Universo Feminino
Vem do Paraguai o surpreendente drama familiar com conotação
social que encantou o recente Festival de Gramado ocorrido em agosto deste ano.
As Herdeiras arrebatou seis prêmios
na categoria da mostra latina: melhor filme, diretor, roteiro, atriz (Ana Brun,
Margarita Irún e Ana Ivanova), júri da crítica e júri popular. Com a direção
autoral e promissora do estreante em longa-metragem Marcelo
Martinessi , um cineasta desbravador em um mercado de poucas
luzes e sem qualquer tradição em seu país. Para fazer cinema numa indústria
completamente inexplorada, onde recém foi aprovada uma lei de incentivo fiscal
ainda não regulamentada, teve que buscar recursos para esta realização em
coprodução com a Alemanha, Uruguai, Noruega, Brasil e França. Antes de chegar
aqui, faturou o Urso de Prata de melhor atriz para Ana Brum no Festival de
Berlim de 2018.
O festejado filme do país vizinho,
que antes já havia obtido retumbante sucesso com 7 Caixas (2012), da dupla Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori,
vem provar que não é só na Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, principais polos
da América do Sul, que se produzem boas e inteligentes obras cinematográficas
com conteúdo, essência, estética inovadora, pois também é capaz de conquistar
espectadores. A pequena produção cinematográfica
paraguaia está chegando lá e abre
portas para o mundo com criatividade, bom gosto e minguados recursos
financeiros, tendo muito ardor conjugado com o amor à sétima arte, bem
demonstrado por este realizador motivado com um ânimo comovedor. Agora retoma o
caminho com este drama, em que está bem caracterizado pelas sombras e as dores
da alma nos ambientes da magnífica iluminação de pouca claridade, e crepuscular
como indicativo de tempo. Com grandes janelas e portas, o casarão também é um
personagem triste e envelhecido, ornamentado com móveis e utensílios de uma
aristocracia decadente, soando como metáfora de uma América Latina e sua crise
econômica.
O diretor com sua sensibilidade e aprofundamento dos
problemas familiares e sociais, nos remete para uma semelhança estética das
obras de Ingmar Bergman e Luchino Visconti, diante das imagens reveladoras num imaginário
universo de mulheres dominando e concentrando forças que contrastam com as próprias
fragilidades femininas em todas as cenas, em detrimento dos homens, que são
meras figuras decorativas, ficam num plano secundário com ausência de diálogos e
distantes dos conflitos que os cercam. Elas fazem suas festas e sofrem juntas no
karaokê entre amigas, jogos de cartas entre idosas de classe média e alta com
suas frustrações sentimentais sem pieguismos rasteiros. As prisões femininas e
a injustiças de algumas detentas retratam lugares inóspitos e de má qualidade
para a ressocialização, bem como os táxis sem a presença masculina e os
hospitais com alas exclusivas. Há o viés feminino que cala com delicadeza e
sutileza, sem o feminismo estéril e com aqueles discursos chatos e
inconsistentes.
As Herdeiras tem
como mote na abordagem a misteriosa Chela (Ana Brun), uma mulher com medo de
dirigir, mas que com o tempo terá de superar suas dificuldades psicológicas na
direção, aprenderá a perder a fobia da direção para sobreviver. Ela vive um
romance com a extrovertida Chiquita (Margarita Irún), que acaba condenada e
presa por acusação de fraudes em dívidas fiscais. A relação tem os problemas inerentes
do cotidiano e ambas são oriundas de famílias ricas, mas que sofreram com as
agruras de uma crise financeira sem precedentes. Acabam vendendo tudo dentro de
casa, como o piano, quadros de valor artístico inestimável, mesas com cadeiras
e demais objetos de algum valor, para sobreviverem os dias amargos de uma
economia devastada por uma inflação galopante. Neste interregno de solidão a
carência afetiva fala mais alto, Chela conhece a filha de uma vizinha, Andy (Ana
Ivanova), quando transportava as senhoras como motorista particular, no dia a
dia de espera e interrupções de visitas à companheira no presídio. A química
dos olhares, o convite para tomar vinho, e a sedução da nova amiga levam as duas
para um dilema diante da situação precária da personagem central, que tem a
explosão de sua libido que a faz se redescobrir para sair da clausura e ir ao
encontro do grande amor, mas para isto terá que deixar a aparente zona de
conforto.
Uma relação que irá ter contornos para lançar luzes somente
no desfecho, quando do retorno da antiga companheira ao casarão. É uma dolorosa
decisão de uma união em vias de extinção e que poderá tumultuar a convivência
no microcosmo familiar. Aumenta a dúvida com a aproximação das duas mulheres
envolvidas emocionalmente, num clímax de amor maduro que pode acirrar os ânimos.
A felicidade aparente de seus sorrisos e olhares reveladores esbarram num
ambiente de desilusões e de fracassos, que nortearam a relação até agora duradoura,
mas não completa, ao não se assumirem publicamente, depauperada por um conceito
residual estereotipado como uma imoralidade. A nova relação soaria como uma
redenção na escolha alternativa ousada e a busca da felicidade plena, através
do silêncio como a marca deste enredo intimista que retrata a difícil realidade
de dois seres humanos numa relação ainda pouco aceita na sociedade conservadora
paraguaia. A própria equipe do filme sofreu constrangimento no Senado, ao
receber homenagens pela premiação em Berlim, muitos senadores não compareceram
em sinal de repúdio pelo tema retratado.
As Herdeiras tem
como parâmetro o sensível Flores Raras (2013),
de Bruno Barreto, em uma abordagem da relação homossexual conturbada no Rio de
Janeiro, em 1956. Outro drama similar é Carol
(2015), do independente cineasta norte-americano Todd Haynes, contido nas cenas
de sexo, flutuou pelos caminhos sugestivos e as carícias sutis das
preliminares. Martinessi não tem o fervor do polêmico Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que
impactou com uma cena tórrida de sexo explícito. O diretor paraguaio constrói
uma atmosfera repleta de sutilezas, valorizando as imagens dos olhares e transições
que são elaboradas com requintes delicados do tempo que avança com alguma
melancolia este mosaico decadente das classes abastadas. Há uma ótima construção
psicológica das personagens diante de suas fragilidades e envolvimentos como as
descobertas em doses moderadas de erotização, intercaladas por momentos poéticos
silenciosos e necessários para o desenvolvimento da história. Uma reflexão dos
costumes e do moralismo familiar retratados com profundidade nos pequenos
detalhes pela sugestão da lente de um diretor com um olhar de ternura e
compreensão.
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