quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A Árvore dos Frutos Selvagens



Painel de Conflitos

O consagrado diretor e roteirista turco Nuri Bilge Ceylan está de volta com A Árvore dos Frutos Selvagens, um ótimo drama que aborda com profundidade a religião, a filosofia, os aspectos sociais, a economia, a política e as intrínsecas querelas familiares. Um filme de 188 minutos pode assustar no primeiro momento, mas surpreendentemente flui e anda com uma boa dinâmica do multifacetado roteiro, embora os diálogos sejam longos e por vezes exaustivos e repetitivos. Os conflitos de uma família soam como elementos alegóricos para retratar a existência de momentos marcantes na vida de personagens destroçados por um país em crise política sob a batuta de um regime autoritário comandado por Recep Erdogan. Salta aos olhos uma sociedade atrelada flagrantemente à religião e aos abusos de um governo de exceção, simbolizados eloquentemente na saga pelos desmandos da derrocada e divisão dos membros daquele microcosmo intimista em iminente decomposição moral e com a dolorida perda da dignidade humana pelos vínculos rompidos.

O cineasta venceu a Palma de Ouro e o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com a extraordinária realização Winter Sleep (2014), batizado no Brasil com o título Sono de Inverno, na qual faz uma reflexão magnífica sobre a existência e seu sentido na essência da vida, os efeitos do tédio e o ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda da parceira, acompanhado da solidão e da velhice que aflora de forma avassaladora. Realizou o longa Distante (2002), vencedor de Melhor Ator e o Grande Prêmio do Júri de Cannes; com Climas (2006) levou o Prêmio da Crítica da 30ª. Mostra de Cinema de São Paulo; foi laureado como Melhor Diretor em Cannes pelo perturbador Três Macacos (2008). Mas Ceylan arrasaria com o estupendo Era Uma na Anatólia (2011), talvez o melhor de todos, pelo qual abocanhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Uma mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente arcaicos. Solidificou-se como um realizador preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia estava, e ainda está, presente no caos que se instala nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas.

A Árvore dos Frutos Selvagens é uma trama bem urdida para representar a crise do jovem Sinan (Dogu Demirkol- pouco convincente no papel), um apaixonado por literatura que sempre sonhou em se tornar um grande escritor, faz de tudo para conseguir juntar dinheiro e investir na sua primeira publicação, na qual aposta tudo. Ele tem vinte e poucos anos, está recém-formado na faculdade, e retorna à região em que nasceu, mas vive às turras com o pai, Idris (Murat Cemcir- de atuação impecável), um professor fracassado em meio à complexidade da situação em que se encontra pela decadência profissional, moral e familiar, por ser um apostador contumaz no hipódromo. Lá, gasta todo o dinheiro e está endividado com agiotas. Embora ame os filhos e a mulher, se mantém à distância, pois gosta mesmo é de criar suas ovelhas na zona rural, tenta encontrar água num poço no qual perfura com esperança, porém traz um trauma que remete à infância quando bebê ao ser tomado pelas formigas. A mulher do docente não aguenta mais a situação caótica em casa com corte de luz devido à falta de pagamentos, a residência hipotecada pelo marido por dívidas recorrentes e a filha sem grandes perspectivas de futuro. O aspirante a escritor luta pelo financiamento de seu livro, vai ao encontro do secretário da prefeitura, de comerciantes e busca ajuda junto a um renomado intelectual do lugarejo. Debate com a namoradinha de infância e o líder imame muçulmano local sobre a religião, aborda temas amplos como os usos costumes, a cobiça, o amor e a filosofia não acadêmica, ou seja, do cotidiano da vida simples dos personagens aldeões, questionando muitas vezes as ideias de maneira utópica e arrogante. As cenas são recheadas de desavenças que surgem aos poucos, ao fio de longos diálogos de forma lenta e progressiva.

O drama consiste em um mergulho filosófico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração quase sangrando. A relação fria e distante entre marido e mulher pelo afastamento emocional num casamento de aparências, onde ele tenta controlá-la e mantê-la afastada de seu trabalho comunitário, o que irá gerar mais discórdias e crise conjugal. A relação do pai com os filhos também é conturbada, especialmente com o rapaz. São fatos do cotidiano que gravitam no painel construído por Ceylan, em que as estações do tempo mudam gradativamente e o espectador acompanha pela natureza em transformação, através de um cenário deslumbrante como no farfalhar das folhas que corta o silêncio, os frutos chegando como alimento e a nevasca por todos os lados predominando o inverno. Há no desenrolar da história um aprofundamento intenso nos diálogos de questionamentos implacáveis, pela maneira elegante da condução com um toque de classe seco com extremo realismo de cenas de som direto em longos planos sequenciais, ao melhor estilo do rigor formal clássico bem típico do diretor.

Ceylan invoca facilidade na técnica para prender o espectador, retratando o dia a dia que se dilacera num contexto de grande cinismo e domínio do poder sobre os menos favorecidos. Deriva para o desemprego e a humilhação com os efeitos do tédio e da desilusão do jovem escritor e a aproximação com o pai realista, capturado no simbólico encontro libertário no epílogo metafórico de luzes e esperanças no fim do túnel, ou do poço. Um desfecho que revela e joga alguma centelha positivista, embora tênue, numa tentativa de recompor e burlar o pessimismo, diante das revelações que irão fortalecer os vínculos familiares estremecidos. O filme tem o movimento interessante de uma câmera em planos-sequência longos, rara vezes em contraplanos curtos, captando as imagens e a valorização primordial da importância da palavra. Eis uma obra que instiga e faz refletir sobre os conflitos como mola propulsora para ir ao encontro das decorrentes fragilidades dos aspectos sociais e a relação direta com a abominável política de um regime arbitrário.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Me deu curiosidade em assistir