quinta-feira, 13 de setembro de 2018

As Herdeiras



Universo Feminino

Vem do Paraguai o surpreendente drama familiar com conotação social que encantou o recente Festival de Gramado ocorrido em agosto deste ano. As Herdeiras arrebatou seis prêmios na categoria da mostra latina: melhor filme, diretor, roteiro, atriz (Ana Brun, Margarita Irún e Ana Ivanova), júri da crítica e júri popular. Com a direção autoral e promissora do estreante em longa-metragem Marcelo Martinessi, um cineasta desbravador em um mercado de poucas luzes e sem qualquer tradição em seu país. Para fazer cinema numa indústria completamente inexplorada, onde recém foi aprovada uma lei de incentivo fiscal ainda não regulamentada, teve que buscar recursos para esta realização em coprodução com a Alemanha, Uruguai, Noruega, Brasil e França. Antes de chegar aqui, faturou o Urso de Prata de melhor atriz para Ana Brum no Festival de Berlim de 2018.

O festejado filme do país vizinho, que antes já havia obtido retumbante sucesso com 7 Caixas (2012), da dupla Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, vem provar que não é só na Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, principais polos da América do Sul, que se produzem boas e inteligentes obras cinematográficas com conteúdo, essência, estética inovadora, pois também é capaz de conquistar espectadores. A pequena produção cinematográfica paraguaia está chegando lá e abre portas para o mundo com criatividade, bom gosto e minguados recursos financeiros, tendo muito ardor conjugado com o amor à sétima arte, bem demonstrado por este realizador motivado com um ânimo comovedor. Agora retoma o caminho com este drama, em que está bem caracterizado pelas sombras e as dores da alma nos ambientes da magnífica iluminação de pouca claridade, e crepuscular como indicativo de tempo. Com grandes janelas e portas, o casarão também é um personagem triste e envelhecido, ornamentado com móveis e utensílios de uma aristocracia decadente, soando como metáfora de uma América Latina e sua crise econômica.

O diretor com sua sensibilidade e aprofundamento dos problemas familiares e sociais, nos remete para uma semelhança estética das obras de Ingmar Bergman e Luchino Visconti, diante das imagens reveladoras num imaginário universo de mulheres dominando e concentrando forças que contrastam com as próprias fragilidades femininas em todas as cenas, em detrimento dos homens, que são meras figuras decorativas, ficam num plano secundário com ausência de diálogos e distantes dos conflitos que os cercam. Elas fazem suas festas e sofrem juntas no karaokê entre amigas, jogos de cartas entre idosas de classe média e alta com suas frustrações sentimentais sem pieguismos rasteiros. As prisões femininas e a injustiças de algumas detentas retratam lugares inóspitos e de má qualidade para a ressocialização, bem como os táxis sem a presença masculina e os hospitais com alas exclusivas. Há o viés feminino que cala com delicadeza e sutileza, sem o feminismo estéril e com aqueles discursos chatos e inconsistentes.

As Herdeiras tem como mote na abordagem a misteriosa Chela (Ana Brun), uma mulher com medo de dirigir, mas que com o tempo terá de superar suas dificuldades psicológicas na direção, aprenderá a perder a fobia da direção para sobreviver. Ela vive um romance com a extrovertida Chiquita (Margarita Irún), que acaba condenada e presa por acusação de fraudes em dívidas fiscais. A relação tem os problemas inerentes do cotidiano e ambas são oriundas de famílias ricas, mas que sofreram com as agruras de uma crise financeira sem precedentes. Acabam vendendo tudo dentro de casa, como o piano, quadros de valor artístico inestimável, mesas com cadeiras e demais objetos de algum valor, para sobreviverem os dias amargos de uma economia devastada por uma inflação galopante. Neste interregno de solidão a carência afetiva fala mais alto, Chela conhece a filha de uma vizinha, Andy (Ana Ivanova), quando transportava as senhoras como motorista particular, no dia a dia de espera e interrupções de visitas à companheira no presídio. A química dos olhares, o convite para tomar vinho, e a sedução da nova amiga levam as duas para um dilema diante da situação precária da personagem central, que tem a explosão de sua libido que a faz se redescobrir para sair da clausura e ir ao encontro do grande amor, mas para isto terá que deixar a aparente zona de conforto.

Uma relação que irá ter contornos para lançar luzes somente no desfecho, quando do retorno da antiga companheira ao casarão. É uma dolorosa decisão de uma união em vias de extinção e que poderá tumultuar a convivência no microcosmo familiar. Aumenta a dúvida com a aproximação das duas mulheres envolvidas emocionalmente, num clímax de amor maduro que pode acirrar os ânimos. A felicidade aparente de seus sorrisos e olhares reveladores esbarram num ambiente de desilusões e de fracassos, que nortearam a relação até agora duradoura, mas não completa, ao não se assumirem publicamente, depauperada por um conceito residual estereotipado como uma imoralidade. A nova relação soaria como uma redenção na escolha alternativa ousada e a busca da felicidade plena, através do silêncio como a marca deste enredo intimista que retrata a difícil realidade de dois seres humanos numa relação ainda pouco aceita na sociedade conservadora paraguaia. A própria equipe do filme sofreu constrangimento no Senado, ao receber homenagens pela premiação em Berlim, muitos senadores não compareceram em sinal de repúdio pelo tema retratado.

As Herdeiras tem como parâmetro o sensível Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, em uma abordagem da relação homossexual conturbada no Rio de Janeiro, em 1956. Outro drama similar é Carol (2015), do independente cineasta norte-americano Todd Haynes, contido nas cenas de sexo, flutuou pelos caminhos sugestivos e as carícias sutis das preliminares. Martinessi não tem o fervor do polêmico Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que impactou com uma cena tórrida de sexo explícito. O diretor paraguaio constrói uma atmosfera repleta de sutilezas, valorizando as imagens dos olhares e transições que são elaboradas com requintes delicados do tempo que avança com alguma melancolia este mosaico decadente das classes abastadas. Há uma ótima construção psicológica das personagens diante de suas fragilidades e envolvimentos como as descobertas em doses moderadas de erotização, intercaladas por momentos poéticos silenciosos e necessários para o desenvolvimento da história. Uma reflexão dos costumes e do moralismo familiar retratados com profundidade nos pequenos detalhes pela sugestão da lente de um diretor com um olhar de ternura e compreensão.

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