Celebração Épica
O badalado cineasta Quentin Tarantino em sua última frase de
Bastardos Inglórios (2009) dizia:
"acho que essa é a minha obra-prima". E era bem provável que fosse. Um
filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do
paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampada no
rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse
algumas restrições pela facilidade dos abusos pela força. Depois, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova
conotação à saga no efervescente e original faroeste, dando oportunidade aos
escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil
(1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança
escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável diretor,
assim como fizera na realização anterior, seguiu a mesma estética narrativa
desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Fechou a trilogia das
fábulas históricas com Os Oito Odiados (2015),
retornando ao gênero do faroeste para apresentar os caçadores de recompensa,
que agora buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada
durante uma tempestade de neve que durou dias. Debatiam e questionavam os
resquícios que sobrevieram da guerra dos confederados entre sulistas e
nortistas nos EUA num cenário de teatro operístico para um tiroteio verbal sobre
os meandros e as consequências da batalha sanguinolenta que durou quatro anos.
Era Uma Vez
em...Hollywood é mais uma espetacular criação deste gênio da sétima arte,
com 161 minutos que passam voando na telona. Nem dá para se perceber a duração
extensa, pois o espectador fica saboreando de maneira inebriada a essência
construída pelo cinema neste seu último longa-metragem. É uma verdadeira ode prazerosa
à indústria cinematográfica mais famosa do mundo. O lado obscuro de Hollywood quase
sempre foi um tema retratado dentro de um exercício satírico e crítico que já
rendeu obras memoráveis de diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo
dos Deuses (1950),
de Billy
Wilder, Assim Estava Escrito (1953),
de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram
alusão ou alguma crítica velada foram
Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas,
o festejado vencedor do Oscar Birdman
ou (A Inesperada Virtude da Ignorância
(2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do
veterano diretor canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica
a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem
limites das celebridades hollywoodianas. Mergulhou num cenário de vaidades,
recheado de sarcasmo para dar vida e consistência devastadora à indústria
norte-americana.
Tarantino prometeu encerrar a carreira quando concluir o
décimo filme. Chegou agora na nona obra, mas espera-se que não cumpra a palavra
e seja apenas uma jogada de marketing, pois ainda tem muito para contribuir com
seu talento meritório inerente de alta qualidade entre tantas mediocridades que
pululam nossas salas. Construiu uma comédia dramática que deriva para a fábula
adulta que privilegia a liberdade para contar uma história fascinante na fase
de transição da sétima arte. A trama é ambientada em Los Angeles , no ano de
1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das
profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais.
São os novos tempos que emergem com transformações de rumos de uma nova
Hollywood na qual terão que se adequar. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um galã
de televisão e filmes de faroestes que está perdendo espaço. Bebe e fuma compulsivamente
num processo de degradação pessoal pelas frustrações da profissão que se
sucedem. Ao seu lado está o dublê exclusivo, parceiro e amigo fiel, Cliff Booth
(Brad Pitt), com fama de ser violento e ter praticado um homicídio no passado,
é malvisto entre os colegas pelo temperamento de brigão, mas tem como objetivo
fazer carreira em
Hollywood. Estão sempre juntos, tanto nos raros bons
momentos, como nos frequentes períodos de fase ruim. Dalton já não conhece
tantos astros renomados de outrora, mas tem como vizinha Sharon Tate (Margot
Robbie), uma jovem atriz promissora de 26 anos que fazia sucesso pela participação
no suspense O Bebê de Rosemary (1968).
Ela estava grávida do marido e diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha), que fazia
uma turnê pela Europa, quando foi brutalmente assassinada com quatro amigos, em
09 de agosto de 1969, pelos membros de uma seita composta por hippies e comandada
pelo fanático Charles Manson.
O realizador coloca de maneira sutil a contracultura do
movimento hippie que eclodiu nos anos de 1960 em choque com a ascensão da
estrela que brilha e faz furor, através de uma tragédia brutal que comoveu o
mundo. Não carrega nas tintas fortes dos tiros, explosões e dilaceramentos de
corpos, deixando para o epílogo sua marca registrada, porém de maneira contida
e equilibrada. Era uma Vez em...
Hollywood é um épico em tom de comédia voltado para homenagens com o paradoxal
sabor doce e melancólico à indústria cinematográfica em transição. São inoculadas
as verdades mescladas com mentiras relatadas através da magia de uma grande
fábula naquele universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. A
desglamourização é acentuada na inventiva subversão ficcional contrapondo com a
realidade de fatos singulares ocorridos. O diretor não visa buscar elementos
novos para decifrar o assassinato ou questionar o movimento pseudorreligioso
através das referências à cultura pop, por ser apenas um pano de fundo para o
enredo magistral que se desenrola e lança algumas luzes sobre um futuro
pessimista.
No entanto, seu último longa é uma vertente de amor ao
cinema com um viés tênue nostálgico, que substitui de maneira clara e evidente
o prazer do sangue em profusão por diálogos marcantes e profundos. A narrativa é
emotiva em algumas cenas e em outras traz, às vezes, um sarcasmo embutido pela
atmosfera do bom humor com sutilezas nas imagens reveladoras de um cinema de
exceção. Num cenário da Los Angeles antiga, foi recriado com esmero e
fidelidade através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios
que nos remetem para os anos de 1960. Elogios à trilha sonora que atua como um
coadjuvante certeiro sem invadir a trama, embalando agradavelmente o
espectador. Abordar em formato lúdico em uma estrutura pouco convencional,
introduzindo e deslocando personagens livremente no ardil de um roteiro
dinâmico com longos planos-sequência, depois cortar e ir para contraplanos eloquentes,
não é para realizadores neófitos da mesmice ou veteranos limitado. Só os
grandes autores conseguem prender uma plateia por mais de duas e meia em uma
história complexa, exceto estão os grandes mestres, e entre eles está Quentin
Tarantino no cotidiano de seus anti-heróis brilhantemente encarnados por
DiCaprio e Pitt, pela primeira vez contracenando juntos. Um extraordinário
filme que estará certamente entre os dez melhores nas listas de fim de ano.