terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (As Bruxas de Zugarramurdi)














As Bruxas de Zugarramurdi

Uma das aguardadas realizações vem da Espanha na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo, As Bruxas de Zugarramurdi, dirigido pelo espanhol Alex de la Iglesia que dividiu o roteiro com Jorge Guerrica Echevarría. Vencedor de oito Prêmios Goya, incluindo melhor atriz coadjuvante (Terele Pávez). Não é um neófito, antes realizou filmes até interessantes, entre eles os longas Ação Mutante (1993); O Dia da Besta (1995, 20ª Mostra); Perdita Durango (1997); 800 Balas (2002); Crime Ferpeito (2004); Balada do Amor e do Ódio (2010), vencedor dos prêmios de direção e roteiro no Festival de Veneza.

Os espanhóis sempre se notabilizaram por ótimas obras sobre o período do ditador Francisco Franco, morto em 1975. Tanto pelos quadros de Salvador Dalí, Pablo Picasso, como nos filmes de Buñuel, Saura e Almodóvar, entre tantos outros notáveis, de uma lista imensa, quase que interminável. Porém, o mais conhecido dos longas de Iglesia, o resultado não foi nada bom e Balada do Amor e do Ódio não passou de uma comédia equivocada nos seu diagnóstico final, ao abordar o período do franquismo, numa sucessão de erros e gafes intermináveis e desgastantes para um cineasta que pretendia construir uma película com alguma pretensão.

Em sua última realização o cineasta tropeça novamente e seu resultado é irregular, abalando uma carreira promissora que perde o rumo e o foco de um cinema sério voltado para as questões sociais, parece estar mais inclinado para os blockbusters hollywoodianos e recheados de clichês inapropriados, dirigidos para uma plateia sem exigência e com viés para o puro entretenimento dos velhos matinês dominicais. Mais do que isso, expressa a ausência de critérios que permite que o cinema seja dominado por produções que nada acrescentam e integrem um processo destinado a transformar o espectador num ser desprovido de senso crítico e o faz aumentar seu distanciamento de obras comprometidas com uma qualidade superior de mínima reflexão.

As Bruxas de Zugarramurdi é baseada num caso real ocorrido em Logronõ, no distante ano de 1610, quando a Inquisição se fez presente e queimou 40 habitantes acusados de serem bruxas daquela comunidade. O filme conta a história de José (Hugo Silva), um pai divorciado e um jovem desempregado, Antonio (Mario Casas), que assaltam uma ourivesaria em Madrid e conseguem levar uma sacola cheia de anéis de ouro. Tentam fugir para França num táxi, após o roubo espetacular, mas esta viagem começa a correr mal quando mergulham nos bosques do País Basco. Acabam nas mãos de uma família de bruxas, com três gerações dominadas essencialmente por mulheres, sob o prisma do rótulo de feministas extremadas. Tudo acontece no reinado de Felipe III, um povoado acusado de formas de cultos e bruxarias, impostas por uma lei de execução dos habitantes, exceto claro, de uma mulher que testemunhou sobre o caso e que domina as florestas impenetráveis. Além das dificuldades de fugir das garras das vampiras, enfrentam ainda uma polícia bisonha e arcaica. Nem as personagens interpretadas como Graciana (Carmen Maura) e sua filha Eva (Carolina Bang) conseguem salvar a trama diabolizada.

Zugarramurdi é uma vila em Navarra, norte de Espanha, a cerca de 80 quilômetros da cidade de Pamplona, também conhecida como A Catedral do Diabo, é conhecida como a cidade das bruxas, devido aos fatos em seu passado envolvendo as lendas com o paganismo. Este era o cenário que o cineasta tinha nas mãos e levava o enredo até a metade do filme dando mostras de uma realização significativa. Chegava a dar indícios de feitos maiores como Convenção das Bruxas (1990), de Nicolas Roeg e o clássico A Dança dos Vampiros (1967), de Roman Polanski. Ledo engano, o roteiro desabou do meio para o epílogo e descambou para o intragável Godzilla (1998), de Roland Emmerich, refilmado depois em 2014, por Gareth Edwards, próximo de outros estereótipos antigos da categoria. Nem a grande-mãe, figura horrenda com seios maiores que as mulheres de Fellini, deu estofo para sustentar o imbróglio. Tudo vira um grande corre-corre, muitos gritos, sangue jorrando num cenário típico de filmes B. Ou de videogames em que a brutalidade do grotesco se sobressai no visual e se sobrepõe à história.

Mostra de Cinema São Paulo (Obra)















Obra

Decepciona de certa maneira na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo a aguardada promessa Obra, do cineasta paulistano estreante Gregorio Graziosi, responsável pelo roteiro com Paolo Gregori, dirigiu diversos curtas, entre eles Saba (2007), exibido em Cannes; escreveu o roteiro de Boa Sorte, Meu Amor (2012), de Daniel Aragão. O filme foi premiado no Festival do Rio com o prêmio FIPRESCI e ganhou na categoria de melhor fotografia pelo competente André Brandão. Está longe de um resultado melhor, tendo em vista que o longa não deslancha, vacila e tropeça numa montagem equivocada por uma estrutura irregular e sem força. Tem previsão de estreia no Brasil somente para março de 2015, antes passara no Festival Internacional de Toronto como o único representante brasileiro selecionado.

O cenário da trama é São Paulo, às vésperas do nascimento do primeiro filho do arquiteto João Carlos (Irandhir Santos). Seu mestre de obras (Julio Andrade) encontra uma ossada na construção que está prestes a iniciar e a descoberta desestabiliza os sonhos profissionais do protagonista, fazendo com que ele questione até mesmo a profissão e a cidade em que vive. Tudo se complica ainda mais quando vem à tona que o terreno é do avô, que tem uma condição de vida vegetativa e mora com os pais dele numa casa litorânea. Bem longe da metrópole poluída e barulhenta de um cenário acinzentado de prédios em construções gigantescas cobertas por uma névoa de poeira no céu, eis um dos acertos do longa, através da instigante fotografia em preto e branco para desglamourizar a cidade e dar um tom de uma selva de pedras.

O tom de opressão proposto logo se esvai, quando enredo se perde num emaranhado estéril, ao misturar o relacionamento com a sua mulher (Lola Peploe), que também dá seu pitaco e menciona indícios de indígenas como um tesouro arqueológico ali depositado. Além do peso da responsabilidade do nome do arquiteto, quando chamado para um projeto de restaurar uma igreja antiga e com obras inestimáveis, tem nas mudanças da rotina que o faz refletir, pensar no filho que está nascendo e nas dores lombares de avô para neto. Mas seu problema maior que o deixa em crise é a descoberta do cemitério clandestino no terreno da herança familiar.

Obra foi uma questão de urgência para o cineasta: "Eu tinha que fazer esse filme. Ele tinha que ser o primeiro, pois eu queria muito falar da minha relação com São Paulo. Para mim, a cidade só pensa no cotidiano, no novo, não sabe lidar com o que veio antes", afirmou. Mas o cineasta desperdiça talentos como Irandhir e Júlio Andrade, este muito mal aproveitado, numa atuação longe da habitual; já o ator pernambucano está caricato e sem expressão convincente, por falta de uma construção de um personagem adequado com a trama da cidade retratada como opressiva para causar claustrofobia. Mas nada disso acontece, diante de um roteiro frágil e inconsistente na falta de um ritmo condizente, através de cenas insossas e longas em planos apanhados de maneira distante, desnecessários e sem convencimento na plateia.

O filme tem de bom o primoroso som de Fabio Baldo, pela constância para criar um desequilíbrio emocional das máquinas que induzem um trabalho diário irritante, mas acaba por se perder na parafernália ideológica criada pelo realizador, que admite a inspiração para a sonosplastia dos filmes de David Lynch. Mas não passa disto, porque qualquer comparação mais aprofundada é pura heresia e insulto ao velho mestre. Nem a linguagem estética experimentada pelo cineasta em seus elogiados curtas estão presentes no longa, que até tem um embrião filosófico considerável como a cidade emparedada por todos os lados.

Graziosi não se debruça especificamente num ângulo reflexivo como os aspectos típicos de uma outra São Paulo, deixa o filme naufragar por estar solto e sem qualquer emoção de cinema, foge do foco inicial, migra do nascimento para a descoberta inusitada e a dor física com a sentimental. Falta profundidade nos temas elencados, diante de uma rasa abordagem inodora e insípido pela falta de dinamismo estrutural do roteiro com o desenrolar da história, onde havia elementos com bastantes subsídios para dar uma melhor resposta, sucumbe diante de uma desarmonia e uma mistura de ingredientes que tornaram Obra insatisfatório, exceto os dois acertos: fotografia e som.

Debate em São Paulo

Após a exibição do filme, o diretor Gregorio Graziosi com sua equipe técnica, entre eles o fotógrafo e montador, participaram de um bate-papo com o público. Durante a conversa, o cineasta falou que os atores tinham liberdade para opinar e escolher alguns lugares- chave para filmar; ressaltou como importante ter realizado desenhos para construir e colocar o plano do longa como realidade; falou da opressão da cidade de São Paulo que todos sentem e o papel importante das janelas e corredores para a comunicação com o espaço externo; a ideia do tema veio após filmarem quatro curtas no período da faculdade, para a partir daí se chegar finalmente no primeiro longa filmado e concluído em 2013; reescreveria a cena final novamente, mas que, ainda assim, tem orgulho junto com a equipe do trabalho realizado, porque foi o melhor que puderam fazer.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Carvalho)



O Carvalho (Balanta)

Não decepciona a comédia política romena O Carvalho, que tem roteiro e direção de Lucian Pintilie, na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo. Esta antiga produção de 1991, que levou o batismo anterior de Balanta, é um poderoso retrato da Romênia antes da queda de Ceausescu, com imagens significativas e contundentes do fotógrafo Doru Mitran. O veterano diretor estreou com Sunday at 6 (1965), seguido por The Reconstruction (1968). Querendo escapar da perseguição do governo comunista, mudou-se para a França em 1973, onde continuou filmando obras como Un été inoubliable (1994) e Terminus Paradis (1998).

A Romênia, antes da queda de Ceausescu, é narrada através da história de Nela (Maia Morgenstern), filha de um ex-coronel da Securitate, a temida polícia política daquele país ditatorial. Ao contrário da irmã dependente, ela se recusa a tornar-se uma agente infiltrada também, ainda que vivendo com seu pai covarde, herói e patriota, contraditório como todo o regime. Mas, com a morte dele, muda-se de Bucareste para uma pequena cidade do interior, onde conhece Mítica (Razvan Vasilescu), um cirurgião famoso e descendente de italianos que adora rir da vida e de si mesmo, igual a ela, uma mulher que sempre viveu abafada à sombra da figura paterna conservadora, numa alegoria do sistema brutalizado vigente por décadas. O médico mantém uma relação estreita com a figura máxima daquele lugar, o procurador (Dan Condurache), que também é conflitado com a seriedade, não passa de um atrapalhado na condução de sua comunidade já incontrolada, assim como o país, dá sinais de debilidade e começa a esboroar.

Um painel construído com um roteiro bem engendrado, com soluções nada convencionais, com risos fáceis em situações complicadas, até com dor e sentimentos de perda ou de agressão física desmesurada, típica de um regime autoritário com performance do ditador que lá se instalou e enraizou-se no poder, mas que logo começará a afundar como um barco torpedeado. O filme flutua da comicidade moderada com alguma sutileza para o escracho do formalismo da arbitrariedade, induzindo para situações escabrosas que acontecem nos subterrâneos, como o estupro humilhante. Os personagens têm vida própria só na sátira, pois logo já se demonstram as fragilidades decorrentes que os assolam na intimidade.

O Carvalho é um questionamento sobre a política institucional aplicada naquele país, derivando daí o ódio entre os conterrâneos, satiriza literalmente as incongruências daquele ambiente hostil, que se distancia cada vez mais da aprovação civilizatória dos valores e da ética. Há méritos inegáveis na construção correta de Pintilie do tormento social com deformações de guerrilha, bem apanhadas. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis condizentes daquele universo em luta constante num cenário bucólico, mas paradoxalmente aterrador sobre o dia inesperado do amanhã, quase que assustador, pois traz uma violência contida que brota como um libelo contra a intransigência. Mostra os desmesurados rituais desgastantes que sufocam e tiram o ar puro, numa retórica de opulência, também bem enfatizado pelos protagonistas.

A comédia tem boa fluidez, sem perder a essência dramática de forma autêntica e demolidora quando se faz necessário, como na instigante cena do ônibus metralhado com manifestantes acompanhados de crianças massacradas. Tudo acontece logo após as cinzas do pai serem depositadas sob a frondosa árvore. Não se suportará os desmandos, causando o conflito bélico como metáfora de um governo desabando por falta de sustentação política. O almoço do procurador foi suspenso, pela decorrência da explosão das ruas e da carnificina de uma redentora contestação de um ideal libertário. Os desatinos e as falcatruas expostas são zombadas para serem condensadas na história pela ironia corrosiva que soará como uma exaltação final de uma loucura incontida.

Mostra de Cinema São Paulo (Jauja)


Jauja

Uma das surpresas negativas na 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo é Jauja, embora vencedor do Prêmio da Crítica da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, dirigido pelo argentino Lisandro Alonso que dividiu o roteiro com Fabian Casas. Não é um estreante, antes realizou filmes que passaram despercebidos, entre eles La Libertad (2001); Los Muertos (2004), Fantasma (2006) e Liverpool (2008). A se julgar por esta sua última realização que aborda os povos antigos que diziam da existência de uma terra mitológica de abundância e felicidade, a mesma que empresta o nome ao título do longa, uma experiência que o realizador poderia ter permanecido nas sombras que abrigam diretores de menor expressão, que só conseguem destaque graças à bondade que parece estar presente em alguns setores da crítica.

Com uma paisagem centrada por longos planos fixos na bela composição fotográfica assinada pelo finlandês Timo Salminen, autor das imagens dos filmes de seu compatriota Aki Kaurismäki, o longa conta a historia do capitão uniformizado Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen), um colono dinamarquês que empreende uma louca viagem pela Patagônia para tentar liquidar os ditos cabeças de coco. Tem como companhia a filha Misael Saavedra (Viilbjork Agger Malling), mas o destino pretendido é um deserto localizado no fim do mundo. Esta é uma empreitada onde muitos já se aventuraram, mas poucos conseguiram concluir com sucesso, tendo em vista ser um lugar de muitos mistérios sobre a existência buscada por ambos, que se dispersam e perderam as referências de vínculos afetivos.

Alonso não consegue se aproximar de algo mais consistente em momento algum de seu estéril drama que retrata diversas expedições tentando encontrar o lugar para comprovar a lenda. O imaginário fez com que ela crescesse com o tempo de forma desproporcional como reza o lema que todos os que tentaram encontrar este xangrilá escondido na terra, em que seria um lugar onde as pessoas vivem como se fosse um paraíso, onde ninguém morre, mas muitos sumiram pelo caminho. E até o cinema, que aparece como instrumento que capta imagens e preserva a memória, às vezes é vítima da ineficiência de cineasta despreparado que se utiliza de relatos passageiros e inconsistentes. Nos momentos finais, na cena da menina com os cachorros na mansão que vai desembocar no pequeno lago, tudo soa falso como se ela acordasse de um sonho. Bem que a proposta encaminha para este desfecho insosso e frio se não fosse utópico e longe da realidade.

A definitiva ausência do pai coloca a filha diante de um impasse não resolvido, sendo que a trama girou quase que o tempo tudo na procura pela filha que fugiu com um homem desconhecido. A peregrinação pelo reencontro tem alguns momentos de inteira desolação e cansaço do protagonista, como uma demorada caçada num velho western sem ritmo, primando pela repetição desmotivada de um enredo fragilizado, que não pode criar um clímax de superação dos pobres personagens infantilizados. Até o encontro com a mulher das cavernas (Ghita Norby) não tem fluidez suficiente para agregá-la como um indicativo maternal do epílogo sugerido. As causas são do modorrento roteiro sem inspiração, com criaturas caminhando sem estrutura psicológica. Há inclusive índios figurando como elementos perversos, em mais um equívoco da direção nesta concessão imperfeita.

Jauja não avança, por isto as digressões com total ausência de profundidade, sem o efeito de romper a continuidade de uma viagem fabular deixa o enredo tênue e vacilante para alternativas enigmáticas naquele ambiente falso como prenuncia os usos e costumes preponderantes ali, com pouca ênfase ao tema proposto, omite os sonhos e ilusões com mais densidade neste filme de resultado pífio e sem autonomia pela busca de um resultado melhor. Inclui-se nas realizações de formato experimental pela desconstrução estrutural de uma narrativa com enormes distorções de um cinema e sua contribuição efetiva, mas pela ambiguidade adicionada deixa ruir uma análise mais profunda que ficou pelo caminho, também.

domingo, 26 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Pequeno Quinquin)


O Pequeno Quinquin

Uma das agradáveis surpresas da 38ª. Mostra de Cinema em São Paulo é o magnífico O Pequeno Quinquin, originalmente foi exibido como uma minissérie de TV, dirigido pelo competente francês Bruno Dumont, que assinou também o roteiro. Tem em sua filmografia A vida de Jesus (1993), vencedor do Prêmio do Júri Internacional na 21ª Mostra e do prêmio Caméra d’Or no Festival de Cannes; A Humanidade (1999), vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes; 29 Palms (2003); Flandres (2006), Grande Prêmio do Júri em Cannes; O Pecado de Hadewijch (2009), Fora de Satã (2011) e Camille Claudel 1915 (2013). Nesta sua última realização o mote da trama é a inusitada descoberta de uma vaca morta preenchida com restos humanos dentro de um galpão alemão abandonado após a Segunda Guerra Mundial. Outros crimes se sucederão na atmosfera criada em torno daquele lugar com seus mistérios contagiantes pelos intrigantes fatos que desfilarão nos 200 minutos que passam rapidamente, com o auxílio da fulgurante fotografia de Guillaume Deffontaine.

Dumont é tipicamente um diretor de ator e seu elenco é basicamente de amadores em seus longas. Anteriormente teve um olhar bem atento para a religião e a fé fervorosa, como no drama sobre a triste trajetória de vida da escultora que empresta seu nome ao título Camille Claudel 1915 (2013), revela-se um estudioso da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, fez uma análise avassaladora sobre o Cristianismo, na qual a devoção e o amor ao propalado Deus pertence ao irmão tresloucado pregando uma igreja que sustenta como o ser maior. Assim foi também com O Pecado de Hadewijch (2010), retrata uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos. Ela, uma católica que tem vocação, mas entra em conflito ao descobrir outras religiões, descobrindo a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema a obstinação pela igreja.

Agora, nesta comédia dramática, vai ao encontro de temas polêmicos, como o racismo e a xenofobia francesa pela visão da infância deturpada pelos adultos, num painel construído com um roteiro bem engendrado, com soluções nada convencionais. A cinematografia francesa é pródiga em realizar filmes sobre crianças, com uma abordagem marcada pelas traquinagens gostosas, mostra o lado sadio e debruça-se sobre os problemas de maneira eloquente, sem as basbaquices encontradas em realizadores norte-americanos que preferem elevar num patamar superestimado ou subestimar no geral. Assim foi com O Pequeno Nicolau (2010), dirigido por Laurent Tirard; François Truffaut, o precursor da Nouvelle Vague, esteve soberbo em Os Incompreendidos (1959) e Na Idade da Inocência (1976), dramas mostrando a transição da infância para adolescência. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme magistral sobre infância. Do Irã temos o não menos excelente O Balão Branco (1995), de Jafar Panahi.

O Pequeno Quinquin flutua da comicidade sutil com leveza para o rigor formal e técnico de situações escabrosas. Os personagens têm vida e demonstram fragilidades, arrogância, luxúria e ego inflado, como o capitão de polícia alemã Van der Weyden (Bernard Pruvost- uma atuação extraordinária) é um atrapalhado nas investigações, tem a autoestima nas alturas, um careteiro com tiques nervosos, embora inteligente é um paspalho que obtém poucos resultados práticos, numa bela sátira ao Nazismo pós-guerra. Lembra em algumas cenas o inesquecível inspetor Jacques Clouseau (Peter Sellers), da série A Pantera Cor-de-Rosa. O parceiro de Weyden é o folclórico Carpentier (Philippe Jore), um exibicionista no trânsito, com seus dois dentinhos apenas cria uma figura caricata alemã, simbolizando assim como seu colega o pior da herança que Hitler deixou. Enquanto buscam respostas, eles são seguidos pelo travesso Quinquin (Alane Delhaye), filho de uma família enigmática e racista, numa singular metáfora sobre a França conservadora com uma população sulista xenofóbica. Todos os personagens que mantêm algum tipo de relação com imigrantes impuros raciais terão seus destinos ceifados tragicamente, como uma dádiva maldita deixada pela guerra. O garoto tem ódio nos olhos e uma aversão pelos muçulmanos que entende não coadunar com os franceses de olhos azuis. Cria confusão por onde passa junto com seus amigos, tem uma namoradinha (Lucy Caron) que toca trombeta e também será uma das que terá um familiar morto estupidamente.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica e demolidora sobre um ambiente carregado de certa forma, em especial para os imigrantes e os que ousam avançar nas relações pessoais numa região conservadora, serão punidos para dar o exemplo de moralidade, como em O Porto (2011), de Aki Karismäki, ou no instigante Bem-Vindo (2009), de Philippe Lioret. Drumont coloca as relações infiéis e os relacionamentos com imigrantes num plano de absoluta discórdia de uma moral velhaca ultrapassada, como se lançasse um olhar de misericórdia e esperança, sendo realista e menos otimista que Claire Denis em Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke. Um soberbo questionamento sobre a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças também pela Europa. Um libelo contra a intransigência racial dos povos.

sábado, 25 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência)



Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência

Surge um dos melhores filmes da 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o notável Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência faz uma reflexão profunda sobre a existência e o sentido da vida, seguindo o título já analítico da comédia dramática. Foi o grande Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, com a impecável direção e roteiro do sueco Roy Andersson, que realizou seu primeiro filme ao se formar em cinema, no ano de 1969, com A Swedish Love Story. Dirigiu vários curtas com o estilo de tomadas longas. Na Mostra de São Paulo esteve presente com Vocês, os Vivos (2007) e Canções do Segundo Andar (2000), no qual venceu o Grande Prêmio do Júri em Cannes.

Com uma trama aparentemente simples, mas logo se evidencia a complexidade de um tema filosófico sobre o existencialismo através de dois homens cansados da vida que estão viajando a negócios. Ao melhor estilo de Groucho Marx, um comediante norte-americano celebrizado como um dos mestres do humor, Sam (Nils Westblom) e Jonathan (Holger Andersson) são dois vendedores ambulantes de artefatos engraçados que estão cansados do mundo. Uma bela construção de dois personagens consistentes dentro de suas fragilidades emocionais, vencedores ou vencidos, não importa, diante das circunstâncias que levam a vida. É um salto sobre o caos no mundo moderno, quase que apocalíptico pela sugestão derrotista da dupla em estado de pura reflexão sobre o futuro da humanidade.

István Borbás e Gergely Pálos são os responsáveis pela bela fotografia esmaecida em tons pastéis com visão de dor e tristeza, dentro do silêncio onipresente ambientadas nas cenas de elipse criativa que dá brilho aos olhos, dentro do apreciável formalismo de um universo deslumbrante em que o cineasta dá uma visão de esperança, embora minúscula, mas que faz os dois desencantados enxergarem um mundo repleto de pequenos momentos únicos no cotidiano, com um bálsamo de sonhos para dar imaginação às fantasias. Tudo é muito complexo dentro de uma analogia que vem das boas lembranças de grandeza de uma vida tênue pelas fragilidades do ser humano vulnerável.

Por vezes nem parece uma comédia dramática, ao oscilar para o drama melancólico, faz deste um filme maior pelo humor corrosivo, satiriza o rei e sua arrogante tropa que vão para a guerra e voltam alquebrados, embora mantenha a pomba dos superiores que perderam, com a empáfia dos sangues azuis hipócritas e tiranos. Aqueles dois homens moribundos a tudo assistem como fantasmas ambulantes que vendem uma alegria inexistente para os fregueses, pois paradoxalmente são tristonhos e visivelmente pessimistas. Comercializam dentes de vampiros, sacos de risadas e máscaras horrendas que assustam mais do que provocar risos. Ninguém acredita neles e nas mercadorias ultrapassadas e ingênuas, sequer na forma de alegoria como transposição à civilização.

O drama Winter Sleep (2014), do turco Nuri Bilge Ceylan, faz uma abordagem do mesmo tema existencial, aprofunda-se nos diálogos doloridos com questionamentos implacáveis, através do extremo realismo de cenas que retratam os efeitos do tédio. Já Andersson faz um filme complexo que deriva para o desencanto humano e a civilização colocada em xeque, como na cena do macaco sendo torturado psicologicamente, que remete para o início da criatura, hoje hostil e perversa, ligada num celular discute a relação e pouco se importa com o animal no estado de vítima. Ou ainda no pesadelo do protagonista que sonha com os negros sendo queimados vivos dentro de um tambor enorme com esboço de sistema de som, saindo fumaça preta de um lado. Ou seja, desta vez não foi o Nazismo embrutecido de Hitler que pratica o holocausto, mas os escravos sendo chicoteados covardemente que ardem no fogo do inferno.

A trilha sonora é também fundamental e preponderante para o desenvolvimento do clímax entediante que sufoca como se o espectador estivesse num claustro. Mas o diretor compensa com um humor sutil na deliciosa paródia musical que soa como o hino religioso Glória, Glória, Aleluia. Outro achado da direção é o personagem que ouve uma canção no quarto do hotel até a madrugada, desata numa melancolia incontrolável, fica triste porque não quer se encontrar com os pais no paraíso, refuta o reencontro e desaba como um farrapo. Não é à toa o filme ter no prólogo três atos sobre a morte, anunciando situações como esta no inovador e singular roteiro que dribla a plateia com tiradas bem-humoradas, para depois jogá-la novamente para a reflexão da existência e seu sentido.

A dor da vida e do cotidiano com escassos recursos financeiros, tanto pode ser num dos tempos indicados: 1943, como nos dias atuais. Um filme perturbador pelo dolorido sentimento de derrota, em que há um leve sorriso das situações embaraçosas que se misturam. A câmera que percorre o cenário silenciosamente deixa espaço para meditar sobre um profundo mergulho na alma partida e sua lucidez perdida neste fabuloso Um Pombo Pousou...de emoções contidas e equilibradas sem apelar nunca para o melodrama.

Mostra de Cinema São Paulo (Alentejo, Alentejo)

























Alentejo, Alentejo

Vem de Portugal outro interessante filme na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Alentejo, Alentejo, com direção e roteiro do paulistano Sérgio Tréfaut, ex-assistente de vários diretores portugueses. Estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009), tendo no longa-metragem Viagem a Portugal (2011) a única experiência na ficção. O documentarista faz um retrato digno de dezenas de grupos amadores que se reúnem regularmente na cidade que dá título ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiam antigos cantos polifônicos e improvisam modinhas contemporâneas, numa instigante viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes, através da bela fotografia de João Ribeiro.

O “cante” nasceu nas tabernas e nos campos, entre camponeses e mineiros, repassado ao longo de várias gerações como um criativo e real lamento choroso das canções. Nas últimas décadas, novos grupos apareceram na periferia de Lisboa e em diversos países para onde os alentejanos emigraram. Miguel Gomes realizou o similar magnífico Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com duas horas e meia de duração, recebeu inclusive o prêmio da crítica na Mostra de São Paulo, com filmagens em Argamil, na região central de Portugal, próximo de Coimbra. Apresentou inicialmente um país não globalizado, em que o mês de agosto é marcado pelas festas típicas nos bucólicos lugarejos entre a serra e o interior, com seus grupos musicais tradicionais nos festivais de verão. Buscou uma banda folclórica que aceitou ser filmada em suas atividades e apresentações, uma boa mescla com suas complexidades que lembrou o admirável Nashville (1975), de Robert Altmann, que tinha como palco vários acontecimentos durante a Guerra do Vietnã.

Também Manoel de Oliveira faz uma pequena incursão pela cantoria folclórica em O Estranho Caso de Angélica (2010), onde a música é cantada em forma de fado pelo capataz para os lavradores num trabalho subalterno e arcaico, mas determinados em aplainar as terras dos vinhedos com as foices para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias que emolduram o painel bonito, num canto melódico e triste de uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva. Tréfaut cria um clima saudável na inversão de papéis, mistura o realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos da ficção para o puro documentário e vice-versa.

O cineasta peca por cenas longas com explicações didáticas, deixa o ritmo quebrar pela excessiva conversação repetitiva, mas não invalida esta boa contribuição sobre o folclore e o desemprego no país, contadas com ardor e dor, falando da morte que se aproxima ou já deixou rastros. O diretor uruguaio Ricardo Casas realizou com melhor resultado objetivo em El Padre de Gardel (2013), sem falar no estilo do veterano documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, morto neste ano de forma trágica, o melhor de todos, pela genialidade na técnica de entrevistar e ouvir os personagens do povo no seu vasto painel humano. Deixava fluir o tema com brilho e elegância.

Alentejo, Alentejo é um filme preocupado com o povo que sofre com o desemprego torturante que reina naquela região. Ali há muitas terras improdutivas que poderiam dar o pão que vem da terra, ressaltado com entusiasmo nos cânticos tradicionais que enaltecem a situação caótica, através de uma crítica pontual ao sistema de governo desumano implantado sem dar alternativas às crises recentes em toda Europa. Torna-se mais palatável quando as crianças se manifestam em aula e dizem que seus avôs foram embora para o exterior, buscando emprego na França e Suíça.

Eis um bom filme que contribui neste registro interessante sobre a cultura e a história dos alentejanos. São jovens que se esmeram para seguir o legado dos pais, sem se importarem em divulgar o cântico dos sábios velhos sonhadores nativos daquele lugar. São bem eficazes os moradores contando suas histórias e situações típicas, registrando tudo aquilo que achava interessante sem ter um personagem central, captando sons e as belas imagens da região com seus locais pitorescos que fundamentalmente gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares com as idiossincrasias regionais. O melhor é se deixar levar pelas melodias lusitanas com sua tradição.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (O Reino da Beleza)



O Reino da Beleza

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama O Reino da Beleza, com direção e roteiro do consagrado canadense Denys Arcand, que venceu o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes com O Declínio do Império Americano (1986). Dando continuação filmou As Invasões Bárbaras (2002) que abocanhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Participou com estas duas obras-primas na Mostra de São Paulo, para retornar na edição 31 com A Era da Inocência (2007). Agora neste último longa retrata uma grande paixão de um homem casado que conhece por acaso uma mulher linda, intrigante e sedutora como um combustível que faltava para explodir uma grande paixão, que revira sua vida e o abala psicologicamente, uma espécie de atração fatal.

Arcand é um cineasta preocupado basicamente com as mazelas sociais, entre as quais as más condições hospitalares, além das relações humanas familiares, como vista na temática de As Invasões Bárbaras que se dá em torno de um historiador em fase terminal de um câncer, no qual o filho tenta proporcionar ao pai um final de vida melhor, com menos sofrimento. Durante o filme se explicita o conflito entre os dois que há tempos não se viam e que, em razão das circunstâncias, são obrigados a se reencontrar. À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, busca encontrar a paz no pós-morte com a ajuda contraditória do filho ausente, sua ex-mulher e velhos amigos.

Mesmo sendo uma realização menor em sua filmografia repleta de obras magníficas, o filme atual está bem acima da maioria das mediocridades que são despejadas no mercado cinematográfico. Tem uma trama gostosa e densa ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça. Luc (Éric Bruneau) é um jovem arquiteto talentoso, que tem uma vida aparentemente tranquila com a esposa, Stéphanie (Mélanie Thierry), em um lugar paradisíaco nas imediações da aprazível Québec. O casal tem uma casa moderna, são atléticos e praticam vários esportes como tênis, caça e golfe, participam de jantares com os seletos amigos de sua roda social, levam uma rotina agradável como poucos. Num dia qualquer ele aceita ser o membro de um júri de arquitetura em Toronto. Lá, encontra Lindsay (Melanie Merkosky), a bela e misteriosa organizadora de eventos em Toronto, que fisga o coração e a alma do marido fiel, até ali.

O novo filme de Arcand é bem coadjuvado pela deliciosa trilha sonora de Pierre-Philippe Cote e com a primorosa fotografia de Nathalie Moliavko-Visotzky, captando imagens em lindas locações, como os lagos, campos, rios com embarcações suntuosas, estações de esqui sendo bafejadas por nevascas, tudo com belezas naturais de um Canadá festejado. Com uma narrativa pontuada pelo drama pouco denso familiar, após os acontecimentos do evento e as descobertas do protagonista, de que sua vida nunca mais será a mesma, o filme dá uma oscilada no meio pela frieza nórdica, faz perder um pouco o ritmo, para retomar o clímax e acelerar na reta final, com um pouco mais de emoção pela dor da possível perda se confrontando com o sentimento de culpa pela traição, seguido da tentativa de suicídio.

O drama traz no seu bojo as nuances de um romantismo desbragado, com boa dose de lirismo e sutilezas, mesmo que em situações indesejadas juntas de um egoísmo, sem grandes reviravoltas e de pouco argumento reflexivo quanto ao casamento na sua essência e os relacionamentos extraconjugais do casal, especialmente do marido que valoriza a beleza plástica na sua profissão, incluindo-se mulheres e casas bem definidas como valoração de coisas supérfluas. A trama no desfecho revela como uma ode ao Don Juan na nova conquista amorosa e a criação material quase que num mesmo plano. As crises da mulher bissexual no aspecto de depressão e transtornos de pânico avançam lentamente, embora haja delírios e fantasias pouco consistentes, ficam pelo meio do caminho nas perturbações psiquiátricas incapacitantes que afetam diretamente a relação conjugal, mas caracterizadas sem muito elã.

O Reino da Beleza pode não ter um roteiro de grande complexidade, mas faz pensar sobre as futilidades impostas sobre a beleza como objetivo de discórdia e a transmutação da vida aparentemente feliz de um casal, teoricamente, é claro. O epílogo em Paris é antecipado pelo prólogo no reencontro dos velhos e apaixonados amantes. O fim do casamento não chega a ser questionado com profundidade, deixando interpretações evasivas sobre o marido que se esconde para aparentar uma relação normal, mesmo levando sua vida pela metade até certo ponto, como a corrosiva cena em que abandona a amante no luxuoso hotel e vai se refugiar num quarto de motel modesto, diante do velho e surrado sentimento de culpa.

O diretor deixa para o final para uma tentativa de realizar um bom ensaio sobre as novas conquistas, sem que haja o rompimento do vínculo matrimonial, permanecendo o amor acima de tudo. Não há muita poesia, mas tem boa dose de cenas apimentadas de prazer nas cenas tórridas de sexo explícito. Traição e culpa são abordados com alguma desenvoltura, embora com distanciamento, como decorrências de um casal que mora junto, diante do inesperado choque do surgimento de outras pessoas envolvidas no seu cotidiano, de lado a lado. Há um bom realismo na intimidade com o espectador nas cenas de tristeza da perda iminente de um grande amor e a solidão que se escancara como resultado final, mas no seu contexto há muito mais do que sexo livre, afasta os preconceitos repressivos na abordagem, mesmo que desemboque em rupturas do cinismo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Que Horas São no Seu Mundo?)



Que Horas São no Seu Mundo?

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama Que Horas São no Seu Mundo?, do estreante em longas Safi Yazdanian, que também assina o roteiro. Não faz parte dos conterrâneos do cinema que tinham como cenário o interior do Irã, predominando o chão batido de terras poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).

O promissor Yazdanian se aproxima em muito de Asghar Farhadi, autor de A Separação (2010) que demonstrou muita simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política na extraordinária metáfora do regime ditatorial, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente pelo marido e, principalmente, por O Passado (2013) obra voltada essencialmente para as coisas do cotidiano de seu país, embora tenha filmado na França, bem distante de seu povo, não se afastou das relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade de uma temática consistente dos planos intimistas do cineasta que se detém mais na abordagem moral e ética familiar.

Que Horas São no Seu Mundo? é um drama rodado num cenário urbano de muito silêncio e reflexão, com uma trama bem estruturada na protagonista Goli (Leila Hatami- de grande atuação mesclada com uma beleza deslumbrante, a mesma de A Separação) que, de uma hora para outra, decide regressar ao Irã depois de 20 anos vivendo em Paris. Ao pousar em Rasht, sua cidade natal no interior do Irã, ela é recebida por Farhad (Ali Mosaffa é o mesmo que brilhou em O Passado), um fabricante de molduras que dá aulas de francês como entretenimento. Embora pareça conhecê-la muito, ela não tem nenhuma lembrança do vizinho.

A tensão inicial estabelecida entre a recém-chegada e o conterrâneo com aspecto de espião está ligada diretamente num passado de um romance que não aconteceu numa relação improvável no futuro. O sutil conflito instalado trará muitas revelações do passado e feridas abertas sem cicatrizações serão removidas com boa dose poética e sensibilidade para esclarecer alguns mal-entendidos colocados em xeque para os personagens conviverem e discutirem as nuances marcadas pelo tempo. A chegada de Goli no Irã é semelhante à de Ahmad na França, em O Passado. Ambos despertaram alguns segredos guardados e jogados para baixo do tapete. Farhad nutre pela conterrânea uma paixão doentia decorrente de uma relação ensandecida advinda de uma psicopatia social controlável.

Há um olhar de interrogação e dúvida no retorno de Goli nesta viagem sentimental, uma espécie de reminiscência para um mergulho no passado, com circunstâncias alteradas na trajetória pelas descobertas que se revelam. São visitas ao barbeiro; um velhinho esclerosado como seu país, pai de uma amiga; bem como a visita clássica ao cemitério para rever o túmulo da mãe. Mas o personagem Farhad é determinante para o andamento da história, pois ele sabe tudo sobre sua paixão secreta, o grande amor platônico guardado em segredo, como as lembranças da sala da aula, em que eram colegas e dali nasceu o dolorido e avassalador vínculo emocional imensurável. Uma patologia de uma doença chamada amor, embalada por uma fascinante trilha sonora assinada por Christophe Rezai.

Nos dois filmes, O Passado e Que Horas São no Seu Mundo?, há uma grande semelhança conceitual com a figura dos protagonistas: um sai do Irã, enquanto o outro retorna para lá, porque um tem o sentimento da volta sentimental, enquanto o outro quer ficar bem longe na busca da liberdade como forma de independência. O encontro na velha casa da protagonista terá as confissões e os detalhes de toda uma vida afastada dali. Ela se assusta num primeiro momento, mas como um lindo poema que se traduz para decifrar um enigma de uma relação inimaginável por falta de estreitamento de um vínculo, que por parte do dono da casa de molduras em nada mudou com a saída da amada para o exterior. Pelo contrário, aumentou ainda mais o seu interesse.

O drama retrata um presente muito atual com verdades irrecuperáveis para uma análise sobre a emoção contida derivada de uma situação peculiar para a complexidade do enredo e dos personagens sob uma chuva poética que cai lentamente no silêncio daquele lugarejo bucólico que irá propiciar um clima de rara beleza. Digno de um cinema voltado para a ternura e o afeto num país envolvido constantemente por conflitos internos de lutas religiosas e políticas, sob o manto de um regime ditatorial, tendo os direitos femininos restritos. Mas para contrabalançar há vida, amor e dignidade naquele povo sofrido. Há uma reflexão sobre uma parte perdida do que ficou para trás, ressurge como esperança para acariciar ego e alma, sem culpa ou arrependimento. Todavia, nem mesmo o que há como elemento forte de ligação justifica o que ficou à deriva. Repete-se o olhar realista para um mundo em ruínas, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta significativa obra contextualizada.

Mostra de Cinema São Paulo (A Ilha do Milharal)


A Ilha do Milharal

A 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo tem no ótimo filme A Ilha do Milharal, o grande representante da Geórgia, no segundo longa-metragem de George Ovashvilli, que também assina o roteiro conjuntamente com Nuzgar Shataidze e Roelof-Jan Minneboo, tinha realizado anteriormente The Other Bank (2009). Venceu com seu último filme o prêmio desta categoria no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary, na RepúblicaTcheca. Aborda os conflitos de maneira criativa um fato triste entre duas nações em permanente disputa, tendo no meio dois seres vítimas do descalabro social.

A trama gira em torno de um velho camponês georgiano (Ilyas Salman), que se muda com a neta adolescente (Mariam Buturishvili) para uma pequena e deserta ilha no meio do Rio Enguri, cenário de sangrentas lutas, que forma a fronteira entre a Geórgia e a Abecásia, esta em ampla luta para separar-se da Rússia e buscar uma república independente. O clima é de tensão permanente na região em conflito entre as duas nações que se mantém desde a guerra de 1992 a 1993. Mas lá o velhinho constrói sua cabana paupérrima com cobertura de capim, paredes de madeira em mau estado, com um piso direto na terra. Os soldados estão espalhados por todos os lados e a menina é alvo de muitos deles, por olhares e sorrisos candentes. Até que numa noite qualquer aparece um deles ferido (Irakli Samushia), causando alguns transtornos e perseguição de grupos contrários. Mas era só o começo de uma situação incontrolável, porque o drama sobe com o tensionamento do clímax bem conduzido.

Avô e neta aram o solo e semeiam com carinho o milho na boa terra, que logo germina e proporciona uma colheita invejável. Aquele rio tem fama de destruir tudo o que nele é construído, devido ao seu ciclo natural das águas pelas enxurradas, mesmo alertado pelo policial-chefe da guarda costeira russa (Tamer Levent) sobre os perigos iminentes do local, ali instalados refutam sair e levam uma vida aparentemente tranquila. Toda primavera, o rio leva o solo fértil entre os países conflitados, criando pequenas ilhas, pequenas terras de ninguém, como determina o ciclo natural das águas daquela região. A garota se transforma em uma mulher, o milho amadurece e a enxurrada vem com fúria devastadora pela tempestade aguardada na paradisíaca ilha que sofre com a fúria incontrolável da natureza, diante dos fatores climáticos externos que colocam mais desgraça no seio familiar com danos trágicos.

Ovashvilli tem méritos inegáveis na construção magnífica deste drama social com deformações da guerra. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis condizentes daquele universo em luta constante. Há um cenário bucólico, mas paradoxalmente intrigante pelo ponto de vista do suspense sobre o dia inesperado do amanhã, quase que assustador, pois traz uma violência contida que brota das árvores e do silêncio sepulcral do rio, como um ataque iminente na espreita daquele lugar aprazível aparentemente. É deslumbrante as imagens captadas pela fotografia da competente Elemér Ragályi, pois solidifica o enxuto roteiro elaborado por um naturalismo de fascínio compensador pela artesanal edificação da casinha modesta, desde o lançamento da simbólica pedra fundamental com ternura e afeto, até a complementação da obra que se mistura na natureza.

A Ilha do Milharal é altamente interessante como contribuição significativa pelo cinema, com uma estética singular. O realizador busca elementos que indicam uma crise que dá rumo e destino após a procura da sobrevivência na ilha da esperança, mas o que está em jogo é uma guerra interminável vista como um despropósito aterrador que danifica e esmaga os sentimentos humanos de vidas inocentes sendo ceifadas. Os horrores das batalhas causam uma falta de comida imensurável para os povos devastados, resultante de governos belicistas pelo mundo, mais preocupados com interesses próprios.

O drama comovente retrata os efeitos de disputas encarniçadas sem vencedor, num cenário em que está presente o rigor militar brutalizado como besta humana, como na figura simbólica do soldado que comanda a pequena tropa no seu barco de combate. Uma bela metáfora da sociedade pelo olhar melancólico da garotinha e do desconfiado avô e seu sofrimento de dor pela solidão e a fome por falta de subsistência, que encontra guarida no milho. O filme fascina pelo movimento interessante da câmera em bons planos longos, com imagens de um neo-realismo de grandes filmes do cinema.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Força Maior)

















Força Maior

Vem da Suécia a comédia dramática Força Maior, quarto longa-metragem de Ruben Östlund, também responsável pelo roteiro, que venceu o prêmio de melhor filme do júri da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2014. Está com boa acolhida de púbico na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, ao retratar a atitude falseada da verdade com efeitos desastrosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem noção de lógica e equilíbrio, predominando o destempero pela facilidade da verve acusatória sem medir as consequências quase que trágicas do âmbito familiar, embora distante e ausente dos personagens.

A premissa deste longa com intenções sérias é boa, mas pela falta de ritmo equilibrado da mescla de uma narrativa dramática com o senso de humor transforma numa babel, que perde o foco e a o objetivo proposto. Salva-se a estonteante fotografia de Fredrik Wenzel, com imagens dignificantes da estação de esqui e os gelos em flocos. O prólogo é a chave do desenrolar e o estopim da trama, com a avalanche que se aproxima de um grupo de turistas e desaba sobre a varanda de um restaurante nos Alpes franceses frequentado por esquiadores amadores. É lá que o casal de classe média alta Tomas (Johannes Kuhnke) e Ebba (Lisa Loven Kongsli) resolve passar suas férias com os dois filhos menores. A ideia é fugir do trabalho e da rotina, para se divertir e gozar as benesses daquele lugar paradisíaco para usufruir e esquecer tudo na vida.

No primeiro dia das férias, que serão grifadas como atos teatrais em uma semana, acontece um almoço que quase vira tragédia e causa pavor pela ameaça de serem todos soterrados vivos. Mas terá desdobramentos até o epílogo da história, com acusações inconsequentes, teses escabrosas e baratas, além de uma esquizofrênica terapia grupal desmedida e sem critério algum, em que o diretor solta de maneira desenfreada o elenco, com equívocos se sobrepondo, quase derivando para uma comédia pastelão.

Ebba afirma de pés juntos que protegeu os filhos e gritara por socorro para o marido, que teria fugido do local em desabalada corrida para bem longe do acidente, mais preocupado em salvar seu celular. Tudo é muito rápido e a dúvida persiste, méritos para o diretor neste aspecto pontual, que transmite a apreensão dos personagens pelo perigo iminente, deixando claro que o instinto de sobrevivência é mais forte, mesmo em determinados momentos na reação com o coletivo. A crise do casal explode e as situações que advirão nos demais dias serão um verdadeiro bate-boca e um flagelo em pleno lazer. Outros dois casais serão envolvidos na trama e darão suas opiniões em forma de escracho e pouca seriedade pelo cineasta que joga fora seu projeto arquitetado como reflexão do microcosmo familiar colocado em xeque por terceiros. Há desconforto para todos e as conversas íntimas confrontam o marido como um algoz condenado diante de pessoas estranhas, em situações que vão constranger e humilhar, de certa forma.

Não há rigor formal em Força Maior, embora a frieza das cenas sejam necessárias, mas o distanciamento crítico ao casal de protagonista é raso ou evapora pela falta de segurança e capacidade de manter um ritmo adequado, pouco se aproveita das mesquinharias ditas. Os personagens ficam à deriva e perambulam como fantasmas perdidos no turbilhão da parafernália desequilibrada imposta sem critérios na trama. Quando o humor involuntário surge, mais afunda a reflexão, a galhofa é irritante e soa como basbaquice desinteressante ditas excessivamente por uma grosseria distante da bem-vinda sutileza, o que faz beirar ao ridículo.

Östlund abusa das muitas concessões, bem que poderia ter se aprofundado no tema da depressão, por exemplo, tendo em vista que Tomas mostra-se cada vez mais envolvido com o sentimento de culpa e desaba diante do desprezo da mulher e dos filhos. A ideia no bojo do filme de provar para todos que não é um pusilânime, inclusive aos familiares, também não é suficientemente bem elaborado no psicologismo de plantão. Fica vago e solto, com poucas nuances marcantes de uma abordagem consistente. Sente-se coagido e julgado como se estivesse numa vara de audiência pública de um tribunal inquisidor para defender-se das acusações, mas falta também convencimento da frouxa direção. Descamba novamente para o escárnio, como na cena da tortura moral sofrida que desata num choro dramático do marido que provoca risos. A ausência do amor familiar é a reflexão que deveria ter deixado como contribuição, mas pelos equívocos cometidos ruíram pela falta de seriedade de uma análise mais profunda que ficou pelo caminho, talvez tragada pela avalanche.

Mostra de Cinema São Paulo (O Segredo das Águas)


O Segredo das Águas

Outro excelente filme se fez presente na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o drama existencialista O Segredo das Águas, com direção e roteiro de Naomi Kawase, que venceu o Câmera de Ouro para estreantes em Cannes com o longa Suzaku (1997), foi indicada quatro vezes ao Palma de Ouro, mas levou o Prêmio da Crítica em 2007 com Floresta dos Lamentos. Este seu último longa tem toques autobiográficos da cineasta japonesa que foi criada pela avó, porém após a morte dela é sua primeira filmagem, baseada na descoberta de que a bisavó era uma nativa xamamista, uma pessoa chamada para suas tarefas espirituais reconhecidas pelos vizinhos da comunidade.

A religião está muito próxima e faz o elo de ligação entre vivos e mortos, pelo olhar de Naomi, que difunde nesta notável obra o aprendizado sobre o além, nesta trama centrada na costa marítima ao sul do Japão, na Ilha de Amami-Oshima, onde as tradições que envolvem a natureza são milenares. A degola de um cabrito na cena inicial, que será repetida com detalhes doloridos e aterrorizantes no meio do longa, é para explicar a subida para o infinito da alma que se desprende da matéria. Durante uma noite de danças tradicionais em agosto, Kaito (Nijiro Murakami), um garoto de 16 anos, descobre um cadáver flutuando no mar. A pretensa namorada dele, Kyoko (Jun Yoshinaga), vai tentar ajudá-lo a compreender essa misteriosa morte, que terá desdobramento pela doença terminal da mãe da menina (Miyuki Matsuda), embora ainda de meia-idade está prestes para partir e deixar seus ensinamentos e poderes mediúnicos sobre a eternidade e a transcendência pós-morte do corpo para a energia em forma de espírito que se manterá vivo, explicado pelo pai da jovem (Tetta Sugimoto).

Há uma grande dificuldade em Kaito tornar-se adulto e libertar-se da mãe, para experimentar as sutis relações entre vida, morte e amor. Chega a ter, inclusive, sua sexualidade posta em xeque de forma discreta pelo futuro sogro, diante da recusa contumaz em assumir o namoro de vez com Kyoko. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis diferentes num universo voltado para a reflexão. Mas a paradisíaca ilha tem seus mistérios e a fúria incontrolável da natureza, como o vento uivando vindo do mar como tempestade devastadora para pulsar as frondosas e centenárias árvores. São fatores climáticos externos que vêm corroborar ainda mais com as lendas e divagações religiosas amplamente difundidas, com teses e sugestões definitivas sobre o tema.

O cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a violência que aflora entre as árvores e o silêncio do mar naquele lugar aprazível aparentemente. É deslumbrante nas imagens captadas pela fotografia de Yutaka Yamazaki, como elementos necessários e exponenciais para a solidificação do fascinante roteiro e seus intrincados desdobramentos, num clímax de tensão, ternura e afeto que se misturam com a raiva do garoto e sua obsessão pela integridade física dos pais, especialmente da mãe já separada e do pai que vive novo relacionamento em Tóquio. Ela é vista pelo olhar do filho como uma mulher casta e inatingível, contrariando a analogia do pai de Kyoko, ao explicar a natureza e sua força incontida, como alegoria dos desejos e instintos irrefreáveis daquela mulher, conduz de maneira adulta para libertar da obsessão que faz Kaito refém e prisioneiro do sexo, prejudicando sua própria atividade e interesse pela libido latente da adolescência em ebulição.

O drama não dispensa o depoimento do velho pescador visionário que afirma ter visto na garota a própria imagem de sua bisavó saindo mar. O surfista morto terá uma revelação no desabafo do menino, assim como haverá teorias sobre o surfe e a última onda do mar como sendo de igualdade, para estarem juntos na mesma plenitude, como filosofa alguém entendido na área. O Segredo das Águas reflete sobre a vida e seus prazeres sem dissociar os sentidos da existência com a morte depois da vida e o caminho da eternidade recheada de mistérios do além. Filosofia e razão estão acima dos instintos de perpetuação de espécie, mas são usadas como forma de cativar pelo lado religioso, acreditando ou não, eis um filme magnífico e altamente interessante como contribuição singular para aquecer almas e pessoas frias e distantes, como uma função edificante do cinema.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Com Outros)


Com Outros

O Irã se faz presente na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo através do pouco eficiente filme Com Outros, do jovem cineasta estreante em longas Nasser Zamiri. É uma abordagem intimista de pouco lirismo sobre maternidade e prisão num mundo em transformação cada vez mais violento e desregrado, ao expor a desonra numa família muçulmana com seus dogmas e tradições culturais, diante da gravidez inesperada da esposa do companheiro preso em Teerã, o que não é muito normal para uma mulher, em face da intransponível fé religiosa.

O ponto de partida está centrado no relacionamento de Arezoo (Leila Zare- a linda atriz iraniana) com o marido Amir-Hossein (Babak Hamidian). O casal entra em crise quando descobre que não pode ter filhos. Há uma obstinação desenfreada da jovem esposa em ter uma criança, custe o que custar, com o apoio explícito do esposo, porém sob a vigilância de sua mãe intrometida e sempre pronta para fustigar a relação. Só existe uma solução: uma barriga de aluguel, para isto convence Tahereh (Hengameh Ghaziani), amiga próxima e colega de trabalho de um hospital, que pode abrir um novo horizonte na vida deles. Mas quando Yaghoub, o ex-marido de Tahereh, sai esporadicamente da prisão, haverá uma complicação familiar insustentável.

Um filme que fala da obsessão e o amor incondicional pelo nascimento de um filho, uma contida ternura entre o casal e a dificuldades de tomar esta atitude mais ousada. Entre eles está o sogro e ao mesmo tempo tio da mãe de aluguel com seu carinho pela mulher que sustenta bravamente os dois filhos da relação, por culpa dele que aproximou e incentivou um casamento que está marcado pela separação, diante do desatino de Yaghoub que cumpre uma pena por um crime não revelado. Uma trama que parece ingênua, quase simbólica de primos apaixonados ou casados por circunstâncias.

É uma singela amostragem pouco satisfatória contra a opressão machista diante da posição da mulher num papel meramente secundário, sem nenhum poder de interferência ou tentativa de marcar posição na sociedade muçulmana dominada eminentemente pelos homens. A atitude do casal em busca do filho é consciente dos terríveis riscos que correm pela quebra dos tabus e regras sociais. Há um romantismo inconsistente entre os dois e tudo vai bem até a descoberta da gravidez e a recusa em esclarecer ou assumir a situação caótica proporcionada.

O clima de tensão é frouxo, o diretor estreante vacila e não avança, por isto nada acontece. Fica a sugestão de optar entre a honra da família para manter a preservação como se fosse uma instituição, ou o fato escondido sem muitas digressões com total ausência de profundidade, sem o efeito de romper a continuidade de uma farsa pela mudança do enredo tênue e vacilante para alternativas esclarecedoras naquela comunidade conservadora e obediente aos dogmas religiosos, além dos tradicionais usos e costumes preponderantes.

Um drama com uma linguagem simples e ineficiente, com um poder de fogo menor ainda, em que o cineasta reflete a condição feminina de forma precária. É dada pouca ênfase ao tema proposto, omite a voz da mulher que poderia ter sonhos e ilusões. Mesmo que esteja na condição de vítima diante da protagonista, uma pessoa egoísta, mas que age com dedicação e determinação dentro de uma sociedade conservadora pelos bons costumes na predominância de atitudes e decisões eminentemente dos homens, inexiste a contestação mais específica.

O filme Com Outros não está à altura das obras iranianas voltadas para uma análise social digna desta escola exemplar de cinema, tendo em vista uma trama com o olhar feminino sem partir para o confronto ou colocar a dualidade de choque de ideias e posições naquela sociedade estereotipada sobre a cultura e a violência diante da desonra familiar pela gravidez, não é uma proposta a ser discutida para romper a barreira da passividade feminina. É um equivocado relato sobre a mulher ameaçada constantemente de estar infringindo as leis machistas nesta obra de resultado pífio e sem autonomia pela busca da dignidade, incluindo-se nas realizações de formato experimental pela desconstrução estrutural de uma narrativa com grandes distorções.

Mostra de Cinema São Paulo (Winter Sleep)


Winter Sleep

Surge o melhor filme até agora da 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o monumental drama Winter Sleep faz uma reflexão magnífica sobre a existência e seu sentido na essência da vida, com a direção do brilhante e já consagrado turco Nuri Bilge Ceylan, que também assina o roteiro com Ebru Ceylan. Um filme de 196 minutos pode assustar no primeiro momento, mas surpreendentemente flui e anda como se fosse um média-metragem. Venceu o Palma de Ouro e o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes deste ano. O cineasta realizou ainda Distante (2002), vencedor como melhor ator e Grande Prêmio do Júri de Cannes daquele ano. Com Climas (2006) levou o Prêmio da Crítica da 30ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Melhor diretor em Cannes pelo festejado Três Macacos (2008) e com Era Uma na Anatólia (2011) abocanhou novamente o Grande Prêmio do Júri em Cannes e Prêmio da Crítica da 35ª. Mostra de São Paulo.

Ceylan arrasou no estupendo Era Uma na Anatólia, uma mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação policial de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente arcaicos. Solidificou-se como um diretor preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está presente e marcante no caos que se instala nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas. Para muitos o melhor de todos, mas com seu último longa já haverá controversa, diante do mergulho reflexivo do existencialismo.

A trama é complexa e repleta de filosofia sobre a vida e ensinamentos que se aprendem no dia a dia. Há um mergulho estupendo no âmago para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração sangrando. Aydin (Haluk Bilginer- interpretação antológica pela desenvoltura e convencimento), é um ator turco aposentado que comanda um hotel na região da Anatólia central, tem fama de dominador, é chamado de senhorio pelos inquilinos, bate de frente com Hidayet (Ayberk Pekan), o pai do garoto que apedreja seu carro na estrada. Mantém uma relação fria e distante com a mulher Nihal (Melisa Sözen- de beleza estonteante que gravita com seus olhos graúdos, tem atuação impecável e lembra a atriz argentina Martina Gusman), de quem ele se afastou emocionalmente, levam um casamento de aparências, mas nutre um ciúme forte por ela, principalmente pelo professor Ismail (Nejat Isler). Tenta controlá-la e mantê-la afastada de seu trabalho comunitário, o que irá gerar mais desavenças e crise no casal.

O protagonista vive às turras com a irmã Necla (Demet Akbag), que ainda sofre com seu divórcio recente. O inverno fará com que Aydin simule partir dali para Istambul, mas irá mesmo beber vinho e filosofar com o vizinho Suavi (Tamer Levent), um amigo de uma fazenda próxima. A noite é memorável e surpresas o aguardarão, inclusive o vômito como depuração e limpeza de um homem beirando a irracionalidade, em forma de alegoria como transposição à civilização.

Temas como a solidão, doença e velhice foram exploradas com méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957); ou ainda em Viver (1952), de Akira Kurosawa; ou em Amor (2012), de Michael Haneke, este com um naturalismo exposto como vísceras da decadência humana intensa. Ceylan traz para a abordagem os mesmos temas, aprofunda-se nos diálogos doloridos com questionamentos implacáveis, pela sua maneira elegante com um toque de classe seco e direto, através do extremo realismo de cenas com som direto em longos planos sequenciais, ao melhor estilo do formalismo com rigor do mestre longevo português Manoel de Oliveira. Tem na forma alguma crueza direta e em nada comparável com a estética criativa e metafórica dos mestres inspiradores. O drama invoca uma facilidade na técnica para prender o espectador, retratando o cotidiano que dilacera num contexto de grande cinismo, vingança e domínio do poder sobre os menos favorecidos, derivando para o desemprego e a humilhação exacerbada, como na cena do garoto levado para beijar a mão do todo poderoso.

Winter Sleep retrata os efeitos do tédio e ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda da parceira, acompanhado da solidão e da velhice que aflora de forma iminente, num cenário instigante de nevasca por todos os lados, do cavalo selvagem capturado e símbolo da liberdade no epílogo metafórico. O filme fascina pelo movimento interessante de uma câmera em planos-sequência longos, às vezes em contraplanos mais curtos, captando as doloridas imagens de um neo-realismo de grandes filmes do cinema como Arca Russa (2002) em plano-sequência único e a famosa trilogia impactante de também realismo cênico em Moloch (1999), Taurus (2001) e O Sol (2005), todos de Alexander Sokurov. No melhor estilo do velho Cinemascope, no processo de filmagem baseado em lentes especiais que na projeção produz grandes dimensões, além de transmitir sensação de relevo, toma conta da tela. Um drama perturbador e reflexivo sobre a alma invadida, retirando os véus da lucidez perdida, partindo para o encontro com a vida e as emoções existenciais sobre o incômodo e progressivo fim que espera a humanidade. Um acerto estético elogiável e fabuloso para um desenrolar com raras elipses.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Dois Dias, Uma Noite)


Dois Dias, Uma Noite

Outro ótimo filme se fez presente na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o drama social Dois Dias, Uma Noite, dos diretores belgas Jean-Pierre e Luc, mais conhecidos como os irmãos Dardenne, que também são responsáveis pelo enxuto roteiro. O longa-metragem é baseado num fato verídico, em que uma funcionária é demitida de forma sumária do emprego, após uma votação conduzida de maneira parcial para afastar uma colega de trabalho depressiva, que recém retorna à fábrica de painéis solares após tratamento de saúde, para dar continuidade aos seus afazeres profissionais, é trocada como moeda por um bônus de mil euros para quem votar a favor da empresa.

Na obra anterior dos cineastas, O Garoto da Bicicleta (2011), tinha por tema um menino que buscava desesperadamente encontrar o pai ausente que o abandonara há um mês num orfanato, pois queria se livrar dele e reconstruir com outra mulher uma nova família. Uma criança nada dócil, de comportamento com sérios desvios de conduta, agressivo ao ser rejeitado definitivamente. Tratavam o drama com mais delicadeza e menos rudeza, embora sem perderem o foco e o cerne da questão. Os personagens dos cineastas geralmente parecem moribundos numa Bélgica que esqueceu das classes menos abastadas. Filhos e pais estão em confronto de relacionamento permanente, decorrente das mazelas de uma sociedade que virou as costas para uma classe menos protegida, que busca nasRosetta (1999), o grande vencedor de Cannes daquele ano; O Filho (2002); A Criança (2005) também vencedor do Palma de Ouro; O Silêncio de Lorna (2008), para muitos o melhor de sua invejável filmografia, na profunda abordagem de drogadição e gravidez psicológica.
drogas suas realizações pessoais e profissionais. Como também os pequenos furtos para sobreviverem são marcas registradas em seus filmes de excluídos que vagam pelas ruas. Assim foi com o mesmo rigor profundo de uma estética que aborda a virilidade e a violência reafirmadas das realizações anteriores:

Os irmãos Dardenne fazem uma análise profunda da crise do emprego e das condições paupérrimas de seus conterrâneos, sem dissociar das terríveis precariedades abordadas por eles em filmes anteriores, na busca incessante de uma realidade melhor, embora pelo prisma de um olhar pessimista e sombrio de escassa esperança, exceto a dignidade que é bem retratada com isenção e sem maniqueísmo barato e distante de cair na armadilha de um proselitismo ingênuo, diante do terror psicológico colocado pelos condutores diretivos de uma fábrica inescrupulosa, como metáfora de um país dentro de um continente em crise sócio-econômica.

Uma trama com uma história consistente segurada por um elenco elogiável de amadores, exceto a dupla principal de profissionais consagrados. Sandra (Marion Cotillard- dispensa apresentações, mais uma vez brilha sem nenhum glamour, em desempenho formidável e convincente) é a operária que vê seus colegas de jornada trocá-la por mil euros mensais em suas contas minguadas, ainda que explorados por chefes desonestos e antiéticos como os parceiros de labor têm preços, na maioria. Ou para reformar a residência, ou ajudar no sustento familiar, ou até crescer o patrimônio como a cobertura de uma amiga. Tem aquela que ainda mente no interfone para não recebê-la, mas há o imigrante negro que coloca seu emprego temporário em risco, demonstrado altivez de espírito. São decepções que se sucedem e ampliam seu pessimismo, levando-a para uma desesperada tentativa de suicídio, fruto do desencanto com o ser humano. Tenta reverter os votos, indo de casa em casa para a nova votação que irá acontecer na outra semana, com o apoio do marido (Fabrizio Rongione- o mesmo de O Silêncio de Lorna e O Garoto da Bicicleta).

O tema não é tabu, recentemente foi bem explorado pelo diretor francês Robert Guédiguian, em As Neves do Kilimanjaro (2011), adaptação livre do poema Os Pobres, de Victor Hugo, uma história do líder sindical portuário Michel (o fabuloso Jean-Pierre Daroussin- no sensível comissário em O Porto-2011) sendo demitido num sorteio, aonde vem a perder o emprego, porque alguém teria que sair, e apesar de sua estabilidade, registrou seu nome no rol dos concorrentes e acabou “contemplado”. Diante de uma aposentadoria compulsória, teve o apoio irrestrito da mulher generosa, que trabalha para ajudar na composição da renda da família. Vivem rodeados dos filhos, netos e são premiados na bonita cerimônia de aniversário de casamento no sindicato com uma viagem para o monte Kilimanjaro, mas a frustração vem logo, ao ser roubado por um ex-colega de trabalho também demitido, sob a alegação de pagar as contas atrasadas e criar os dois irmãos menores abandonados pelos pais.

Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai omisso dar o tom no longa, com os problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os irmãos Dardenne miram na ética profissional e o preço de cada trabalhador fragilizado pelo sistema competitivo: bastante para alguns e pouco para outros. Um mergulho dolorido sobre a perda do emprego e as consequências nefastas do cotidiano que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque. Dois Dias, Uma Noite é um drama notável pelos questionamentos e a exposição de cicatrizes ainda abertas do bônus financeiro, que remete para uma reflexão imparcial.

domingo, 19 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Acima das Nuvens)


Acima das Nuvens

Um dos bons filmes da 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este drama que retrata o passado num presente atual, com deformações do tempo que passa em Acima das Nuvens, de Olivier Assayas, em mais um longa-metragem repleto de inovações e candente crítica ao mundo da indústria cinematográfica mais poderosa do mundo: Hollywood e seus intrincados acontecimentos sui generis, deste cineasta voltado para o momento atual e reflexões sobre uma esfera bem próxima das imperfeições do ser humano e o envelhecimento que não perdoa sequer as grandes divas que perderam o glamour pelos anos que ficaram para trás definitivamente.

O diretor tem uma filmografia digna de um grande realizador no marcante Horas de Verão (2008), na qual mostrou toda sua competência no extraordinário retrato das relações familiares e as transformações no século 20, com o início da globalização, abordou profundamente o fim de uma era de ouro, onde a cultura e a economia eram fatores sólidos e essenciais da velha Europa e a França fazendo parte como um sustentáculo bem consolidado. É responsável pelo épico de 5h30min Carlos (2010), produção inicial para a televisão, enfocando a história da vida de Ilich Ramirez Sanchez, de codinome "Carlos" o Chacal, tendo por ídolo "Che" Guevara, com formação marxista, mostra-se um revolucionário que defende a causa da Palestina, tendo como seu crepúsculo profissional justamente a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, foi um dos terroristas mais procurados no mundo por duas décadas, após diversos atos sanguinários. Depois, debruça-se sobre os reflexos e as consequências danosas e utópicas da juventude sonhadora do pós-maio de 1968 em Depois de Maio (2012), nos anseios pela manutenção da integridade e do núcleo derrotados por uma expressa vontade dos anos que sucederam aquela efervescência e os desfazimentos dos sonhos por bens materiais que ainda afloram, visando um futuro longe da cultura revolucionária almejada e dos valores plantados num país em derrocada.

Assayas constrói com bom vigor a personagem da célebre atriz Maria Enders interpretando Helena (Juliette Binoche- um diva glamourizada no prólogo e transformada numa apagada mulher sem brilho do meio para o final). Uma abordagem que mescla ficção com realidade no desenvolvimento da história, quando entra em cena a assistente Valentine (Kristen Stewart- a insossa atriz da personagem em Crepúsculo que está muito bem neste papel sério de alta compenetração), que se envolve ao extremo na trama, auxiliando a protagonista na atuação que irá fazer na remontagem da peça do dramaturgo Wilhelm Merchior.

Maria que tornou-se famosa há 20 anos no papel da jovem mocinha Sigrid, terá um destaque menor por força das circunstâncias. Em Acima das Nuvens Maria será uma lésbica senhora com instinto suicida que o tempo foi ingrato, em que Assayas retratará com fidelidade e levará ao extremo para o desenlace da estrela decadente, que agora será coadjuvante da esfuziante atriz em ascensão por filmes de ficção científica, a bela Jo-Ann (Chloë Grace Moretz) que fará a personagem que foi da famosa diva de um passado não tão distante, mas inexoravelmente tragado pela velocidade de um mundo à procura de novos supostos talentos de belezas vazias.

Mas o realizador faz um painel complexo e coloca a assistente como uma peça chave na trama, diante de sua intromissão quase que direta no roteiro da remontagem teatral que irá acontecer, inclusive com seus palpites e intromissão direta na escolha da atriz que substituirá a velha estrela, terá participação fundamental e contribuirá para o desenlace da obra. Antes, as duas fazem uma viagem de inspiração dos personagens pelos belos Alpes da Suíça, num cenário estonteante de uma fotografia mágica das lentes do fotógrafo Yorick Le Saux, com um deslumbrante colorido junto aos vales e montanhas indescritíveis.

É inegável a boa crítica retratada com mordacidade aos costumes pouco humanitários de Hollywood para seu rol de astros desgastados, com soluções simples como o uso até o seu descarte. Assim é na utilização de uma emergente bonitinha de poucos recursos técnicos no papel da protagonista, em detrimento de uma veterana, que causará desconforto e um racha na produção por gerar polêmica na construção da controvertida peça. Um filme equilibrado e com nuances de crítica ácida à poderosa indústria cinematográfica norte-americana. Embora haja alguns equívocos técnicos nas elipses, com alguns cortes abruptos e em outras cenas um prolongamento excessivo, deixa uma boa reflexão sobre o tempo que passa e o envelhecimento precoce, como na perseguição pelos paparazzis à atriz ascendente e o esquecimento voluntário de alguém que o futuro engoliu, deixando um olhar sombrio para o mundo das aparências.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O Estudante
















Políticas de Conchavos

O roteirista Santiago Mitre dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero, faz sua estreia como diretor no drama O Estudante, produção de 2011, ano marcado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa. Também assina o roteiro e é responsável pela produção que abocanhou 20 prêmios em festivais, entre eles o Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, Locarno na Itália, Cartagena na Colômbia, Toronto no Canadá, com destaque ainda para o obtido da Associação de Críticos Argentinos.

A trama centra o foco em Roque (Esteban Lamothe), um rapaz recém-chegado de Mar del Plata, que vem cursar na Capital pela terceira vez a faculdade de Ciências Sociais, participa de festas regadas com drogas e bebidas, se envolve emocionalmente com a jovem professora Paula (Romina Paula), uma liderança forte de um dos grupos militantes que está disposto a desbancar da direção estudantil a facção enraizada e com tentáculos vinculados na universidade, em conluio com a reitoria. Antes fizera amizade com uma garota descolada, não muita afeita a relacionamentos sérios. Logo, o aparente ingênuo moço interiorano ingressa na militância política acadêmica, conhece um ex-político engajado que também é professor na universidade, deixa de lado os estudos e novamente compromete sua aprovação, tendo em vista o desleixo para as cadeiras e a alta infrequência em aulas.

"É uma fábula política, sobre o poder e os consensos, mas passada num microcosmo particular: o da universidade pública", afirmou o cineasta à Folha de São Paulo. O drama faz uma razoável síntese e reflete com alguma maturidade sobre a efervescência política estudantil bem próxima da partidária, lotada de cartazes com palavras de ordem e debates políticos recheados de conchavos, coligações e falcatruas, num universo de sujeira, traição e os interesses puramente pessoais. O peronismo é colocado em discussão numa abordagem de mesa de um bar, quando o pai do acadêmico vem visitar-lhe e ali são demonstradas as alianças e seus equívocos que levaram o país à bancarrota pela instabilidade econômica, numa oportuna e adequada atmosfera que cerca a película.

Mitre demonstra ter bons conhecimentos por trás das câmeras, com elipses quase sempre no ponto, boa trilha sonora, fotografia discreta, um elenco interessante numa consistente estrutura dos personagens, embora por vezes peque nos excessos de diálogos e com explicações didáticas demais, trancando a fluidez do desenrolar da história. Recupera-se da metade para a parte final do longa, ao apresentar a capacidade de convencimento e descoberta de vocações de liderança. Não faz concessões no epílogo seco e definitivo para quem espera o fim clássico, soando como redenção do promissor cineasta.

O Estudante é um bom filme sobre a política partidária incrustada no mundo acadêmico das utopias da juventude e os aspectos contraditórios daqueles que querem mudar os rumos da nação, que se deixam levar por vaidades personalíssimas, quando costuram ligações de grupos opostos para chegar ao poder, mesmo que para isto tenham que ferir a ética e pisotear os valores morais dos indivíduos. Há mágoas e rupturas de vínculos mínimos de amizades, tal qual se observa no cotidiano da política de partidos tão desacreditada. A trama de questões que tocam os bastidores é apropriada, mas a forma é exaustiva, por vezes, pelo vazio dos simplismos de cenas didáticas por vícios de raciocínio que consiste em desprezar soluções mais abrangentes, no qual deixa de ser um trabalho mais significativo, embora a obra tenha algumas virtudes como as tensões entre os ideais traídos e a vida pública.