segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Minha Felicidade)



Minha Felicidade

Vem da Bielorrússia um dos melhores filmes da 34ª. Mostra de São Paulo, o soberbo Minha Felicidade, tendo na direção um estreante em longa-metragem, o promissor Sergei Loznitsa, que tem em sua bagagem dois documentários, sendo Blokade (2005) e Revue (2008), onde aparecem imagens de documentos históricos dos arquivos soviéticos, em compilações raras e apreciáveis.

A trama tem como ponto de partida o caminhoneiro Georgy (Victor Nemets) que encontra o trânsito congestionado devido a um acidente na estrada, logo após ter uma primeira experiência nada agradável com dois patrulheiros numa blitz, que insinuavam extorqui-lo, mas estavam naquele momento mais preocupados numa mulher com os documentos de seu carro irregular, com prenúncio para uma orgia no próprio posto, deixando-o ir embora com seu caminhãozinho modesto.

Na estrada impraticável para o fluxo do trânsito conhece o outro lado de uma vida que não apenas existe e é deplorável, ao deparar-se com a prostituição de uma adolescente agressiva que inventa uma idade acima da realidade de uma garotinha que é, visando um programa de estrada, ensina-lhe um caminho perigoso pelo pântano numa noite escura e extremamente terrível para dirigir naquela natureza selvagem da área rural russa, tal qual a vida que tem suas saídas bloqueadas e pantanosas, num metáfora para o homem que busca alternativas de vida e acaba por se embretar num emaranhado de complicações de seres excluídos da sociedade de um pós-guerra de dificuldades e um atoleiro como só poderia ser desvendado, caso o mundo tivesse uma visão mais abrangente e menos belicista.

Na busca pela volta à civilização, as histórias vão desfilando com requintes dolorosos e amargurados, como do velhinho vagando nas estradas como um dos tantos zumbis que percorrem nela, trazendo suas mágoas inerentes de um veterano de guerra enlouquecido pelo terror e violência deixados para trás, mas que faz questão de lembrar e contar como um desabafo e não um ensinamento. Já a cigana misteriosa que entra e sai de cena como se fosse uma criatura sem alma e sem vida é a típica caracterização individual daquela que só tem como meta a sobrevivência, diante daqueles homens horrendos e abrutalhados que passam pelo seu caminho. Na cena da execução do russo simpatizante pela causa alemã é comovente pelo lado do filho que tudo presencia e fica à mercê de seu futuro, como também é enojante pela falta de escrúpulos daqueles dois integrantes de um exército já em decomposição que vagueia pelos campos como moribundos, perdendo a dignidade e o senso humanitário, demonstram um total embrutecimento com a perda da lucidez como se verá nas cenas posteriores.

A viagem de Georgy é a alegoria perversa do instinto do homem civilizado e transformado naquele ser selvagem e de uma força bruta e delirante, em que os fantasmas da guerra sobrevoam e pairam nas mentes deturpadas e sem um destino como objetivo de um recomeço, longe do equilíbrio e distante ainda mais do processo civilizatório. Sobra a selvageria e a corrupção dos policiais no epílogo, relembrando como se fosse uma fotografia o início, mas agora com personagens diferentes,menos um, restando a explosão contida à flor da pele para ser detonada, como um vulcão adormecido à espera da melhor oportunidade.

Minha Felicidade é a ironia de seres desvalidos e inutilizados de um final de guerra sem vencedores e com muitos perdedores, remanescentes de um sistema, onde a prostituição é o meio de trabalho para crianças e a corrupção impera na força policial, tal qual Tropa de Elite 2 (2010) de José Padilha. Loznitsa filma os horrores das profundezas humanas, com um rigorismo construtivo invejável, numa estética formal, não deixando de ser um longa intuitivo e inspirado na melhor e mais madura forma de fazer cinema, sem penduricalhos, num roteiro enxuto e bem acabado, tornam esta obra como uma das melhores vista até agora nesta Mostra.

Uma bela reflexão sobre os horrores da guerra e a perda de seus valores e a transformação do ser animal homem numa besta, bem como a derrocada do comunismo e o que sobrou como lembrança de um triste passado, fazem deste drama de estrada que percorre o interior humano, uma viagem sensorial e magistral pelas profundezas e sensibilidade aguçada das pessoas para com o fim da impunidade e a busca de parâmetros e compromissos com a dignidade.

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