quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mostra de Cinema São Paulo (Que Horas São no Seu Mundo?)



Que Horas São no Seu Mundo?

Outro aguardado filme que não decepcionou na 38ª. Mostra de Cinema de São Paulo foi o drama Que Horas São no Seu Mundo?, do estreante em longas Safi Yazdanian, que também assina o roteiro. Não faz parte dos conterrâneos do cinema que tinham como cenário o interior do Irã, predominando o chão batido de terras poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).

O promissor Yazdanian se aproxima em muito de Asghar Farhadi, autor de A Separação (2010) que demonstrou muita simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política na extraordinária metáfora do regime ditatorial, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente pelo marido e, principalmente, por O Passado (2013) obra voltada essencialmente para as coisas do cotidiano de seu país, embora tenha filmado na França, bem distante de seu povo, não se afastou das relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade de uma temática consistente dos planos intimistas do cineasta que se detém mais na abordagem moral e ética familiar.

Que Horas São no Seu Mundo? é um drama rodado num cenário urbano de muito silêncio e reflexão, com uma trama bem estruturada na protagonista Goli (Leila Hatami- de grande atuação mesclada com uma beleza deslumbrante, a mesma de A Separação) que, de uma hora para outra, decide regressar ao Irã depois de 20 anos vivendo em Paris. Ao pousar em Rasht, sua cidade natal no interior do Irã, ela é recebida por Farhad (Ali Mosaffa é o mesmo que brilhou em O Passado), um fabricante de molduras que dá aulas de francês como entretenimento. Embora pareça conhecê-la muito, ela não tem nenhuma lembrança do vizinho.

A tensão inicial estabelecida entre a recém-chegada e o conterrâneo com aspecto de espião está ligada diretamente num passado de um romance que não aconteceu numa relação improvável no futuro. O sutil conflito instalado trará muitas revelações do passado e feridas abertas sem cicatrizações serão removidas com boa dose poética e sensibilidade para esclarecer alguns mal-entendidos colocados em xeque para os personagens conviverem e discutirem as nuances marcadas pelo tempo. A chegada de Goli no Irã é semelhante à de Ahmad na França, em O Passado. Ambos despertaram alguns segredos guardados e jogados para baixo do tapete. Farhad nutre pela conterrânea uma paixão doentia decorrente de uma relação ensandecida advinda de uma psicopatia social controlável.

Há um olhar de interrogação e dúvida no retorno de Goli nesta viagem sentimental, uma espécie de reminiscência para um mergulho no passado, com circunstâncias alteradas na trajetória pelas descobertas que se revelam. São visitas ao barbeiro; um velhinho esclerosado como seu país, pai de uma amiga; bem como a visita clássica ao cemitério para rever o túmulo da mãe. Mas o personagem Farhad é determinante para o andamento da história, pois ele sabe tudo sobre sua paixão secreta, o grande amor platônico guardado em segredo, como as lembranças da sala da aula, em que eram colegas e dali nasceu o dolorido e avassalador vínculo emocional imensurável. Uma patologia de uma doença chamada amor, embalada por uma fascinante trilha sonora assinada por Christophe Rezai.

Nos dois filmes, O Passado e Que Horas São no Seu Mundo?, há uma grande semelhança conceitual com a figura dos protagonistas: um sai do Irã, enquanto o outro retorna para lá, porque um tem o sentimento da volta sentimental, enquanto o outro quer ficar bem longe na busca da liberdade como forma de independência. O encontro na velha casa da protagonista terá as confissões e os detalhes de toda uma vida afastada dali. Ela se assusta num primeiro momento, mas como um lindo poema que se traduz para decifrar um enigma de uma relação inimaginável por falta de estreitamento de um vínculo, que por parte do dono da casa de molduras em nada mudou com a saída da amada para o exterior. Pelo contrário, aumentou ainda mais o seu interesse.

O drama retrata um presente muito atual com verdades irrecuperáveis para uma análise sobre a emoção contida derivada de uma situação peculiar para a complexidade do enredo e dos personagens sob uma chuva poética que cai lentamente no silêncio daquele lugarejo bucólico que irá propiciar um clima de rara beleza. Digno de um cinema voltado para a ternura e o afeto num país envolvido constantemente por conflitos internos de lutas religiosas e políticas, sob o manto de um regime ditatorial, tendo os direitos femininos restritos. Mas para contrabalançar há vida, amor e dignidade naquele povo sofrido. Há uma reflexão sobre uma parte perdida do que ficou para trás, ressurge como esperança para acariciar ego e alma, sem culpa ou arrependimento. Todavia, nem mesmo o que há como elemento forte de ligação justifica o que ficou à deriva. Repete-se o olhar realista para um mundo em ruínas, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta significativa obra contextualizada.

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