domingo, 31 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (O Estranho Caso de Angélica)














O Estranho Caso de Angélica

Manoel de Oliveira parece um garoto de cabeça arejada de 102 anos, mas um veterano na sabedoria, experiência e galhardia, no seu velho estilo formal e clássico de fazer cinema da melhor qualidade para um público ávido da essência da sétima arte, cada vez mais rara e distante, diante das mediocridades que se acumulam e brotam volumosamente pelas salas nas sessões teoricamente vanguarda ou classicismos superados.

O velho mestre português está inspiradíssimo novamente e sua lucidez é abundante e não para de transbordar, tornando-o imortal e interminável graças a Deus e para o bem dos cinéfilos que adoram ver uma obra deste tamanho como O Estranho Caso de Angélica desfilar seus personagens na tela escura dos cinemas. Este seu longa-metragem foi censurado pelo governo de Salazar entre 1949 e 1952, logo após a 2a. Guerra Mundial, pois pretendia trazer à baila as consequências do Nazismo, mas teve seu projeto torpedeado por um regime autoritário e ditatorial, mas agora 6 anos depois, retoma e atualiza este memorável filme de autor, que tem no papel de protagonista principal o fotógrafo Isaac (Ricardo Trêpa- seu neto, que já atuou em outros longas, entre eles o ótimo Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em atuação irreparável), também está irrepreensível como um jovem alucinado.

O jovem fotógrafo é chamado para realizar uma sessão de fotografias pela mãe de Angélica, tendo em vista que a moça morre poucos dias depois de seu casamento. Ao focar a morta esta aparece esboçando um leve sorriso em uma das fotos, deixando-o atormentado e obsessivo por aquela imagem absurda e inverossímil. Tem alucinações pela noite e depois já durante o dia, deixando em pânico a dona da pensão e seus convidados e amigos, todos muito peocupados e percebendo que o rapaz está em surto e demonstrando uma atitude estranha.

Isaac perde o equilíbrio e sua mentalização psicótica é para o cadáver daquela mulher de pouca idade toda de branco sendo velada uma posição atípica, que esboça um sorriso numa das fotos, levando-o a delírios intermináveis, voos ancestrais e viagens alucinadas por um universo imaginário e depressivo quando volta a realidade. Perfeita a metáfora da morte protagonizada pelo gato seduzindo o pássaro na gaiola, tal qual Angélica para com Isaac, numa premonição magnífica de uma cinematografia só encontrada entre os gênios como Manoel de Oliveira. Mas as cenas se sucedem e a música cantada em forma de fado pelo comandante ou capataz daqueles lavradores num trabalho subalterno e arcaico, mas determinados em aplainar as terras dos vinhedos, com as foices no alto como para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias, emolduram o painel de tantas alegorias notáveis desta película.

Ao tentar buscar soluções para os problemas que rodeiam a crise financeira, os amantes sobrevoam a cidade como fantasmas perdidos no universo, tentando se livrar das amarras e das prisões que os cercam, tal qual o pássaro pintassilgo na gaiola e a morta Angélica na sepultura, surge a frase da liberdade citada pelo filósofo Ortega y Gasset "O homem é sua circunstância". Oliveira ironiza a sociedade burguesa de Portugal com sua maestria formal como se fosse uma solenidade de um teatro de mentiras e prisões; ou pelo sorriso da morte que espreita e arrebata a vitalidade daquele fotógrafo enlouquecido por um lugar estranho e bonito ao mesmo tempo, com um cenário de um rio e um casario com uma minúscula igreja ao fundo. Aquele canto melódico e triste de uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva.

Um filme instigante e perturbador pela sua complexidade e de um tema aparentemente simples, desenvolve com soberba lucidez um estonteante painel de metáforas e alegorias, só encontradas numa autêntica obra-prima, escalando-se como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de melhor filme desta 34ª. Mostra de São Paulo.

Mostra de Cinema São Paulo (O Caçador)















O Caçador

Rafi Pitts é um diretor iraniano que mora desde o anos 90 em Paris, foi assistente de direção de Leos Carax no filme francês Os Amantes da Pont-Neuf (1991), com estupenda atuação de Juliette Binoche, dirigiu As Cinco Estações (1997) e o inédito It´s Winter (2006).

Agora traz para a 34a. Mostra de São Paulo, seu longa-metragem O Caçador, um projeto mais arrojado, tendo escrito o roteiro e também atuado como o ator principal do longa no papel-título, no personagem Ali. A trama gira em torno de um recém-egresso da penitenciária, que busca emprego e consegue uma vaga como vigilante numa fábrica no turno da noite. Seu retorno à sociedade está repleto de expectativas diante das próximas eleições que são promissoras e alardeiam mudanças radicais no governo, tenta passar boa parte de seu tempo livre durante o dia com sua bela esposa e sua adorada filha de 6 anos.

Ali tem como passatempo se embrenhar na floresta e caçar para aliviar as tensões do trabalho e o estresse da vida cotidiana e monótona, ausenta-se de sua casa urbana, com seu carro velho e parceiro de todas as horas, para buscar a paz entre as árvores e a caça como entretenimento e refúgio de dias passados atrás das grades. A tragédia lhe aguarda mais adiante, quando sua mulher Sara (Mitra Hajjar) é morta aparentemente de maneira acidental, num tiroteio da polícia com simpatizantes de uma manifestação de rua contra o vigente regime iraniano déspota e impositivo. A filha do casal desaparece literalmente e a procura pela garotinha torna-se sua missão diária e frequente, sem descanso beirando à obsessão.

Ali tenta encontrar sua filha numa frenética busca pelas ruas e arredores, depois de tomar um verdadeiro "chá de banco" numa delegacia distrital, ser hostilizado por policiais, resolve fazer sua investigação particular e de sucesso remoto, tomando rumos trágicos, com o fuzilamento daqueles que ele entende serem os culpados pela morte da esposa e o desaparecimento da filha. O longa peca do meio para o final, quando o roteiro troca os papéis na clássica inversão de caçador para caça. A monotonia toma conta do filme e a mesmice se torna completa, deixando traços de insatisfação nos espectadores e a perda completa do controle do filme, que desce ladeira abaixo nos minutos finais.

Rafi Pitts erra a mão e torna este longa, que tinha tudo para ser um bom filme, em apenas uma realização razoável diante de seus enormes defeitos estruturais e frágeis, embora tivesse uma proposta abrangente de um ser atormentado na busca de seus familiares, acreditando nas mudanças do governo e se decepcionado, perdendo o sentido e o rumo da vida. Porém, os resultados estéticos e reflexivos ficaram longe do desejado, reduzindo um bom projeto para uma obra menor e precária.

sábado, 30 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Fora da Lei)




Fora da Lei

Rachid Bouchareb roteiriza e dirige este magnífico longa-metragem Fora da Lei, em que mais uma vez se debruça sobre os problemas enfrentados pelos descendentes da Argélia para conquistarem sua independência da França, acontecendo somente em 1962, depois de um banho de sangue, onde morreram milhares de inocentes, tanto argelinos como franceses. Este filme provocou polêmica antes mesmo de sua exibição no Festival de Cannes, houve um grande esquema de segurança para a sessão destinada aos jornalistas, com revistas de bolsas e proibição de entrar com garrafas de água. Depois de assistido o filme, a impressão é a de que não era para tanto.

Fora da Lei abre feridas e toca em questões cruciais como a luta pela independência da Argélia dentro da França e a existência de guerrilhas francesas estimuladas por suas autoridades, como a "mão vermelha", braço do serviço secreto autorizado a assassinar líderes argelinos, mas aborda de maneira profunda a luta sanguinária e violenta pela revolução, promovida pela organização FLN e refutada com não menos violência pela MCA.

O diretor enfoca a trama com vigor pelos três irmãos expulsos de suas terras junto com os pais: Said (Jamel Debbouze) é o responsável pela mudança da mãe para a França e sonha em sair da pobreza, aplicando pequenos golpes e explorando a prostituição, cassinos e clubes de boxe, treina um conterrâneo para ser o herói nacional; já Abdelkader (Sami Bouajila) é o intelectual que estuda e se dedica aos livros, mas acaba preso logo após o massacre de argelinos numa passeata no dia da rendição alemã, em 1945, vem tornar-se líder da luta armada; o terceiro irmão é Messaoud (Roschdy Zem), um soldado que lutou na Indochina e volta para ser o executor da Frente da Libertação Nacional.

O filme lembra os velhos faroestes com muitos tiros e vítimas tombando ao solo inapelavelmente, bem como as memoráveis películas de gângsteres, seguindo com coerência um correto filme político, onde a história se sobrepõe aos atos de barbárie e agressões explícitas apresentados de maneira nua e crua, sem abusar da violência gratuita. Inegavelmente Bouchareb aborda com eficiência e maturidade um filme que busca no passado colonialista francês,visto ainda hoje como uma questão tensa e delicada para os ex-colonizadores, quando reabre o debate e busca a reflexão ocorrida naquele terrível campo de batalha, que deixou os próprios argelinos endurecidos em seus sentimentos, como na resistência de Abdelkader em se entregar ao amor, com a bela loira francesa que o tentava seduzi-lo.

O diretor chegou a afirmar no Festival de Cannes deste ano, ao ser hostilizado, que sua intenção era ter num futuro bem próximo o encontro entre franceses e argelinos, deixando o passado para trás definitivamente, renegando-o ao esquecimento. Posiciona-se favorável pela abordagem não só dos cineastas, mas também dos historiadores, do público e dos políticos discutirem a luta pela independência da Argélia.

A trama lembra outro grande filme que abordou a luta dos argelinos, como A Batalha de Argel (1965), de Gillo Pontecorvo, que mostra os momentos decisivos pela independência, como um marco do processo da libertação das colônias europeias na África, entre 1954 e 1957, demonstrando a maneira de agir dos dois lados conflitados, não escondendo que a FLN desenvolvia técnicas não convencionais de combate, baseadas na guerrilha e no terrorismo, enquanto isso o Exército da França utilizava a tortura como sua arma potente e letal para abafar os ditos inimigos, exatamente como vemos com uma clareza direta e sem subterfúgios neste imperdível Fora da Lei.

A luta dos povos africanos que eram colonizados teve seu apogeu nas décadas 50 e 60, pois já saturados e cansados de serem humilhados pelas suas colônias imperiais, começaram a dar um basta, tendo a Argélia despontada como uma das primeiras a se rebelar e Fora da Lei tem a dignidade e o orgulho deste notável cineasta em colocar com toda contundência este filme universal e maior, tanto pela sua impecável edição, como pelo som, um elenco de primeiríssima qualidade, diante de um roteiro enxuto e um direção precisa, torna este longa como um dos melhores desta 34ª. Mostra de São Paulo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Memórias de Xangai)



Memórias de Xangai

Jia Zhang Ke dirigiu o instigante Plataforma (2000), seu segundo filme, um drama de três horas de duração, que já abordava os efeitos da abertura capitalista na fechada sociedade chinesa, em que a migração interna parece ser a única alternativa para toda uma geração. No caso, uma trupe de atores que assume outros empregos. No filme seguinte, Prazeres Desconhecidos (2002), tratava dos efeitos dessa abertura nos adolescentes, perdidos entre a cultura de seu país e o ocidente. Seu primeiro filme foi o premiado Pickpocket (1997).

O cineasta chinês agora realizou de forma elegante e sutil este semidocumentário Memórias de Xangai que aborda visceralmente toda revolução cultural e política nesta bela cidade portuária de pequenos barcos e navios majestosos que descem vagarosamente pelo seu rio, em plano-sequência aberto, em câmera lenta aproximada, desenhando um lindo quadro como se fosse pintado pelo impressionista clássico Renoir ou o barroco europeu Rembrant.

Mas Memórias de Xangai não é só beleza plástica, pois traça um painel de lágrimas e recordações, com muitas reminiscências pelos sobreviventes e descendentes daqueles que lutaram pela revolução e independência desta principal e calorosa cidade portuária mais importante da República Popular da China. Os diálogos mostram o que foi e o que é hoje Xangai, com mais de 20 milhões de habitantes, localizada na costa da China Oriental, administrada como um município, com um estatuto de província. Era uma cidade favorável pelo seu porto e com uma das mais abertas ao comércio exterior pelo Tratado de Nanquim, florescendo como um centro comercial, financeiro e de negócios na década de 30.

No entanto, sua prosperidade foi interrompida devido a tomada lenta pelo Japão durante a 2ª. Guerra Sino-Japonesa e após a tomada comunista, em 1949, devido à cessação de investimentos estrangeiros. As reformas econômicas em 1990 resultaram em um intenso desenvolvimento da cidade em 2005, tornando-se o maior porto de carga do mundo. É famosa por seus marcos históricos, como o Bund, o Templo da Idade de Deus, o moderno Centro Financeiro de Pudong, onde está localizada a famosa Torre de Pérola Oriental, por sua reputação como um centro cosmopolita da cultura e da moda, sendo o maior centro comercial e financeiro, descrita como o grande exemplo da pujança de economia.

Até o filme de Michelangelo Antonioni China (1972) é questionado por um depoimento de um simpático chinês estarrecido com a preocupação do cineasta com as coisas do passado que representam o passado atrasado e não o presente novo e alvissareiro. Outros filmes emolduram e inspiram os personagens para dissecarem suas mágoas, lembranças e frustrações de um passado que os atormentam, pois tragaram muitas vidas, com as esperanças sendo retorcidas naquela deprimente guerra civil sanguinária deflagrada para que os irmãos se matassem por uma ideologia arcaica e sem nenhuma glória.

O diretor chinês finca pé e dá seu tom de esperança, naquela cena final em que os personagens já ocidentalizados e divorciados de um sistema comunista sepultado, sobem pelos elevadores naquele prédio de mais de 100 andares, para os altos da torre do capital financeiro, para observarem os barcos descendo por aquele mesmo rio, mostrando em flasbacks um atraso do passado, emoldurados por prédios enormes e majestosos, com os viadutos de um cidade civilizada e próspera.

Com a vitória do comunismo em 1949, milhares de pessoas se refugiaram em Taiwan e Hong Kong, voltando 30 anos depois, com a abertura do capitalismo, enfrentando ainda dureza do regime autoritário e castrador de artistas e a liberdade de opinião, nesta Xangai que conviveu com assassinatos e muitas histórias de amor e desilusões de uma gama heterogênea de seus habitantes, tais como: do revolucionário ao pacificador; do gângster ao intelectual; do capitalista ao comunista; do soldado ao cidadão comum. Um bom semidocumentário que desfila um painel de diversas camadas da sociedade de Xangai, onde pessoas simples e intelectuais dão seus depoimentos humildes e em outros já mais politizados e com suas posições bem definidas politicamente, sobre passado, presente e futuro.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Comida Fria)

















Comida Fria

Vem da Noruega este comovente drama intimista Comida Fria, com direção da promissora Eva Sorhaug, que estreia com seu primeiro longa-metragem. Antes havia só dirigido curtas, vive há anos em Estocolmo, depois de formar-se em cinema pela Faculdade de San Francisco, nos EUA.

A trama gira em torno de cinco pequenas histórias de pessoas que vivem num mesmo lugar em Oslo, mas não se conhecem, dividido em em seis atos, que vão dando a cronologia dos acontecimentos destes excluídos sociedade. Um jovem, ao lembrar que o dinheiro do aluguel está dentro do bolso da camisa, vai até a máquina de lavar roupas e desconecta a chave geral, causando transtornos inimagináveis, pois o zelador ao colocar um fusível, acaba por causar uma pequena tragédia, como do senhor que está mexendo em seus disjuntores, ser vítima de um choque elétrico e morrer eletrocutado. A filha da vítima perde a dependência econômica do pai e é despejada literalmente pelo corretor de imóveis estressado que esbofeteia a esposa, momentos antes, pois a mesma não lavou sua camisa para trabalhar, assistido pelo filho pequeno que chora sem parar e ela não sabe a quem atender primeiro.

O drama começa evidenciando na cena inicial uma contundente e literal inversão de valores, quando aquela mulher que sai de sua casa com um jovem sem carteira de motorista, atropela um indivíduo e o diálogo do casal só demonstra a insensibilidade e os conceitos de vida deturpados por um mundo exterior estereotipado. A cena choca pela frieza e o valor ao ser humano renegada a um grau de falta de compaixão, beirando ao completo desinteresse pelo bem maior que é a vida.

Outra cena marcante por ser premonitória de uma fato inusitado e beirando a tragédia pessoal e coletiva é a revoada daqueles animais pretos em círculo e semicírculo, numa inspirada e clara homenagem ao mestre Alfred Hitchcock pela sua notável película Os Pássaros (1963), questionando os contrastes sociais e os devaneios daquelas pessoas arrasadas em seus sentimentos e dignidade perdida, mas que naquele epílogo, tendo no mergulho no mar daquela criatura sem pai, despejada, agredida num restaurante de maneira estúpida e bárbara, como se houvesse a redenção e a purificação das almas naquelas águas, de forma magistral e quase definitiva. Eva Sorhaug demonstra qualidades de uma cineasta com futuro próximo de uma boa artesã, mas peca por deixar solto demais o roteiro, faltando alguma definição melhor, embora os atos enumerados sejam uma tentativa de conduzir o filme, acaba por serem inadequados e simplistas esteticamente.

Comida Fria claramente é inspirado em Short Cuts (1993), o mestre americano Robert Altman, que traça um painel da Los Angeles atual a partir do atropelamento de uma criança, filha de um apresentador de TV, por uma garçonete, em que casais que não se entendem, pais e filhos que não se comunicam e amantes que não conseguem se integrar. Outra inspiração é Babel (2006), de Alejandro González Iñarritu, quando um trágico acidente envolve um casal norte-americano no Marrocos, com personagens que em algum momento se cruzam em situações aparentemente banais, mas que levam a desfechos inesperados, que afetarão a vida de todos.

A diretora construiu um belo painel da sociedade norueguesa, que também pode ser universal, onde pessoas que estão à mercê de uma vida digna e envolvidas por pequenos desmoronamentos, mas um otimismo desenhado no ato final, não chega a ser ufanista, muito pelo contrário, conduz para uma reflexão deste bom filme da Noruega.

Mostra de Cinema São Paulo (Carlos)



















Carlos

Olivier Assayas quando filmou Carlos, em três episódios para uma minissérie na TV, possivelmente não pensava que viraria um filme único de intermináveis e cansativas 5h30min, numa sequência sem intervalo de 330 minutos, com um som torpedeado pela microfonia, praticamente inaudível, a partir do último episódio na sessão das 18h30min, do Cine Sabesp, fazendo com que mais da metade dos espectadores fossem embora irritados e sem nenhuma vontade em retornar.

O longa-metragem tem por enfoque principal contar a história da vida de Ilich Ramirez Sanchez, adotando como codinome "Carlos" o Chacal (Edgar Ramirez- ator venezuelano de muito boa atuação), tendo por ídolo "Che" Guevara, com formação marxista, mostra um revolucionário que defende a causa da Palestina, tendo como seu epílogo "profissional" justamente a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, perdendo sua utilidade e seu aproveitamento por países que agora vêm se alinhar aos EUA, para um dos terroristas mais procurado no mundo por duas décadas, após diversos atos sanguinários, entre eles o incrível sequestro de 11 ministros de diferentes países numa reunião da Opep, em Viena, no ano de 1975.

A saga de Carlos começa com sua atuação para um líder muçulmano da Frente da Libertação da Palestina, a serviço do Iraque, terminando na sua captura no paupérrimo país do Sudão, para cumprir pena perpétua na França, tendo em vista seus atos terrorista com morte em solo francês. Já em Londres, no ano de 1974, tenta assassinar um homem de negócios, no início da sua trajetória de muitas mulheres, assassinatos e envolvimentos com políticos poderosos de países interessados em seus "serviços" de prática de atos terríveis com mortes e feridos graves.

O terrorista é apresentado não como um líder positivo, nem como um monstro, mas como uma pessoa de carne e osso, com diversos defeitos que se somam ao seu caráter no mínimo duvidoso e personalidade dura e forte, transigente às vezes e definitivo e fulminante em outras, como em eliminar seu colega palestino André. O novelo começa a se dissipar logo, para se saber quem era este personagem da história moderna de várias identidades e persuasão junto a ministros, presidentes e pessoas poderosas interessadas no mundo do petróleo, deixando como pano de fundo a luta pelo estado da Palestina, quando começa a receber muitos milhões de dólares, pela negociação com a Argélia no sequestro dos ministros em Viena.

Assayas que vem de uma obra-prima como Horas de Verão (2008), não consegue com Carlos atingir o mesmo grau de intensidade política e clímax, como de Costa Gravas, em Estado de Sítio (1972) e Roman Polansky com O Escritor Fantasma (2010), filmes bem mais enxutos e incisivos, deixando a plateia atônita e interessada, o que não acontece com Carlos, onde o filme é dispersivo, sonolento, repetitivo e muitos espectadores abandonam a sala, diante da exaustão e falta de um ritmo mais frenético e trepidante.

O grande pecado de Carlos é a edição, pois este filme poderia ser reduzido com a maior tranquilidade para no máximo 2h30min, sem perder o conteúdo e a reflexão. Ou seja, ganharia em movimentação e atenção. Ainda assim consegue ser um bom filme, que conta uma história real com flashback de cenas reais mal aproveitadas, embora com um bom elenco e uma trilha sonora adequada, faltou o diretor ter fincado pé e exigido para que no mínimo fosse dividido o filme em dois longas, adequando a linguagem e a duração de TV para o cinema.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Abel)



















Abel

Nem sempre um ator é um bom diretor e vice-versa. Diego Luna neste seu primeiro longa-metragem dá mostras disto com Abel, uma comédia dramática de 85 minutos de projeção, abordando a troca de papéis e invertendo hierarquicamente filho e pai, num mundo adulto, onde as crianças aparecem desprotegidas até certo ponto, sem uma real profundidade dos problemas a serem questionados.

Muitos diretores já se aventuram em filmar crianças, sendo que uns conseguiram verdadeiras obras-primas, como o mestre François Truffaut, precursor da Nouvelle Vague, com Os Incompreendidos (1959), e a outra Na Idade da Inocência (1976), drama mostrando a transição da infância para adolescência vista pela ótica de dois meninos. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto, sofre as chacotas dos mais velhos e dos adultos. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme indiscutível e magistral sobre infância, abordando um garoto que queria capturar um cavalo selvagem e disputava-o com vaqueiros adultos com a mesma intenção. Outro não menos extraordinário longa sobre a infância vem do Irã, com direção de Jafar Panahi, O Balão Branco (1995), sobre uma menininha que quer comprar um lindo peixe dourado e gordinho, mas seu irmão tenta ajudar numa busca incessante pelo dinheiro, apronta algumas estrepolias pelo caminho.

Também, em recente sucesso, houve o belo O Pequeno Nicolau (2009), de Laurent Tirard, se assemelhando nas cenas de sala de aula em muito outra obra-prima francesa Entre os Muros da Escola (2008), de Lurent Cantet, sobre os reflexos da escola na sociedade perdida e desorientada, questionando os professores de ensinar para quem? Para que? A mostra da transgressão e a a capacidade da escola e dos docentes, bem como a sociedade e o microcosmo familiar, com a perda da energia em determinadas circunstâncias. Outro inesquecível filme sobre crianças é A Guerra dos Botões (1962), comédia dramática francesa de Yves Robert, numa sátira maravilhosa à guerra dos adultos, tendo como dois líderes estudantis de duas cidades adversárias, que se propõem a brigar e arrancam os botões dos casacos e confiscam os cintos, para que os pais os castiguem.

Já em Abel, o longa tem muito pouco da fantasia infantil, demonstrando uma forçada espontaneidade e ingenuidade das crianças e adultos conflitados, diante do abandono da família pelo pai, nos seus devaneios e busca de novos amores, ao retornar encontra seu filho mais velho no seu lugar de comando, dando ordens e ditando normas desproporcionais para sua tenra idade, consequência clara de um desvio comportamental, afastando-se a definição de ser um menino prodigioso. A mãe no papel de mulher abandonada faz concessões a Abel, deixando-o conduzir e estabelecer o que entende como correto e perfeito para o bem dos demais, causando um verdadeiro alvoroço nas relações e limites sem imposição, mesmo demonstrando manifesto desvio de conduta e causando perigo aos irmãos.

O longa tem um ranço moralista, visando explicitamente punir o pai que sai pelo mundo e perde o controle da família, com a enfermidade de Abel, ainda vendo a esposa ter um filho do vizinho e a desordem estabelecida em sua casa. As piadas começam com graça, mas aos poucos vai se esvaindo e se perdem no grotesco e quase vulgar. Tem um final convencional e previsível, ditado pelas regras do conservadorismo, talvez involuntário e inerente de um diretor que poderá crescer, mas que por enquanto tem muito ainda que trilhar, diante deste razoável filme de estreia.

Mostra de Cinema São Paulo (Rosas a Crédito)
















Rosas a Crédito

A reconstrução da França pós-2ª. Guerra Mundial pelos olhos atentos de Amos Gitai é o mote para o tema principal de um conturbado relacionamento de um casal de jovens recém-casados em Paris. Depois de Free Zone (2005), o diretor israelense paralisou sua criatividade e estacou com temas repetitivos como brigas de fronteira entre palestinos e judeus, cansando os olhos e ouvidos de seus admiradores, não inovando sua filmografia prodigiosa.

Finalmente, Gitai dá um salto de qualidade vertical, ao abordar de forma profunda e serena, com uma sutileza encontrada somente entre os grandes cineastas ao filmar Rosas a Crédito, baseado num romance de um livro de Elsa Triolet, magnífico drama intimista sobre Daniel (Grégoire Leprince-Ringuet) que casa com Marjoline (Léa Seydoux- unindo beleza e talento no desempenho admirável de seu papel, com futuro promissor), criam um painel para as discussões e reflexões de pessoas diferentes nos usos, costumes e intelectualmente diferentes. O casamento de Daniel e Marjoline acontece em meio a discursos ufanistas e patrióticos das Forças de Resistência da França, logo após o final da 2ª. Guerra Mundial, exaltando a expulsão dos alemães, repetindo os brados de vitória, numa tentativa de contagiar o povo francês, que está distante e decepcionado com este mundo de guerras e banalidades.

Daniel é um jovem sonhador que adora rosas e faz experiências para modificá-las geneticamente, visando manter a tradição da família no seu cultivo, com o apoio próximo de seu pai, quer continuar morando no interior reformar a velha casa do avô, fruto da herança familiar de um patrimônio que considera indispensável. Porém, Marjoline é uma moça que gosta do novo e odeia o antigo, o velho, o atraso, a solidão interiorana da fazenda, não gosta de ler, pouco ouve rádio. Seu interesse é por comprar compulsivamente, como revistas de moda e decorações de casa. Vai comprando tudo que vê pela frente, inclusive o apartamento minúsculo que divide com seu parceiro, mais parece um cubículo, tendo como vista panorâmica um prédio enorme cheio de janelas que ofuscam a privacidade e o sol, embora o corretor tente incutir na cabeça deles, de forma paradoxal, que ali é um espelho de bons momentos e prazeres da vida. Depois vem a compra do carro esportivo e assim vai se sucedendo, com carnês e notificações se empilhando em casa, sobrando muitas vezes para o sogro quitar as dívidas.

Nem mesmo o emprego de manicura e maquiadora que arranja soluciona os problemas, causam ainda outros e o desvio de personalidade se escancara naquela garota mimada e fútil, que não tem limites na vida, deixando entrar em colapso estrutural seu casamento, já com o conflito cultural e civilizatório se mostrando com clareza. É iminente a traição e os valores se alteram drasticamente, tendo sua própria personalidade entrando em profunda confusão e instabilidade, restando a infidelidade e a perda inexorável da dignidade. Marjoline é a síntese daquela sociedade consumista pós-guerra, metaforicamente muito elaborada por Gitai, que passeia sua câmera pelas ruas de Paris, com seus bares, pontes e monumentos, sempre com olhar no futuro. As belas canções de amor tocadas durante o longa-metragem dão um toque de poesia e frescor àqueles personagens atormentados e estressados pela falta de dinheiro e o exagero desproporcional advindos de uma recessão.

Gitai dirige com uma marcante beleza plástica, pois seu filme não tem gritos ou barulhos, exceto em surtos esporádicos pontuais de Marjoline. Os personagens quase que sussurram nos ouvidos, demonstrando-se que para se atingir um clima tenso e dramático, basta muitas vezes o olhar ou palavras ditas com eficiência e clareza de conteúdo, eliminando-se as apelações e os excessos gramaticais verborrágicos dispensáveis, o que tornam uma aula de cinema neste imperdível Rosas a Crédito, ressuscitando da mesmice Amos Gitai.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (A Árvore)



















A Árvore

Julie Bertucelli tem na sua curta filmografia apenas um longa-metragem de 2003, realizado na Geórgia, o magnífico Desde Que Otar Partiu, que trata das relações intimistas decorrentes da família composta por uma avó, mãe, filha e um filho que foi para Paris e lá acontece algo inusitado. Contar para a mãe é grande questão, numa temática com envolvimento político e com seus diversos desdobramentos.

Agora lança na Mostra, em primeira mão, o excelente A Árvore, que tem como trama um casal que vive num vilarejo da Austrália, de forma simples e acomodada com seus quatro filhos menores, rodeados por uma vizinha bisbilhoteira e os amiguinhos da crianças, num cenário de beleza estonteante. Até que o marido morre repentinamente, o filho mais velho assume o comando da casa e começa a trabalhar numa madereira, já a viúva Dawn (Charlotte Gainsbourg- de grande atuação e lembrando em muito sua notável performance no extraordinário filme Anticristo (2009), de Lars Von Trier), logo mantém um relacionamento afetivo com um vizinho e patrão- pois ela também foi à luta pelo emprego- um encanador que sugeriria a demolição do arbusto imponente e devastador.

A Árvore traz como reflexão a falta de limite do amor pela natureza e os perigos iminentes de uma frondosa figueira, que tem suas raízes e galhos se espalhando e agredindo a casa da família, inclusive entrando pelas janelas e portas, surgindo sapos nos vasos sanitários, um galho podre que se quebrou e caiu no quarto de Dawn, como num aviso de prenúncio de dias piores que estão por vir. A relação da figueira com a menininha Simone, de 8 anos, e o suposto elo com o pai morto traz à baila os limites de pais e filhos.

A garotinha se entrincheira nos galhos e não deixa ser derrubada aquela árvore que lhe traz reminiscências e o alto grau de afetividade com seu genitor tragicamente desaparecido, justamente naquele local das raízes que tanto cultiva e guarda um segredo com a mãe, nas madrugadas que é acordada pelo farfalhar das folhas rebeldes como Simone, que hesita entre abandonar o carro de Dawn, caso ela mantenha passar o primeiro Natal sem seu pai, mas com o novo namorado.

Os vínculos afetivos entre pais e filhos, bem como seus limites e demarcações são questionados com bastante clareza e sutileza por esta diretora surpreendente, já desde seu longa anterior, onde o tema da família e as relações conturbadas são debatidas à exaustão. A dor da perda e a dúvida da confissão estavam presentes em Desde Que Otar Partiu, permanecem e continuam solidificadas, pois o tema não se esgota e abrange de forma magistral neste longa, deixando mais dúvidas do que certezas, diante da fragilidade da morte que chega na hora errada e o despreparo emocional da mãe para acalentar e dominar seus quatro órfãos paternos.

O final ainda que devastador pela natureza, traz no seu bojo a esperança naqueles seres desamparados e tristes pela perda material e do seu líder, retirado abruptamente da presença física do pai, mas não se deixam abater, embora sugados pela dor, a melancolia fica para trás, e aquele pequeno caminhão com aquelas criaturinhas estão dispostas a recomeçar uma nova trajetória, simbolizadas na metáfora ao plantar uma pequena muda de uma árvore.

Debate em São Paulo

Após a exibição do filme, a diretora Julie Bertucelli participou de um bate-papo com o público. Esta foi sua primeira visita ao Brasil. Durante a conversa, ela afirmou que só não filmou outros filmes neste longo intervalo porque estava grávida de seu segundo filho e que demorará mais um bom tempo para lançar o próximo, pois espera um novo bebê. Julie adiantou que seu próximo projeto de filmagem poderá ser no Brasil ou na Argentina. Não gosta de um filme atrás do outro, busca a qualidade e não a quantidade. Disse que teve problemas na Austrália para filmar A Árvore, pois o povo daquele país é muito engessado e não sabe improvisar; que a figueira não foi cortada, pois foi utilizado efeitos especiais; teve que se impor para captar as cenas reais de uma tempestade, tendo em vista que estava distante 3 horas da árvore que serviu de cenário e que a chuva das imagens é artificial.

Mostra de Cinema São Paulo (Cópia Fiel)



Cópia Fiel

Abbas Kiarostami definitivamente se ocidentalizou e parece ter perdido sua referência com o Irã, deixando para trás seus filmes de raízes com seu povo e suas dificuldades inerentes, como Gosto de Cereja (1997), Atrás das Oliveiras (1994), O Vento nos Levará (1999), Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987) e Close Up (1990). Já na Mostra de 2009, Shirin (2008) foi apresentado com muita pompa e foi uma retumbante decepção, mesmo que fosse enfatizada a frágil inovação estética, embora se assemelhasse mais com a linguagem de televisão.

Agora Kiarostami deu uma guinada respeitável e traz Cópia Fiel para discutir a relação de um casal, conflitado com os problemas decorrentes do desgaste da convivência da união de duas pessoas que mais parecem estranhas do que próximas, tendo no meio uma criança que está perdido e entra no jogo da mentira, num novelo como se fosse uma ficção e não uma realidade que lhe diz muito de sua convivência paterna e não afetiva, distante e completamente ausente. A trama é bem conduzida até o meio do longa-metragem. Elle (Juliette Binoche) é uma galerista francesa que encontra por acaso James (Willian Shimmel), um escritor britânico que dá uma conferência no lançamento de um livro que tem por tese defender as réplicas. Oferece-se para ciceronear o intelectual numa belíssima viagem à região italiana de Toscana, quando fatos inusitados começam a interferir entre os dois.

Quem conduz o carro é Elle pela bucólica estrada que dará num vilarejo de aparente boa comida e bom vinho. Num certo momento, parece que estamos em Teerã, com os velhos filmes de Kiarostami, mas não. Tudo é aparência e um jogo estranho de diálogos ríspidos começa a acontecer entre aquele homem e aquela bela mulher que se produz, usa batom bem vermelho e brincos atraentes. Até que James afirma categoricamente numa cena que começa a ser reveladora: "Eu vivo minha vida e a minha família vive a dela". Ou seja, a mulher e o filho estão fora do seu contexto de vida e dos parâmetros comportamentais de convivência harmoniosa. A sedução no quarto de hotel remete para um passado de 15 anos, num encontro frio e distante, com uma boa dose de culpa recíproca e questionamentos de perdas e ganhos. Frases de provocações e estímulos, como reiterados acabam por desestimular um recomeço alviçareiro, parecendo o reflexo do jogo de espelhos contra o sol refletindo com ardor e ao mesmo tempo muita dor.

Cópia ou original? Réplica ou Tréplica? Ficção ou Realidade? Um bom e intrigante jogo de palavras, tal qual o filme no seu início e desfecho, não tão surpreendente, pois o fio do nó se desata no meio do longa. Inegavelmente, perde o clímax com a frouxidão da direção, embora não se possa negar o roteiro bem elaborado, porém lamentando-se que fosse conduzido afoitamente pelo diretor iraniano. Cópia Fiel até parece tratar de um casal em crise matrimonial. As acusações e as tentativas frustradas de um relacionamento remasterizado, indicam e dão uma tênue luz no início da película, que estes dois se conhecem há muito tempo e querem nos pregar uma peça.

Suspeita-se serem velhos conhecidos e brigões daqueles que estão presentes nas cenas de um casamento frustrado? E que as alternativas de uma bela região como a Toscana seria a saída no fim do túnel. Ficção ou realidade de uma verdade escondida na mentira, em que as respostas bem simples estão neste bom filme de Kiarostami.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mostra de Cinema São Paulo (Metrópolis)



















Metrópolis

É impagável assistir um clássico inquestionável como Metrópolis, realizado em 1927, dirigido pelo mestre alemão Fritz Lang, com os arranjos da trilha sonora ao vivo pela Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo, dentro do Parque Ibirapuera, das 20h15min às 23h, mesmo com um friozinho gelado percorrendo o corpo e algum prenúncio de chuva, muito silêncio na apresentação a céu aberto, demonstrando-se todo o repeito pelo evento. Quem viu está de parabéns; quem não viu, perdeu um show extraordinário nesta 34ª. Mostra de Cinema de São Paulo, na primeira reapresentação na América Latina da versão original restaurada com mais 30 minutos, após descoberta em Buenos Aires do negativo de 16mm.

Metrópolis é um filme essencialmente futurista pelos olhos mágicos de seu genial diretor Fritz Lang. Sua força estética se propõe já nas primeiras cenas quando fica claro seu propósito de contrastar a civilização sendo engolida pela revolução industrial, ao criar-se o "ser-máquina", terminologia usada antes do "homem-robô". A construção da cidade do futuro com viadutos, aeroportos, pontes e aviões sobrevoando os edifícios, que hoje são uma realidade, na época não passava de uma mera especulação ou um sonho imaginário fictício.

Fritz Lang ao realizar esta autêntica obra-prima, veio inspirar pela sua forma expressionista, outros filmes pela sua força esteticamente lançada, como Tempos Modernos (1936), do grande e inesquecível Charles Chaplin; bem como A Bela e a Fera (1946), O Mágico de Oz (1939), apenas para citar dois entre tantos outros que beberam na fonte inesgotável de Metrópolis, com aquela teatralidade de passos e gestos, como se fosse um balê clássico num cenário com os avanços de um cinema da década de 20.

Evoluiu o cinema e a cidades, mas Metrópolis agiganta-se pela sua antevisão dos fatos e acontecimentos que se desenrolaram de uma época de poucos recursos para depois de cem anos, em plena era da internet, telefone celular, filme digital, demonstrar que esta maravilhosa precursora película continua atual.

Em Metrópolis podemos ver como foi o esforço descomunal para construir a Torre de Babel, segundo o livro Gênesis, edificada na Babilônia, mas a história aposta que foi na Mesopotâmia, hoje Iraque, para unir os povos e as raças diferentes. A cidade das máquinas planejada e vista como realidade, através de suas engenhocas e parafernálias, tem um final beirando a tragicidade elevam o nível do filme aos píncaros da magnitude do homem. A luta do homem e da máquina, as obstruções e as dificuldades de uma harmonia pelos seus contrastes estão bem claras e sintetizadas no epílogo, quando busca-se a união do cérebro com a mão e o coração, naquela cena que até pode ser interpretada como politicamente correta ou conservadora, mas fica a simbologia da paz para um distante ano de 1927, pelas convulsões ainda que latentes do conflitos belicistas de uma Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918.

Fritz Lang insere-se na categoria de gênio da sétima arte, pois viria a filmar outro magnífico filme como M, o Vampiro de Dusseldorf (1931). Realizou tantos outros como Vive-se Só Uma Vez (1937) e O Diabo Feito Mulher (1941). A luta de classe dos intelectuais que moram na superfície com os operários que vivem no subsolo em Metrópolis, projetada para 2026 é a essência do conflito, assim como o amor do filho do prefeito por aquela pobretona trabalhadora Maria, vem aflorar os desentendimentos entre pai e filho.

Mas o cerne da questão é depurado com ardor e maestria pelo diretor alemão, ao situar a efervescência do conflito e os rumos civilizatórios oriundos da intransigência exacerbada de ambas partes daquele povo literalmente dividido ente a suposta inteligência intelectual e os alegados operários não-pensantes, numa absurda e severa dicotomia advinda de uma monstruosa separação de pessoas, porém bem colocado e enfatizado quando da construção da Torre de Babel, numa reflexão adequada e profunda de um diretor com a capacidade e o olhar de um Fritz Lang.

Mostra de Cinema São Paulo (Turnê)

















Turnê

Mathieu Amalric estreou no Brasil com Turnê, na 34ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O festejado ator francês tem em sua bagagem outros três longas que nunca chegaram comercialmente em nosso país, exceto na 27ª. Mostra com A Coisa Pública (2003). Destacado em atuações impecáveis como em A Questão Humana (2007), Atrizes (2007) e Um Conto de Natal (2008), entre tantos longas de sua bela carreira.

Com Turnê que é um bom filme, aparece algumas virtudes de um diretor de ator/atriz. Suas qualidades são reconhecidas já no início do filme, ao conduzir com certa elegância aquelas atormentadas atrizes de stripper burlescas de um teatro de revista pela América e depois pelo interior da França, esquivando-se dos problemas plantados na capital, pois Paris fica como uma cidade que dilacera seu personagem principal Joachim, interpretado pelo próprio Amalric, também reabrindo as feridas de um passado que o persegue pelas dívidas e amores frustrados.

Joachim é um antigo produtor de TV que busca o sonho americano para começar uma nova vida. Seu passado não é dos melhores, as lembranças o faz um homem perturbado e tragado pela consciência de um pai ausente, como uma pessoa que se distanciou dos amigos, ao buscar sempre uma virada em sua profissão. Mas as ilusões começam a se tornar realidade, ao formar aquele grupo de mulheres gordas, de pouco charme, mas de muita tenacidade, como se extraídas dos filmes de Federico Fellini: Satyricon (1969), Roma (1972) e Amarcord (1973), ainda que o envolvimento emocional com uma das estrelas esteja para fluir, contrastando com a traição de seu melhor amigo, colocando um balde de água fria nas suas futuras apresentações.

A volta de Joachim pelo interior e sua resistência em chegar a Paris dão o tom, embora sem aquele clímax aguardado. Falta um pouco de inspiração no final e a superficialidade acaba por envolver o final, deixando de lado uma abordagem mais profunda e realista. O encontro inusitado com os demais componentes do grupo teatral naquele admirável cenário junto ao mar fica vago e a mercê de um resultado esteticamente melhor.

Amalric busca no gotesco das"meninas" gorduchas sua inspiração para dar vazão para seu poema visual no desenrolar da trama, mas peca com um epílogo quase que infantil. A bizarrice e os nus frontais com cenas de striptease se diluem e vão ao encontro de uma vulgaridade, e, entra em choque com o pedido poético de Joachin por silêncio pelos lugares que passa, diante do som alto e do barulho dos hotéis de beira de estrada que o deixam incivilizado.

O mundo contestado por Amalric, através das feridas abertas de um passado que volta para Joachim, a traição do amigo, as fantasias, os sonhos ilusórios de uma realidade distante e os fantasmas que o perseguem, são os ingredientes que compõem esta boa comédia dramática francesa, embora haja erros estruturais e contraditórios, mas que não afastam as virtudes inquestionáveis da obra deste promissor diretor, neste painel de andanças daquele personagem amargurado e torturado pela consciência.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2



Libelo Contra a Corrupção

Em Tropa de Elite 1 (2007) havia um frenético ranço fascista e perigoso nas estrepolias e sessões de tortura do truculento Capitão Nascimento, do Bope, com os avisos simplórios: "bandido bom é bandido morto", bem como as investidas perigosas contra o estado democrático de direito sofrendo sérios arranhões.

Em Tropa de Elite 2- O Inimigo Agora é Outro, José Padilha acerta a mão em cheio e se consagra definitivamente como um grande cineasta e preocupado com a corrupção em todos os níveis sociais da pirâmide. A começar pela própria Polícia Militar do Rio de Janeiro, com o Capitão Fábio (Milhem Cortaz) assessorado pelo não menos crápula o Major Rocha (Sandro Rocha), mas poderia ser de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Enfim, toda ela agoniza de uma doença grave e terminal que é a falência decorrente dos seus integrantes corruptos.

O Capitão que vira o Tenente-Coronel Nascimento (Wagner Moura- novamente impecável) é afastado do Bope e é deslocado para subsecretário da Segurança Pública, após uma fracassada tentativa de abafar uma rebelião no Presídio de Bangu 1 - ao melhor estilo do longa Carandiru (2003), de Hector babenco-, onde seu comandado Mathias (André Ramiro) comete uma atrocidade contra um líder presidiário (Seu Jorge) que lidera a inssurreição, em que estava sob controle do ativista Fraga (Irandhir Santos) que acaba por se eleger deputado, diante de sua atuação pacifista e defensor dos direitos humanos, sendo o mesmo que vive com a ex-mulher de Nascimento, Rosane (Maria Ribeiro) e o seu filho adolescente Rafael (Pedro Van-Held).

O diretor dá uma verdadeira aula sobre as matizes sociais e políticas impregnadas pela maldição da demagogia barata e as facilidades de arrecadar dinheiro de forma ilegal pelas milícias oriundas da polícia, ou de servidores na ativa ou de ex-policiais. Sobra para todo mundo, até mesmo o ex-"aspira" e honesto Mathias dá sua derrapada e envolve-se perigosamente com a escória da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ingressando involuntariamente nos caminhos dos milicianos que cobram pedágio dos traficantes nas favelas, paga seu preço com o bem maior de qualquer indivíduo.

O sumiço com a "queima de arquivo" da jornalista investigativa tem como inspiração maior o destino trágico do repórter global Tim Lopes, no ritual bárbaro de incinerar o cadáver e arrancar meticulosamente toda a arcada dentária. Mas a política é o alvo principal de Padilha neste Tropa de Elite 2, ao abordar e dilacerar as estruturas de um sistema corrompido por votos e dinheiro. Ninguém fica impune ou salva-se, tem para todos os gostos, como o secretário de Segurança, o governador carioca e o deputado corrupto, o apresentador Fortunato (André Mattos) de um programa sensacionalista de TV; todos patrocinados diretamente pelo dinheiro sujo arrecadado pelas forças paramilitares e militares travestidos de bonzinhos. A origem vem de uma PM decadente que tem sua extinção solicitada numa CPI, para que se comece tudo do zero. Mas nem tudo está perdido, pois ainda remanesce um político sério ligado aos direitos humanos, embora eleito após uma participação dúbia mas eficaz, numa rebelião protagonizada no Presídio de Bangu 1.

O drama policial é contado na primeira pessoa pelo seu protagonista principal, demonstra um conturbado relacionamento com seu filho adolescente e perturbador no epílogo surpreendente, diante do inusitado dos acontecimentos e a perseguição a Nascimento, pelas forças nem tão ocultas, com cara e endereço miliciano. Fica clara a continuação em breve da trilogia que se completará, talvez sobre o Congesso Nacional, diante do indicativo do voo da câmera sobre aquela casa do povo. Certamente não faltará adrenalina pura e muito ingrediente novo no próximo episódio.

Tropa de Elite 2 segue uma trajetória contundente de denúncias que corroem e liquidam um sistema apodrecido, que vai do policial, passa pelo comando intermediário e termina no governador. Nem mesmo o dono do jornal sai ileso e tem sua imagem ofuscada pelo abalo da falta de caráter e moral, ao fazer vistas grossas pelo desaparecimento de sua brilhante repórter pertencente aos quadros de um jornalismo investigativo, que cada vez mais se acanha, quando não há uma retaguarda necessária e protetora. A película lembra em muito o excelente filme italiano Gomorra (2008), de Matteo Garrone, vencedor do Palma de Ouro de Cannes, esmiuçando a máfia napolitana e seus meandros. Como encontra similitude no Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola, que completou sua trilogia com a Parte II (1974) e Parte III (1990), legítima obra-prima sobre a cosa nostra.

Padilha dá um verdadeiro soco no estômago com esta estonteante sequência da saga de Nascimento, no seu segundo filme da Tropa...Coloca à nocaute uma plateia boquiaberta com toda a avalanche de impunidade oriunda de um sistema corrompido em todo seu escalão, por uma vírus letal. Fica no final aquela imagem de um Congresso Nacional atormentando e embasbacando corações e mentes de um povo cansado de políticos indignos e demagogos, já saturados de desonestidades de seus representantes sem alma e divorciados de seriedade, afastados dos anseios de seus eleitores. A ilusão se perde nas trevas de uma política malcheirosa, elitista e despudorada, como foi bem elaborada pela fidelidade do diretor, mostrando um mundo irreal e inimaginável pelas camadas sociais sofridas, que vão ao delírio nas cenas de agressão aos ditos de colarinho branco, pela frieza e o tom seco deste extraordinário filme policial-político de máfia brasileira.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Dois Irmãos



Terceira Idade

O que é uma clássica comédia dramática? Resposta: O filme Dois Irmãos, de Daniel Burman, adaptado do livro Villa Laura, de Sergio Dubcovsky, com Susana (Graciela Borges) na pele de uma egocêntrica, gélida e materialista filha de uma mãe idosa, porém bem cuidada pelo irmão Marcos (Antônio Gasalla), um solteirão de 64 anos e sem grandes realizações profissionais e afetivas.

Burman é o mesmo diretor talentoso da trilogia dos problemas inerentes aos laços familiares e o microcosmo sobre os seus conflitos, tais como: Esperando Messias (2000), O Abraço Partido (2004), completando com o melhor dos três e mais maduro Leis de Família( 2006). Depois surpreendeu positivamente com o magnífico Ninho Vazio (2008), talvez seu melhor filme, pela abordagem do casal que se reinventa, falando da morte após a partida dos filhos de casa para seguirem suas vidas e darem continuidade aos seus futuros, diante do tédio do lar com a ausência dos descendentes, refletindo sobre o existencialismo e o sentido da vida, indagando ao escrever na folha branca que dois corpos flutuam na água e se estariam mortos? Debruça-se sobre o fenecimento dos pais no sentido amplo da palavra, em sequências sensíveis mas dolorosas.

O diretor argentino agora mergulha nos confrontos e adversidades da terceira idade, chamada ironicamente de "melhor idade". Burman não tem a beleza plástica e emocional de Laís Bodanzky pelo seu notável drama Chega de Saudade (2008), tendo como cenário um clube de São Paulo com suas diversas histórias numa noite de baile, aflorando as ilusões e desilusões, perdas e ganhos, amor e traição, para sintetizar tudo numa imensa solidão. Também Marcos Bernstein dirigiu O Outro Lado da Rua (2004), com Fernanda Montenegro e Raul Cortez, em desempenhos impecáveis, refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos horizontes. Já com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, as perdas hereditárias e os valores dos descendentes são colocados em xeque de forma exuberante pelo herói de guerra decadente e preocupado com o futuro dos jovens, principalmente pela ganância dos próprios filhos e netos preocupados unicamente com a herança. Burman fica longe ainda da obra-prima Horas de Verão (2008), de Olivier Assayas, drama francês sobre três irmãos que não sabem o que fazer com o legado artístico da mãe e com a mansão que reunia a família nos tempos áureos, esmiuçando de forma sutil, numa análise arrasadora dos conflitos familiares.

Dois Irmãos é um bom filme, não mais do que isso, pois sempre se espera aquele "plus" de um diretor com a capacidade e a técnica de Daniel Burman, que acostumou mal seus fãs e críticos de cinema, diante de suas imensas virtudes anteriores inquestionáveis e com reconhecimento da cinematografia internacional. Nesta comédia dramática, a irmã expulsa o irmão do apartamento da mãe, logo após a morte da matriarca e o deporta para o Uruguai de forma impiedosa. Mas a vida dá voltas e Marcos se encontra profissionalmente pelos seus dotes artísticos, seguindo a carreira de ator de teatro, com participação expressiva e decisiva na peça Édipo Rei, do grego Sófocles, adaptado pelo diretor com quem acaba por se envolver afetivamente. A irmã Susana é tomada de uma fúria de ciúme e inveja, ao perceber a ascensão do mano Marcos ao retornar para a capital uruguaia, porém o destino lhe reserva um vizinho a quem chama de "Clint Eastwood", deixando aflorar seus sentimentos adormecidos e ofuscados pelo seu materialismo contundente.

O epílogo é a melhor parte da trama, que anda lentamente conduzida por uma letargia até as cenas do meio da película, sem um mínimo de emoção que se espera de uma produção tão badalada e aguardada. Os aplausos ufanistas de Susana a Marcos, soam como de uma legítima celebridade no camarote na busca pela redenção ao irmão perseguido e humilhado. Misturam-se e confundem-se na plateia para que Édipo seja paparicado até entrar em cena e satisfazer Marcos pela sua insistência para com a presença de Jocasta que simboliza a mãe e seu amor edipiano. O cineasta conduziu bem o final , ao mesclar o teatro com o cinema, pois já no início o tom teatral se fazia presente e era percebido com clarividência, numa estética bem definida e harmoniosamente levada para o gran finale, inclusive com o sapateado da dança protagonizado por Genne Kelly, em homenagem ao inesquecível Cantando na Chuva (1952).

O longa-metragem aborda a terceira idade e mostra os dissabores pertinentes, como fica explícito na cena do jantar, quando Marcos brinca com o diretor convidado que pede licença para ir ao toalete: "Nesta idade a próstata atrapalha o clima". Por todo o contexto deste clássico diretor portenho, que tem como proposta abordar os irmãos órfãos à beira da terceira idade, sem obter suas realizações plenas afetivas e profissionais, embora falte uma emoção convincente e o esperado plus, é um filme que deixa boas referências e reflexões com a leveza contumaz das comédias, tendo o afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas duas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar, na eterna busca pela liberdade.