotismo com uma visão caolha do mundo, ao pensar que se perder a vaga para o filho seu mundo acaba, ou como ele mesmo afirma: "mudou o mundo, não eu".

Os problemas sociais se avolumam e o cozinheiro, melhor amigo de Adam, é despedido sem maiores explicações, ao ficar velho e doente, torna-se descartável. A trama parece conduzir para os problemas inerentes daqueles que estão na iminência de ingressar na terceira idade, como foi visto recentemente no bom filme argentino Dois Irmãos (2010), de Daniel Burman, que abordou e desenvolveu com muita clareza e sutileza o tema. Adam dá mostras de sua preocupação, ao perguntar ao filho de forma sintomática, se ele também o achava velho. O clima é tenso entre os dois e a mãe da garoto questiona e busca explicação para aquele silêncio sepulcral entre pai e filho na hora do jantar.

Mas o diretor redireciona seu roteiro com habilidade para os conflitos da guerra civil e os destroços que sobraram como uma herança maldita da luta fratricida já anunciada no prólogo. Sem tomar partido, mostra os rebeldes de um lado e as forças governamentais de outro, tendo ambas suas implicações políticas e os excessos inerentes de uma batalha entre irmãos, tema visto recentemente em outra produção africana White Material (2009), dirigido pela francesa Claire Denis, com Isabelle Huppert, que não chega a evoluir na profundidade aguardada, acaba por diluir-se em cenas de trucidamentos exagerados das guerrilhas, faltando uma direção mais firme e capaz, naufragando num final melancólico sem inspiração.

Um Homem que Grita vai avançando com extrema sutileza e dor, como da cena do aparecimento daquela jovem grávida de Abdel, faz com que o pai caia em profunda tristeza e o tardio arrependimento por entregar o próprio filho para o Exército do Chade, ao invés de contribuir financeiramente na campanha de arrecadação, não por ser um patriota convicto, porém levado pelo sentimento de perda de espaço na piscina, ao ser guindado para um humilde posto de porteiro do hotel. A felicidade momentânea vira uma drama familiar, com a tragicidade se anunciando como castigo pelo egoísmo e o ressentimento da traição se abatendo na alma que grita do pai. Os enfoques são muitos no longa de Haroun, deixando desfilar com magnífica profundidade, como nas cenas da busca do filho no acampamento, a peregrinação naquela motocicleta velha levando aqueles personagens com dignidade para a bancarrota, existindo antes a purificação no final e o perdão sendo implorado por aqueles olhos entristecidos diante daquelas profundas águas que correm no rio e descem lenta e silenciosamente, num epílogo de tarde angustiante que nunca será esquecido por Adler naquele cerimonial funesto.

Haroun sabe lidar com as emoções sem se deixar levar pela pieguice, deixando fluir a reflexão nos temas sugeridos como a tristeza pelo arrependimento; a ética paternal; o falso patriotismo; a traição e a disputa de espaço; abalados num relacionamento estremecido pela perda da grandeza e da dignidade, diante da iminência da terceira idade, resultado do medo da velhice. Há o pano de fundo da guerra civil sendo abordado com equilíbrio, levando para os questionamentos internos e externos.

Com temas e subtemas dignos, fazem deste longa um soberbo exemplar do cinema realizado na África, deixando como resultado um olhar terno e perturbador para os seres transgressores dos limites éticos e morais, que não medem consequências, mesmo que a dor consuma-os com força arrebatadora. Rodado em longos planos-sequência como instrumentos de narrativa, é pontuado pelo silêncio, com elipses no tom certo fazem deste longa preocupado com o ser humano e sua consciência, inserindo-se desde já, como uma das grandes surpresas do ano.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Suprema Felicidade



Decepção Suprema

Arnaldo Jabor é um diretor que encantou e revolucionou com Toda Nudez Será Castigada (1973), depois mostrou seu lado mais apurado como um crítico e observador dos relacionamentos humanos conturbados das mazelas causadas pelo desgaste impulsionado pelas entranhas dos seus personagens sofridos em Tudo Bem (1978) e Eu te Amo (1981), sendo que depois viria o estonteante Eu Sei Quer Vou Te Amar (1986), onde um casal faz um jogo de palavras memorável através de uma esplendorosa terapia filmada de forma arrasadora, dissecando e derrubando normas preconceituosas e tabus existentes entre duas pessoas que se amam.

Depois do ostracismo do diretor que buscou a reclusão numa rede de TV, realizando seus comentários sarcásticos e instigantes, avacalhando com a esquerda e se tornando um defensor nato e estereotipado da direita conservadora e ultrapassada, esperava-se um cineasta ainda mais maduro, que pudesse passar aos espectadores todo seu talento de sua verve política e conhecedor do cotidiano, atributos que lhe são inegáveis. A aguardada volta de Jabor em A Suprema Felicidade foi decepcionante, pois vem com muitas ideias na cabeça para contar várias histórias e ao mesmo tempo nenhuma original que pudesse ser a principal. A tentativa desencontrada de moldurar com fatos pitorescos num Rio de Janeiro dos anos 40, através do personagem de um menino sofrido como condutor da trama, deixa em muito a desejar. Longe do cineasta comprometido com as peculiaridades do amor e das relações familiares que mostrava no passado com extrema competência.

O início do longa com Paulinho (Jayme Matarazzo), um garoto de 8 anos, que observa o fim da II Guerra Mundial, na cama, ouvindo o tique-taque do relógio no silêncio do seu quarto, já nos remete ao filme Fanny e Alexander (1982), de Ingmar Bergman, corroborado depois em outras cenas como dos padres conflitados em sala de aula, nos papéis de Ary Fontoura e Jorge Loredo, num encontro que conduz solenemente para o barroco e talvez seja a única cena que se salva realmente do desastre total. Ao tentar se inspirar em alguns filmes de Federico Fellini, em especial Amarcord (1973), várias cenas mais parecem cópias mal-feitas e desajeitadas dos clichês satirizados pelo mestre italiano. O vento desconectado e as prostitutas surreais sendo esfaqueadas com o sangue jorrando vão, inexoravelmente, ao encontro do grotesco e inoperante resultado, numa sucessão de erros e gafes indignos de um cineasta da capacidade de Jabor que adere ao mau gosto e pela simploriedade.

A tentativa de buscar na forma teatral com uma música operística flutuando num passado e voltando para uma escola de samba ensaiando na avenida, deixa tudo encrencado e inconcluso, em elipses completamente destoantes e sem conexão, numa estética evasiva e perdida num emaranhado de atores e atrizes desfilando como se fossem chamados às pressas para darem seus recados e se retirarem estrategicamente. Nas cenas de amor de Paulinho com a namorada traidora e depois com a cantora Marilyn do Cabaré Eldorado (a belíssima Tammy Di Calafiori) fica tudo muito lacrimoso, beirando as novelinhas globais onde ainda é comentarista, ou lembrando em muito as telenovelas mexicanas com muita emoção, nada de razão, com pessoas se derretendo de tanto chorar.

Também beira ao ridículo as piadinhas infames contadas pelo vendedor de pipocas (João Miguel), onde a vulgaridade é indesculpável, diante das redundâncias e de uma grossura, que talvez pudessem ser contadas num ambiente de muito baixo nível, correndo o risco de não serem apreciadas com a suposta graça que tentou em vão no longa, com a assessoria do personagem mata-mosquitos e de um modorrento comprador de coisas antigas, jornais e livros velhos. Até o papagaio quase que conta uma de suas piadinhas clássicas e abomináveis. Outra cena risível é a que Paulinho sai correndo do prostíbulo sem pagar seu programa, junto com um amigo boboca e sonhador, tendo na intervenção do avô Noel (Marcos Nanini sempre um bom ator), resolvendo tudo na porrada e na macheza. A avó (Elke Maravilha) surge com diálogos soltos e desencontrados que não levam a nada, exceto que tenha sido uma ex-dançarina da Lapa.
Falta inspiração para o diretor que tem mais transpiração do que qualquer outra coisa. Há a cena do pai (Dan Stulbach) deixando a mãe (Mariana Lima) choramingando pelos cantos, para assistir a cantora num show no bordel, sendo seguido pelo filho que se apaixona pela mesma moça pobre e sofrida e filha de uma cafetina bêbada (Maria Luisa Mendonça) que é oprimida por um rufião, mas que também não tem consistência. As cenas não fluem naturalmente e se diluem, acomodando-se como num passe artificial.

Também fica solta a cena do avô dançando na rua, numa tentativa de rememorar os famosos bailes da Urca ou quando tocava trombone e filosava na boemia, mas inexiste o clímax para uma pequena dose de emoção. Ou seja, falta tudo, pois agora não há choro e nem vela. Como o próprio Hotel Glória aparece do nada. O filme se arrasta como uma eternidade para um final melancólico, onde se mescla carnaval de rua com com um romance conflitado, misturando com uma suposta ópera, tendo ainda um sermão religioso, bafejado com reminiscências de um vovô perdido no tempo.

A lamentar-se as obviedades que se desenvolvem e se aliam no transcorrer do longa, resultando uma verdadeira salada de fruta indigesta neste desastroso e decepcionante A Suprema Infelicidade de um dos grandes diretores do passado, que parece ter perdido toda sua lucidez e criatividade, deixando suas virtudes distantes de suas magníficas obras de outrora. O resultado final descamba mais para uma pornochanchada do que para as inspirações buscadas em Fellini e Bergman.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Caterpillar)















Caterpillar

O diretor Koji Wakamatsu é um experiente cineasta japonês que realizou este estonteante longa-metragem Caterpillar (lagarta) sobre os horrores da guerra e seu inventário macabro e horrendo, como a sobra mutilada de um ser humano que é recebido com condecorações de medalhas e levado ao topo da glória como herói "Deus da Guerra".

Wakamatsu foi produtor-executivo de direção de Nagisa Oshima no polêmico Império dos Sentidos (1976), sobre a paixão obsessiva de uma ex-prostituta pelo chefe de uma propriedade, onde ela é contratada. Um romance sem limites na busca do prazer, em que os desejos se confundem e o casal é envolvido numa atmosfera sensual e sem precedentes, com um final surpreendente e inusitado para aqueles anos setenta. O ato sexual incontido é novamente abordado como um subtema neste longa, mas não dissociado do contexto hipócrita e frio das relações que envolvem os protagonistas vitimizados pelo sistema.

O drama gira em torno da 2ª. Guerra Sino-Japonesa, de 1937 a 1945, quando o tenente Kurokawa (Keigo Kasuya) retorna para casa, recebendo todas as honrarias e condecorações do Japão pelo seu gesto bravo na luta contra a China. É reconhecido nacionalmente como um grande herói, embora tenha perdido suas pernas, braços, a fala, parte do lado direito da cabeça queimada e deformada, reduzido a uma miniatura humana de somente tronco com um pênis que quer se saciar constantemente, resultante de seu apetite sexual voraz.

A esposa Shigeko (Shinobu Terajima) é vista e aclamada como a grande mulher do tenente, sendo que as esperanças dos membros da família e da sociedade local recaem sobre seus ombros, para que honre o imperador japonês e o país, tornar-se um exemplo de dedicação de assumir seu papel, mesmo que a revolta, a angústia, a dor, a mágoa e todos seus desejos femininos, passem a ser ignorados literalmente, em nome de uma causa que não lhe foi consultada previamente. Nosso herói tem um passado que não é recomendável, pois na guerra estuprou chinesas indefesas em meio a incêndios em suas residências, espancava sua mulher antes de ir para o front. Agora é a vez de dar o troco com todo ódio e irresignação daquela que tem que lhe servir sexualmente, lavar e fazer sua higiene pessoal, dar comida e bebida compulsivamente, embora haja uma crise de racionamento decorrente da guerra.

A cena em que há o reflexo do rosto queimado no lago é triste e dolorida para o tenente, arrastando-se como um lagarto deformado e em tom animalesco e brutal, metáfora de uma guerra deflagrada e que deixou resíduos. Outra metáfora é o apetite sexual descomunal para com as intrincadas políticas de guerras que ceifaram centenas de milhares de pessoas. Ficaram impunes as bombas que o Japão foi agraciado pelos EUA, como em Nagasaki e Hiroshima, referências explícitas feitas pelo diretor, como uma observação e um recado direto para aqueles que ainda continuam a usar da força bélica mundial. Os choques de imagens não são gratuitos, muito pelo contrário, estão inseridos num clímax elevado de insatisfação e realizado com dureza e contundência, mas jamais para explorar figuras disformes. Não deixar as consequências de uma batalha inglória passar sem uma abordagem profunda é o principal eixo e objetivo deste veterano diretor sempre preocupado com as mazelas de seu país, num passado que não dever ser esquecido.

Caterpillar se insere e pode ser classificado como um longa bizarro, mas os seus efeitos nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as cenas que desfilam tenham o caráter da dor e da demagogia dos seus governantes estampados naquela criatura em forma de miniatura que sobrou da guerra. Fruto é claro dos poderes definidos dentro dos gabinetes, como se vê nas homenagens emblemáticas em praça pública. Um filme digno e eloquente pela sua grandeza.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Os Amores Imaginários)



Os Amores Imaginários

Xavier Dolan é um diretor canadense de apenas 21 nos, que conquistou seu público com o filme de estreia Eu Matei a Minha Mãe (2009), onde um rapaz de 17 anos não ama sua mãe, tem gosto kitsch, usa roupas bregas e pequenos detalhes como a forma que ela come, ele a contempla com desprezo. Os mecanismos de manipulação e a culpabilização empregados por ela também não lhe passam desapercebidos, tem um ódio fora do seu controle. Confuso, vaga por uma adolescência marginal e típica, repleta de descobertas artísticas, experiências ilícitas, amizades e se assume como homossexual.

Mas neste segundo longa Os Amores Imaginários, seus propósitos desvirtuaram completamente de sua promissora e festejada estreia. Agora busca fazer um filme mais leve e engajado na causa gay. Ou seja, uma pequena apologia para tentar manter um relacionamento num típico ménage à trois, colocando no centro da proposta de um "homo", um "bi" e um "hétero", o que vai levando ató o final da trama com o gay Francis (o próprio Xavier Dolan) e a hétero Marie (a bela e boa atriz Monia Chokri), numa amizade quase que inseparável, acabam conhecendo num almoço o esfuziante Nicholas (Niels Schneider), gerando um inevitável triângulo amoroso.

Do relacionamento resultam fantasias obsessivas decorrentes dos encontros problemáticos e repletos de picuinhas e mal-entendidos, afundando-se em procuras e devaneios sexuais, que obrigam por vezes se afastarem e deixarem de lado as amizades. O objeto do desejo do trio custa a se definir e nem eles sabem na verdade definir o que um quer do outro. A força do desejo é mais forte do que manter os laços de união da amizade e em determinado momento se rompem com o desenrolar desta frágil comédia dramática engajada nos movimentos GLS, LGBT e tantos outros que se proliferam e se difundem como em sexo alternativo e livres da amarras sociais.

A competição por Nicholas é o centro e o estopim da disputa, até que o rapaz toma uma posição e defina que também é apenas um garoto heterossexual, porém na cena final, com o aparecimento do personagem encarnado por Louis Garrel, numa piscadinha clássica de olho direito, demonstra a continuidade num próximo filme na busca pelo sexo a três não parou neste fraco longa de Dolan. O filme não tem profundidade alguma e nem se propõe a debater os problemas do homossexualismo, mas visa unicamente o entretenimento e a diversão pelo cineasta prodígio, assumidamente defensor da causa gay, mas que nesta película se afasta da reflexão e deixa os estereótipos se emaranharem e invadir a trama, sem nenhum controle de direção, tentando dar leveza com umas piadinhas bobas e sem nenhuma graça.

Entretanto, demonstra ser um estudioso do cinema ao fazer várias citações, como do filme Bonequinha de Luxo (1961), de Blake Edwards, com Audrey Hepburn no papel que leva o título, traz à baila o jogo sensual num filme pretensamente moderninho, com referências musicais, cinematográficas e literárias, inseridas no filme como elementos destinados a compor o mundo que o diretor pretende retratar. Apesar de tudo o filme não satisfaz e deixa a desejar para uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida com uma análise e crítica mais aprofundada. Fica para o próximo longa, quem sabe, mais maduro e com objetivos definidos razoavelmente.

Mostra de Cinema São Paulo (Dormir ao Sol)



















Dormir ao Sol

A Argentina já produziu filmes bem melhores do que este abaixo do razoável Dormir ao Sol , sob a direção pífia de Alejandro Chomski que se perdeu completamente numa trama que tinha tudo para dar certo, porém diante da salada de fruta que o cineasta fez, acabou por liquidar com seus propósitos e pretensões maiores que pudesse almejar. Antes dirigira Hoje e Amanhã (2003) que passou discretamente pela 27ª. Mostra.

Seu drama está centrado na vida do relojoeiro Lucio Bordenava (Luis Machin) nos anos 50, no Parque Chas, um tranquilo bairro de Buenos Aires, onde as ruas não têm esquinas e são em forma de círculos como labirintos. Sua mulher Diana (Esther Goris) é internada subitamente numa clínica psiquiátrica meio esquisita, pois se dedica a curar pessoas ditas especiais. Foi inspirado no livro do portenho Adolfo Bioy Casares.

A cunhada de Bordenave se aproveita que a irmã está hospitalizada, passando a seduzi-lo constantemente e até a provocá-lo quanto sua masculinidade e a causa que teria levado Diana até aquele instituto de saúde; as entrevistas com o Dr. Samaniego (Carlos Belloso) são preocupantes e as visitas à sua esposa são proibidas sem maiores explicações. O inverossímil começa a se clarear aos poucos, quando um cachorro chamado "Diana" surge repentinamente na trama, causando sérias desconfianças de tráfico de alma de humanos para caninos com experiências naquela casa dita de cura e preocupada com a saúde, funcionando como um laboratório futurístico de transposição de almas e pensamentos para os ingênuos cachorrinhos e as inadvertidas pessoas que a procuram.

O cinema já deu grandes filmes sobre o tema tratamento psiquiátrico forçado, como a obra-prima O Estranho no Ninho (1975) de Milos Forman, com a atuação impagável de Jack Nicholson, numa aula sobre como fugir do trabalho na prisão fingindo ser louco, sendo enviado a um sanatório, onde deve lidar com uma realidade triste e dura, além de ter que encarar a enfermeira que dificulta as coisas para ele. Também em O Expresso da Meia-Noite (1978), de Alan Parker, quando um jovem estudante americano, ao visitar a Turquia, é detido, com sua vida se transformando em um pesadelo a partir de então, é brutalmente espancado e jogado em uma imunda prisão e depois vai para um manicômio. Mas o brasileiro O Bicho de Sete Cabeças (2001), de Laís Bodansky, talvez seja o melhor referencial para hospitais de pessoas jogadas em seu interior como se fossem loucas, embora tivessem apenas algumas pequenas perturbações psicológicas.

Dormir ao Sol não é uma coisa nem outra. Nem se aprofunda na análise dos hospícios e seus métodos ultrapassados, nem faz uma reflexão sobre as pessoas que deveriam ou não realizar algum tipo de tratamento. É um filme oportunista e medíocre, pelos seus propósitos e resultados insatisfatórios, com um roteiro frágil, embora tivesse um elenco razoável, bem que poderia ter obtido algo bem melhor. Chomski não é um cineasta de ponta no vizinho país, mas já dirigiu nove curtas e médias e este é o seu quarto longa, portanto, se nada mostrou até agora, seu futuro não é nada promissor, pois esta sua última película ficou distante do que se espera para um bom filme, diante de suas pretensões sem maiores voos ou uma obra marcante. É para se esquecer este trabalho, totalmente descartável.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas)



Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas

Apichatpong Weerasethakul, de codinome "Joe", para facilitar a vida dos ocidentais, é o diretor deste bizarro longa-metragem que venceu o Festival de Cannes de 2010, levando para a Tailândia o Palma de Ouro, prêmio máximo da categoria, deixando para trás filmes bem melhores como Minha Felicidade, de Sergei Loznitsa; Tournée, de Mathieu Amalric; La Princesse de Montpensier, de Bertrand Tavernier; Outrage, de Takeshi Kitano; Fair Game, de Doug Liman; La Nostra Vita, de Daniele Luchetti; Hors la Loi, de Rachid Bouchareb e O Sol Enganador 2 – Exodus, de Nikita Mikhalkov.

Apenas para citar a quantidade e a não menos qualidade para se comparar com este horrendo filme tailandês, desprovido de mínima qualidade estética e estrutural, num emaranhado de personagens perdidos na selva fugindo do demônio travestido num boi com suas aspas ponteagudas na cena inicial; ou ainda do fruto do amor que podia ter nascido daquela kafkaniana relação sexual da princesa com o peixe bagre, nas translúcidas águas que caiam da vertente, rompendo a inverossimilhança e o absurdo, mesmo com toda licença poética de expressão.

A trama é simplória, diante da morte quase que iminente de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, este escolhe passar seus últimos dias no meio da floresta, amparado pela cunhada e por um sobrinho que faz seus curativos e adequa os aparelhos no seu corpo para ajudá-lo a vencer a insuficiência renal que o atormenta e o deixa cada vez mais agonizante.

O diretor "Joe" não se dá por satisfeito e faz surgir inesperadamente num jantar de tio Boonmee, num clima propício para o incesto indireto com a cunhada prestativa, surge a esposa morta há 19 anos e logo reaparece o filho desaparecido também por um bom tempo, mas metamorfoseado num macaco com olhos vermelhos, talvez de tanto chorar de arrependimento. Pronto, a titular ora morta voltou e assumiu seu posto, seriamente ameaçado pela irmã tinhosa e louquinha para dar o bote, embora na cena final, junto com a filhinha ambiciosa contam e fazem o inventário do que restou para elas.

Outra cena solta no roteiro e feita bem melhor no filme Alice no País das Maravilhas (2010), de Tim Burton, foi a visita na caverna misteriosa e o "belo" achado de alguns peixinhos num dos cantos escuros, mas iluminados por algumas luzinhas coloridas da parte superior, restabelecendo a ordem e a visão de uma suposta primeira vida, neste lugar feérico que seria a origem de tudo.

O encontro do jovem budista com a família e as cenas de longas reflexões e observações de filmes na TV conduzem para um abstrato. O banho de purificação da alma no chuveiro desperta curiosidade nos espectadores, pois poderia acontecer algo inusitado. Ainda bem que não saltou daquelas águas que desciam pelo cano nenhum peixe do sexo feminino e seduzisse o neófito monge, das idiotices bizarras da cabeça de "Joe", para alívio e a espera do aguardado final do longa.

Não dá para comparar esta película com filmes como O Estranho Caso de Angélica (2010), do veterano e genial Manoel de Oliveira, com seu estilo formal e clássico de fazer cinema da melhor qualidade para um público que saboreia a essência da sétima arte. Longe ficou do magnífico filme Independência (2009), oriundo das Filipinas, de impecável direção de Raya Martin, que também é o autor do roteiro, de apenas 26 anos de idade, com um tema similar arrasou na Mostra de 2009. Mas a maior heresia é comparar, como alguns críticos afoitos fizeram, com o mestre David Lynch. Sem comparação e sem similitude, seria o mesmo que comparar vinho com vinagre.

Tio Boonmee... não tem nada de transcendental ou espiritual como possa parecer. É uma aberração cinematográfica que encontra similar em muitas obras disformes, ocas e caóticas como na atual Bienal de São Paulo. Mas, enfim, tem gosto para tudo, para o absurdo e fraudulento filme como este que veio embalado em papel celofane da premiação máxima em Cannes.

A 34ª. Mostra de Cinema de São Paulo já tem sua maior decepção e candidato certo ao Troféu Frambroesa, se houvesse é claro, tanto pelo engodo como pela falsa arte travestida de filme cabeça e perturbador, nada mais é que um substrato de uma farsa fantasmagórica, que tem até uma cena do rapaz-macaco posando para fotografia com alguns soldados, como não poderia faltar a demagogia na frase do tio Boonmee, se era castigo a doença adquirida, por ter matado muitos comunistas.

Mostra de Cinema São Paulo (Minha Felicidade)



Minha Felicidade

Vem da Bielorrússia um dos melhores filmes da 34ª. Mostra de São Paulo, o soberbo Minha Felicidade, tendo na direção um estreante em longa-metragem, o promissor Sergei Loznitsa, que tem em sua bagagem dois documentários, sendo Blokade (2005) e Revue (2008), onde aparecem imagens de documentos históricos dos arquivos soviéticos, em compilações raras e apreciáveis.

A trama tem como ponto de partida o caminhoneiro Georgy (Victor Nemets) que encontra o trânsito congestionado devido a um acidente na estrada, logo após ter uma primeira experiência nada agradável com dois patrulheiros numa blitz, que insinuavam extorqui-lo, mas estavam naquele momento mais preocupados numa mulher com os documentos de seu carro irregular, com prenúncio para uma orgia no próprio posto, deixando-o ir embora com seu caminhãozinho modesto.

Na estrada impraticável para o fluxo do trânsito conhece o outro lado de uma vida que não apenas existe e é deplorável, ao deparar-se com a prostituição de uma adolescente agressiva que inventa uma idade acima da realidade de uma garotinha que é, visando um programa de estrada, ensina-lhe um caminho perigoso pelo pântano numa noite escura e extremamente terrível para dirigir naquela natureza selvagem da área rural russa, tal qual a vida que tem suas saídas bloqueadas e pantanosas, num metáfora para o homem que busca alternativas de vida e acaba por se embretar num emaranhado de complicações de seres excluídos da sociedade de um pós-guerra de dificuldades e um atoleiro como só poderia ser desvendado, caso o mundo tivesse uma visão mais abrangente e menos belicista.

Na busca pela volta à civilização, as histórias vão desfilando com requintes dolorosos e amargurados, como do velhinho vagando nas estradas como um dos tantos zumbis que percorrem nela, trazendo suas mágoas inerentes de um veterano de guerra enlouquecido pelo terror e violência deixados para trás, mas que faz questão de lembrar e contar como um desabafo e não um ensinamento. Já a cigana misteriosa que entra e sai de cena como se fosse uma criatura sem alma e sem vida é a típica caracterização individual daquela que só tem como meta a sobrevivência, diante daqueles homens horrendos e abrutalhados que passam pelo seu caminho. Na cena da execução do russo simpatizante pela causa alemã é comovente pelo lado do filho que tudo presencia e fica à mercê de seu futuro, como também é enojante pela falta de escrúpulos daqueles dois integrantes de um exército já em decomposição que vagueia pelos campos como moribundos, perdendo a dignidade e o senso humanitário, demonstram um total embrutecimento com a perda da lucidez como se verá nas cenas posteriores.

A viagem de Georgy é a alegoria perversa do instinto do homem civilizado e transformado naquele ser selvagem e de uma força bruta e delirante, em que os fantasmas da guerra sobrevoam e pairam nas mentes deturpadas e sem um destino como objetivo de um recomeço, longe do equilíbrio e distante ainda mais do processo civilizatório. Sobra a selvageria e a corrupção dos policiais no epílogo, relembrando como se fosse uma fotografia o início, mas agora com personagens diferentes,menos um, restando a explosão contida à flor da pele para ser detonada, como um vulcão adormecido à espera da melhor oportunidade.

Minha Felicidade é a ironia de seres desvalidos e inutilizados de um final de guerra sem vencedores e com muitos perdedores, remanescentes de um sistema, onde a prostituição é o meio de trabalho para crianças e a corrupção impera na força policial, tal qual Tropa de Elite 2 (2010) de José Padilha. Loznitsa filma os horrores das profundezas humanas, com um rigorismo construtivo invejável, numa estética formal, não deixando de ser um longa intuitivo e inspirado na melhor e mais madura forma de fazer cinema, sem penduricalhos, num roteiro enxuto e bem acabado, tornam esta obra como uma das melhores vista até agora nesta Mostra.

Uma bela reflexão sobre os horrores da guerra e a perda de seus valores e a transformação do ser animal homem numa besta, bem como a derrocada do comunismo e o que sobrou como lembrança de um triste passado, fazem deste drama de estrada que percorre o interior humano, uma viagem sensorial e magistral pelas profundezas e sensibilidade aguçada das pessoas para com o fim da impunidade e a busca de parâmetros e compromissos com a dignidade.