domingo, 31 de outubro de 2010
Mostra de Cinema São Paulo (O Estranho Caso de Angélica)
O Estranho Caso de Angélica
Manoel de Oliveira parece um garoto de cabeça arejada de 102 anos, mas um veterano na sabedoria, experiência e galhardia, no seu velho estilo formal e clássico de fazer cinema da melhor qualidade para um público ávido da essência da sétima arte, cada vez mais rara e distante, diante das mediocridades que se acumulam e brotam volumosamente pelas salas nas sessões teoricamente vanguarda ou classicismos superados.
O velho mestre português está inspiradíssimo novamente e sua lucidez é abundante e não para de transbordar, tornando-o imortal e interminável graças a Deus e para o bem dos cinéfilos que adoram ver uma obra deste tamanho como O Estranho Caso de Angélica desfilar seus personagens na tela escura dos cinemas. Este seu longa-metragem foi censurado pelo governo de Salazar entre 1949 e 1952, logo após a 2a. Guerra Mundial, pois pretendia trazer à baila as consequências do Nazismo, mas teve seu projeto torpedeado por um regime autoritário e ditatorial, mas agora 6 anos depois, retoma e atualiza este memorável filme de autor, que tem no papel de protagonista principal o fotógrafo Isaac (Ricardo Trêpa- seu neto, que já atuou em outros longas, entre eles o ótimo Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em atuação irreparável), também está irrepreensível como um jovem alucinado.
O jovem fotógrafo é chamado para realizar uma sessão de fotografias pela mãe de Angélica, tendo em vista que a moça morre poucos dias depois de seu casamento. Ao focar a morta esta aparece esboçando um leve sorriso em uma das fotos, deixando-o atormentado e obsessivo por aquela imagem absurda e inverossímil. Tem alucinações pela noite e depois já durante o dia, deixando em pânico a dona da pensão e seus convidados e amigos, todos muito peocupados e percebendo que o rapaz está em surto e demonstrando uma atitude estranha.
Isaac perde o equilíbrio e sua mentalização psicótica é para o cadáver daquela mulher de pouca idade toda de branco sendo velada uma posição atípica, que esboça um sorriso numa das fotos, levando-o a delírios intermináveis, voos ancestrais e viagens alucinadas por um universo imaginário e depressivo quando volta a realidade. Perfeita a metáfora da morte protagonizada pelo gato seduzindo o pássaro na gaiola, tal qual Angélica para com Isaac, numa premonição magnífica de uma cinematografia só encontrada entre os gênios como Manoel de Oliveira. Mas as cenas se sucedem e a música cantada em forma de fado pelo comandante ou capataz daqueles lavradores num trabalho subalterno e arcaico, mas determinados em aplainar as terras dos vinhedos, com as foices no alto como para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias, emolduram o painel de tantas alegorias notáveis desta película.
Ao tentar buscar soluções para os problemas que rodeiam a crise financeira, os amantes sobrevoam a cidade como fantasmas perdidos no universo, tentando se livrar das amarras e das prisões que os cercam, tal qual o pássaro pintassilgo na gaiola e a morta Angélica na sepultura, surge a frase da liberdade citada pelo filósofo Ortega y Gasset "O homem é sua circunstância". Oliveira ironiza a sociedade burguesa de Portugal com sua maestria formal como se fosse uma solenidade de um teatro de mentiras e prisões; ou pelo sorriso da morte que espreita e arrebata a vitalidade daquele fotógrafo enlouquecido por um lugar estranho e bonito ao mesmo tempo, com um cenário de um rio e um casario com uma minúscula igreja ao fundo. Aquele canto melódico e triste de uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva.
Um filme instigante e perturbador pela sua complexidade e de um tema aparentemente simples, desenvolve com soberba lucidez um estonteante painel de metáforas e alegorias, só encontradas numa autêntica obra-prima, escalando-se como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de melhor filme desta 34ª. Mostra de São Paulo.
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