Fogueira das Vaidades
Depois do polêmico filme histórico de época Vazante (2017), sobre a escravidão em
Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1821, pelo olhar de uma garota branca
também vítima de uma sociedade austera, e ainda completamente ausente no
sentido dos direitos iguais entre homens, mulheres e raças, Daniela Thomas fez ali
sua primeira incursão sozinha como diretora. Agora está de volta com seu
segundo longa, o fascinante O Banquete,
inspirado em personagens reais. O drama foi retirado pela própria realizadora
da mostra competitiva do Festival de Gramado deste ano, logo após tomar conhecimento
da morte do jornalista Otávio Frias Filho (1957 - 2018), diretor do jornal Folha de S.Paulo, que inspirou o personagem Mauro, um intelectual tímido, sedutor com
as mulheres e poderoso num país em efervescência política durante o controvertido
governo Collor de Melo.
A cineasta começou a carreira no início dos anos 1980, no
Teatro Experimental La MaMa ,
em Nova York ,
mas sua estreia foi codirigindo Terra
Estrangeira (1995) com Walter Salles. A mesma dupla realizou O Primeiro Dia (1999) e Linha de Passe (2008). Em 2009,
codirigiu o longa-metragem Insolação,
desta vez com Felipe Hirsch. Filha do famoso cartunista Ziraldo, Daniela começou
a escrever o roteiro há mais de 20 anos, com a ideia original para ser uma peça
de teatro. Além das lembranças de desenhistas, escritores, jornalistas, atores,
músicos e demais artistas que frequentavam a residência da família, ela não se
baseou especificamente em um evento que a tenha marcado durante as reuniões com
seu pai, um dos fundadores do festejado semanário O Pasquim. Mas se inspirou em obras como O Banquete, de Platão, que se constituiu
basicamente numa série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, e
Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos,
sempre atual através dos tempos, em sua universalidade e na capacidade de antecipar
conceitos apenas muito mais tarde consagrados, nesse caso, as teorias de Freud.
A trama de Daniela tem um formato consistente e teatral, em
um único cenário numa noite apenas, no fim da década de 80, quando o Brasil
engatinhava em uma democracia com suas fraquezas e o temor da iminência da
retomada do governo pelos militares. Era uma época de extrema instabilidade
política e econômica que causava uma incerteza geral no frágil equilíbrio da
nação, onde a civilização flertava com a barbárie ditatorial. Nora (Drica
Moraes) organiza um grande jantar para festejar os dez anos de casamento de
Mauro (Rodrigo Bolzan), um editor de uma célebre revista- em que ela trabalha- com
a icônica atriz Bia Moraes (Mariana Lima). O marido da anfitriã é o advogado
Plínio (Caco Ciocler), que chega bêbado e fica sabendo da festa minutos antes.
Dois colegas de trabalho são convidados: a jornalista Maria (Fabiana Gugli) e o
colunista social Lucky (Gustavo Machado), além dos convivas surpresas Cat Woman
(Bruna Linzmeyer) e Claudinha (Georgette Fadel). A tragicômica refeição é
servida pelo jovem Ted (Chay Suede), alvo de investidas amorosas pelo sarcástico
colunista e suas tiradas desconcertantes.
No grande jantar de iguarias requintadas regado com variadas
bebidas importadas e muita fumaça dos cigarros em profusão, todos se derramam
em teses sobre o amor e as relações sexuais. Falam sobre vaginas e pênis eretos
e funções, flutuando entre Platão até Sócrates, num retrato sobre a
intelectualidade brasileira em discussões prolixas, sendo desprovida de um senso crítico mais apurado para uma capacidade de questionar e analisar de
forma racional e com alguma inteligência. Há uma total ausência na busca da
verdade para questionar e refletir com profundidade sobre os assuntos colocados
de maneira extravagante entre eles, com uma tensão e um pulsar esquizofrênico
de ideias a cada minuto que se passa, partindo para explosões que ultrapassam o
limite da sensatez, redundando em baixarias orquestradas. A diretora encaixa os
personagens num clímax como se estivessem em uma terapia de grupo para
exorcizar os fantasmas do passado e as soluções inacabadas de relacionamentos
que ainda subsistem com mágoas e rancores. Há uma atmosfera de puro cinismo
comprometedor que coloca em xeque aquela casta intelectual de esquerda, diante
da arrogância, blefes e investidas libidinosas da turba apresentada como pessoas
descoladas e libertárias. Neste contexto todo há a iminente prisão do editor da
revista, que assinou uma carta aberta contra o presidente do país, e o seu
enquadramento na lei de imprensa vigente à época.
O Banquete é uma
simbiose escarrada da contradição dos convidados de conteúdo vazio que buscam
um norte numa reunião em torno de uma mesa para discutir assuntos variados de
uma burguesia decadente. Eles se insultam e se seduzem, armam pequenos barracos
nas ameaças intercaladas por beijos e pequenos afagos com ou sem sentimentos
numa orgia de intenções perversas com algumas rasgações de seda em meio a
acusações levianas e iconoclastas. A realizadora demonstra eficiência autoral e
domínio do ótimo elenco (todos estão muito bem, mas Drica e Mariana estão
soberbas) para uma construção magnífica de personagens complexos em suas
vaidades que irão se queimando gradualmente na grande fogueira de uma cilada
macabra da anfitriã, onde todos já transaram entre si. Daniela ajusta com
perfeição as falas com enquadramentos dos rostos tensos para extrair as
angústias, anseios, frustrações e o medo da polícia bater na porta. O tom da
história vai progredindo até atingir o ápice da histeria e se transformar numa
catarse coletiva, em que ninguém escapa de alguma traição ou esteja imune
pela inocência. São atitudes de falsas verdades com efeitos danosos para o
psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção da
lógica e do equilíbrio. Predomina o destempero pela facilidade da verve acusatória
de não medir as consequências quase que trágicas neste vigoroso drama desafiador
pelos diálogos e imagens corrosivos em sequências devastadoras.