terça-feira, 20 de agosto de 2019

Era Uma Vez em...Hollywood



Celebração Épica

O badalado cineasta Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia: "acho que essa é a minha obra-prima". E era bem provável que fosse. Um filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampada no rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse algumas restrições pela facilidade dos abusos pela força. Depois, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova conotação à saga no efervescente e original faroeste, dando oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável diretor, assim como fizera na realização anterior, seguiu a mesma estética narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama. Fechou a trilogia das fábulas históricas com Os Oito Odiados (2015), retornando ao gênero do faroeste para apresentar os caçadores de recompensa, que agora buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada durante uma tempestade de neve que durou dias. Debatiam e questionavam os resquícios que sobrevieram da guerra dos confederados entre sulistas e nortistas nos EUA num cenário de teatro operístico para um tiroteio verbal sobre os meandros e as consequências da batalha sanguinolenta que durou quatro anos.

Era Uma Vez em...Hollywood é mais uma espetacular criação deste gênio da sétima arte, com 161 minutos que passam voando na telona. Nem dá para se perceber a duração extensa, pois o espectador fica saboreando de maneira inebriada a essência construída pelo cinema neste seu último longa-metragem. É uma verdadeira ode prazerosa à indústria cinematográfica mais famosa do mundo. O lado obscuro de Hollywood quase sempre foi um tema retratado dentro de um exercício satírico e crítico que já rendeu obras memoráveis de diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, Assim Estava Escrito (1953), de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram alusão ou alguma crítica velada foram Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, o festejado vencedor do Oscar Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância (2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do veterano diretor canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades hollywoodianas. Mergulhou num cenário de vaidades, recheado de sarcasmo para dar vida e consistência devastadora à indústria norte-americana.

Tarantino prometeu encerrar a carreira quando concluir o décimo filme. Chegou agora na nona obra, mas espera-se que não cumpra a palavra e seja apenas uma jogada de marketing, pois ainda tem muito para contribuir com seu talento meritório inerente de alta qualidade entre tantas mediocridades que pululam nossas salas. Construiu uma comédia dramática que deriva para a fábula adulta que privilegia a liberdade para contar uma história fascinante na fase de transição da sétima arte. A trama é ambientada em Los Angeles, no ano de 1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais. São os novos tempos que emergem com transformações de rumos de uma nova Hollywood na qual terão que se adequar. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um galã de televisão e filmes de faroestes que está perdendo espaço. Bebe e fuma compulsivamente num processo de degradação pessoal pelas frustrações da profissão que se sucedem. Ao seu lado está o dublê exclusivo, parceiro e amigo fiel, Cliff Booth (Brad Pitt), com fama de ser violento e ter praticado um homicídio no passado, é malvisto entre os colegas pelo temperamento de brigão, mas tem como objetivo fazer carreira em Hollywood. Estão sempre juntos, tanto nos raros bons momentos, como nos frequentes períodos de fase ruim. Dalton já não conhece tantos astros renomados de outrora, mas tem como vizinha Sharon Tate (Margot Robbie), uma jovem atriz promissora de 26 anos que fazia sucesso pela participação no suspense O Bebê de Rosemary (1968). Ela estava grávida do marido e diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha), que fazia uma turnê pela Europa, quando foi brutalmente assassinada com quatro amigos, em 09 de agosto de 1969, pelos membros de uma seita composta por hippies e comandada pelo fanático Charles Manson.

O realizador coloca de maneira sutil a contracultura do movimento hippie que eclodiu nos anos de 1960 em choque com a ascensão da estrela que brilha e faz furor, através de uma tragédia brutal que comoveu o mundo. Não carrega nas tintas fortes dos tiros, explosões e dilaceramentos de corpos, deixando para o epílogo sua marca registrada, porém de maneira contida e equilibrada. Era uma Vez em... Hollywood é um épico em tom de comédia voltado para homenagens com o paradoxal sabor doce e melancólico à indústria cinematográfica em transição. São inoculadas as verdades mescladas com mentiras relatadas através da magia de uma grande fábula naquele universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. A desglamourização é acentuada na inventiva subversão ficcional contrapondo com a realidade de fatos singulares ocorridos. O diretor não visa buscar elementos novos para decifrar o assassinato ou questionar o movimento pseudorreligioso através das referências à cultura pop, por ser apenas um pano de fundo para o enredo magistral que se desenrola e lança algumas luzes sobre um futuro pessimista.

No entanto, seu último longa é uma vertente de amor ao cinema com um viés tênue nostálgico, que substitui de maneira clara e evidente o prazer do sangue em profusão por diálogos marcantes e profundos. A narrativa é emotiva em algumas cenas e em outras traz, às vezes, um sarcasmo embutido pela atmosfera do bom humor com sutilezas nas imagens reveladoras de um cinema de exceção. Num cenário da Los Angeles antiga, foi recriado com esmero e fidelidade através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios que nos remetem para os anos de 1960. Elogios à trilha sonora que atua como um coadjuvante certeiro sem invadir a trama, embalando agradavelmente o espectador. Abordar em formato lúdico em uma estrutura pouco convencional, introduzindo e deslocando personagens livremente no ardil de um roteiro dinâmico com longos planos-sequência, depois cortar e ir para contraplanos eloquentes, não é para realizadores neófitos da mesmice ou veteranos limitado. Só os grandes autores conseguem prender uma plateia por mais de duas e meia em uma história complexa, exceto estão os grandes mestres, e entre eles está Quentin Tarantino no cotidiano de seus anti-heróis brilhantemente encarnados por DiCaprio e Pitt, pela primeira vez contracenando juntos. Um extraordinário filme que estará certamente entre os dez melhores nas listas de fim de ano.

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