terça-feira, 11 de março de 2025

Anora

 

Conto de Fadas Agridoce

A comédia romântica com ingredientes de pitadas de sarcasmo e alguma dosagem de bom humor Anora foi a vencedora do Festival de Cannes no ano passado. Voltou a ser a dona da noite no Oscar deste ano, abocanhando cinco estatuetas: melhor filme, direção, atriz, roteiro original e montagem. Escrita e dirigida por Sean Baker, que tem em sua filmografia realizações menores, de pouca expressão, tais como Red Rocket (2021), Projeto Flórida (2017) e Uma Estranha Amizade (2012). Possivelmente nem o próprio cineasta aguardava tanto sucesso em tão pouco tempo, sendo oscarizado discutivelmente como Melhor Diretor, para ele que sempre foi um realizador menor. Também a atriz Mikey Madison no papel da protagonista que empresta o nome ao título do longa-metragem, mas que se apresenta como Ani. Certamente não esperava ser recompensada com a láurea de Melhor Atriz no Oscar, superando as favoritas Fernanda Torres, sem qualquer patriotada, foi disparadamente superior as suas concorrentes pela atuação antológica em Ainda Estou Aqui; e Demi Moore, sempre candidata e nunca leva nada, embora desta vez não dê para se dizer que houve uma grande injustiça, pois sua interpretação em A Substância foi apenas protocolar.

A trama foca numa profissional do sexo norte-americana, que dança e faz companhia a homens carentes de afeto e luxúria, inspirada em Uma Linda Mulher (1990), sendo estrelado por Julia Roberts e Richard Gere. Que diferença! A atuação de Madison está de acordo com sua personagem jovial e ingênua, não decepciona, mas também não encanta. Mostra boa naturalidade ao interpretar a garota de programa que trabalha numa boate com muitas luzes neon, xingamentos, disputas com as colegas, na busca de clientes de um mundo com realismo, na região do Brooklyn, nos Estados Unidos. “Eu estou sempre feliz”, diz Anora, como uma voz ressonante de pura ironia ou de uma alienação completa no mundo em que vive. Ali há muita solidão, pouca compreensão e um total distanciamento dos membros familiares em completa distopia. Como num conto de fadas onde a Cinderela atinge o ápice da felicidade ao tirar um prêmio monumental que a torna independente ao conhecer um príncipe encantado rico que se apaixona pela menina pobre. O encontro ocasional irá mudar sua vida em uma noite normal como outras quaisquer, mas que jamais será repetida. A garota descobre que pode ter sido premiada pelo destino ingrato até aquele momento. Acredita que encontrou o seu verdadeiro amor e que não precisará mais passar pelas humilhações na casa noturna.

O enredo anda rápido e logo o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan (Mark Eidelshtein), em férias nos EUA, é o cliente que ela encontrou por acaso. Depois de muito sexo, apenas com intervalos para o garoto jogar videogame, ele acaba pedindo ela em casamento. Tudo muito acelerado, como a vida do casal e os impulsos do cotidiano. Mas nada é para sempre nos melodramas de realizadores que precisam achar saídas imediatas. O matrimônio sofre uma ameaça contundente dos pais do rapaz que entram em cena para desaprovar a relação. Um dos motivos alegados seria o fato da atual nora ter um passado nada compatível para os padrões rígidos de uma Rússia austera. Truculentos capangas são enviados à terra do Tio Sam para acabar com a lua de mel dos pombinhos. Cenas previsíveis se sucedendo, até que um armênio, por mais uma ironia do destino, consegue colocar em ordem a bagunça festiva dos jovens apaixonados. Uma alegoria das brigas entre os norte-americanos com os russos, mas tudo de maneira folclórica, de pouca inspiração, por vezes descambando para uma comédia pastelão. Primeiro com a fuga, e depois na busca incessante do herdeiro arrependido pelos serviços sexuais proporcionados ou coagido pelos pais para se separar. Nem ele sabe a razão.

O longa-metragem retrata no desenrolar uma tempestade diante da realidade opressora de uma família ligada ao tráfico de armas, pela desigualdade social. Mas como ponto positivo do roteiro está o completo descaso com os jovens, que salva o filme da derrocada. A ausência de carinho e amor são marcantes na vida do rapaz, com uma idade mental de uma criança ou de um pré-adolescente. Paga para ter prazer e um pouco de atenção, tendo em vista que seus pais separados só se uniram para desmanchar seus raros momentos de felicidade. A garota sequer sabe onde estão seus pais, num diálogo revelador com o futuro marido. Menciona apenas uma irmã que tem por hábito tirar seus namorados. Não há vínculos afetivos familiares, deixando estampada uma solidão devastadora numa típica juventude da geração Z. Deixa transparecer uma total falta de objetivo, tendo seus anseios e o futuro voltados para o universo da internet e redes sociais como salvaguardas, divide-se entre o mundo virtual e o real. Ele parece um zumbi à procura de emoção e afeto constantemente. Ela simboliza uma Cinderela deslumbrada num ambiente de luxo e ostentação.

Em Anora tudo soa como um mero discurso vazio, que não convence diante de temas relevantes e nada singelos. Faltou se debruçar nas importantes situações que acabam se perdendo no emaranhado de incoerências com diálogos minguados de aprofundamento ao ficar distante de um realismo de nossa sociedade. A relação amorosa fora do desnível social também não tem um mínimo de profundeza, que logo desaparece do cenário. O desfecho está mais para um prenúncio de novelão recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês hollywoodianos, como a intervenção da decidida mãe, a submissão do inseguro pai no contexto de uma narrativa com pouca magnitude. Eis uma comédia romântica que flutua para o melodrama agridoce, com mais sal e menos açúcar. Abusa dos estereótipos ao abordar temáticas num mosaico arcaico de múltiplos temas. Perde a oportunidade de mergulhar em questões essenciais para reflexão do espectador. Há ausência de uma criação efetiva para um epílogo simplório, no qual há uma flagrante preocupação com a bilheteria como na redenção do símbolo da truculência. Uma obra comum e de pouca elevação neste misto de ingenuidade com esperteza apresentado no qual a previsibilidade de forma direta e didática torna-se um trunfo menor pela falta de inspiração e muita superficialidade.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Flow

 

Alerta Climático

Vem da Letônia, um pequeno país situado no Mar Báltico entre a Lituânia e a Estônia, a leste da Rússia, o vencedor do Oscar deste ano na categoria longa de animação. Dirigido por Gints Zilbalodis, que também assina o roteiro em parceria com Matīss Kaža,. Flow teve um orçamento muito baixo, aproximadamente 3,7 milhões de dólares. Concorreu e superou outras produções gigantes do gênero, como Divertida Mente 2 (2024), de 200 milhões de dólares; Moana 2 (2024), orçado em 150 milhões; Robô Selvagem (2024), em torno de 78 milhões; e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023), bateu nos 100 milhões de dólares. O filme começa com o um simpático gatinho preto sendo perseguido por uma matilha de cachorros e outros animais silvestres em disparada de algum movimento estranho na atmosfera que afetou o meio ambiente. Parece o fim do mundo, coberto apenas por vestígios da presença humana, como belas edificações abandonadas e monumentos suntuosos sem a presença de sequer uma pessoa por perto. O solitário felino mia desesperadamente em busca de socorro, mas depois se cala, enquanto é perseguido. Logo se depara com seu domicílio devastado por uma grande enchente que tem proporções destruidoras, como se fosse um tsunami que inunda tudo pela frente.

O protagonista enfrenta diferentes ameaças na sua sobrevivência, até que encontra refúgio em um barco, uma espécie de Arca de Noé, ou seja, a clássica referência de Gênesis, na Bíblia, que narra como Deus ordenou a Noé que construísse uma arca para salvar sua família e animais do dilúvio. Enquanto tenta fugir do infortúnio, outros animais se aglomeram na embarcação, como o cachorro bobão e empolgado em busca de paz; a enorme ave de rapina serpentário com suas garras afiadas; o primata lêmure com suas atitudes pouco convencionais ao recolher tudo para armazenar; e a dócil capivara sonolenta com demonstrações de pura alienação da realidade, sofre com seu sobrepeso para fugir, acaba causando cenas de suspense e tensão no precipício do qual tenta se safar. Mais adiante surgirá a enorme baleia que terá papel importante no inesperado epílogo, além dos multicoloridos peixinhos, que irão propiciar os inusitados mergulhos do gatinho para abastecer e alimentar seus companheiros, num gesto fraternal e de muita solidariedade, que demonstra empatia no qual muitas vezes falta nos ditos civilizados seres terrestres.

O passeio forçado que o barco povoado dá ao navegar com os animais em pânico, por paisagens místicas e transbordantes na busca da bonança. São os desafios perigosos para uma adaptação de um novo mundo em ebulição num cenário apocalíptico após a tormenta. Um alerta do nosso ecossistema atingido, decorrente das geleiras derretendo, das florestas com desmatamentos e ardendo em brasa. A natureza pune e se vinga das atrocidades que acompanham uma aventura nas ruínas de um planeta inundado e destruído. O filme mostra a ausência dos predadores humanos, restando os sobreviventes animais à deriva e se ajudando na tênue esperança de cada um. Encanta os espectadores ao mostrar um enredo impactante com boa proposta e sobriedade. Mesmo de forma simples, sem grandes retóricas, há o alerta climático, especialmente para a extinção de vidas, tanto no reino animal como dos terrestres solenemente alijados do contexto do diretor. Há o brado ecológico no sinal lançado de que muita coisa tem que ser feita, para se evitar uma tragédia ainda por vir sem precedentes, numa ironia fina e mordaz, contada com alguma ternura e situações típicas do cotidiano dos bravos bichinhos.

Flow faz um libelo contra a destruição de nosso planeta ao colocar na tela uma visão amarga da realidade presente ao flagrar com precisão as reações dos animais em apuros na luta pela sobrevivência. Uma narrativa magnífica dos problemas no qual o realizador dá asas à imaginação ao transformar uma situação de uma catástrofe ambiental numa envolvente história para o nosso futuro. Há significativa mudança de rumo para um surrealismo sutil numa construção alegórica que beira por vezes a inverossimilhança para perceber alusões e referências ao nosso tempo. Eis um dos grandes momentos do gênero, quando se opta pela ausência de diálogos, apenas com o gato miando, os cães latindo, sem personagens de clichês imitando os humanos, nesse aspecto há uma sintonia de universalidade. As exceções são dos sons dos rugidos do próprio meio ambiente convulsionado, valorizados pelas fascinantes imagens que soçobraram da tragédia planetária. Méritos para os ausentes discursos e recursos panfletários, embora haja contundência neste manifesto sobre a fúria devastadora da revolta implacável da natureza.

Uma aventura distópica que transmite um sinal vermelho urgente de preocupação pelos sentimentos e emoções dos personagens animais, sem aquele ranço das caricaturas recorrentes nas produções da Disney e da Pixar. O realizador mostra que todos têm um dever único de união, apesar de suas diferenças, caso contrário, a morte é iminente. São situações marcantes de um realismo incomum nos maneirismos das diversas espécimes, onde o olhar diz muito, com suas peculiaridades inerentes que envolvem a vida de um gatinho e sua desesperada luta para sobreviver após a grande calamidade. As avalanches das águas, os violentos ventos, as chuvas torrenciais, situações estas bem familiares de nossos tempos atuais, retratam um universo climático inóspito prestes a explodir, diante do cenário selvagem apresentado. Tudo conduz para um desfecho catártico e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos dos animais decorrentes do ecossistema, diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos do egoísmo e da intransigência de nossos governantes avessos ao diálogo conciliador. A resiliência felina surge como metáfora da luta de uma pequena esperança em uma minguada confiança no fim do túnel. Um futuro a ser debatido para se tentar salvar o planeta como recompensa de um período de muito sofrimento. Mesmo que pela fantasia criada pelo cineasta na relação do protagonista ao interagir com os outros animais e suas plurais diferenças. As referências, independente de espécie, ficarão ali marcadas pelo tempo e pelas adversidades inevitáveis nesta admirável obra com tintas fortes da tragicidade, passando pela solidariedade e resistência.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Um Completo Desconhecido

 

Ascensão de um Gênio

Empolgante com muito frenesi e emoção à flor da pele, politicamente incorreto, assim é o recorte de 1961 a 1967 da cinebiografia Um Completo Desconhecido, que conta a vida e a carreira artística do singular cantor, compositor, pianista, escritor, ator, pintor e artista visual Bob Dylan. Interpretado por Timothée Chalamet (conhecido por Duna, Duna 2, Wonka, e Me Chame Pelo Meu Nome), ganhador do prêmio SAG Awards, entrega uma impressionante atuação com amadurecimento, mostrando-se um ator versátil em mais de um tipo de gênero. Encarna incrivelmente os maneirismos do astro, reproduzidos de maneira notável ao segurar o violão no palco com o uso constante de cigarros sempre fazendo a inseparável companhia nas apresentações performáticas. Dá vida e força ao seu personagem carismático que ecoa nos shows e na atribulada vida, tanto pessoal como profissional. Demonstra invejável vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com sua voz rouca, os trejeitos, o olhar hipnotizante, a afinação, sem tentar imitar, com o gestual e o visual característicos do biografado. Não poderia ser outro o intérprete para uma desenvoltura melhor no papel que se dedicou com fibra. Teve de aprender a cantar, tocar violão e principalmente manusear a icônica gaitinha de boca para evocar o inconfundível músico no cenário folk e rock.

Nascido em Minnesota em 1941, nos EUA, neto de imigrantes judeus russos, influenciou diretamente grandes nomes do rock americano e britânico dos anos de 1960 e 1970. Já na adolescência aprendeu sozinho piano e guitarra. Dylan explodiu com as canções Blowin’in the Wind (1963) e The Times They Are a Changin (1964), que se tornaram verdadeiros hinos dos movimentos pelos direitos civis. Ferrenho crítico da Guerra do Vietnã, com letras que incorporaram uma ampla gama de natureza política, social, filosófica e literária. Desafiou as convenções das regradas música pop através da contracultura onde o folk era majoritário, no auge de popularidade nas décadas de 50 e 60. Abraçou a causa das tensões dessa época na busca da liberdade contrastando com a indústria e seus próprios fãs. O filme mostra o astro e toda sua admiração pelos ídolos roqueiros Johnny Cash (Boyd Holbrook), Little Richard e Buddy Holly. Também admirava o pioneiro da música de protesto Pete Seeger (Edward Norton), e expressa uma idolatria pelo lendário cantor folk Woody Guthrie (Scoot McNairy), a quem foi visitar no hospital em Nova Iorque, já com a saúde debilitada.

Um Completo Desconhecido merecia ter melhor sorte na premiação das oito indicações ao Oscar, tendo saído injustamente de mãos vazias. O diretor e roteirista James Mangold traz em sua filmografia Garota Interrompida (1999), Johnny e June (2005), Os Indomáveis (2007) e Logan (2017). Acerta ao realizar a cinebiografia num recorte dos anos de 1960 com o jovem promissor de apenas 19 anos, que desembarca de um ônibus em Nova Iorque em busca da ascensão e do estrelato. Transita entre pontos de relevância ainda desconhecidos do passado. Mostra a importância da musa inspiradora e namorada Sylvie Russo, baseada em Suze Rotolo (Elle Fanning). Ela amargura cenas de ciúmes na dificuldade de lidar com a renomada cantora Joan Baez (Monica Barbaro, conhecida pelos papéis em Top Gun: Maverick, At Midnight e The Cathedral). A atriz está magnífica na pele da cantora com o magnetismo de seu olhar, mostrou talento e carisma da personagem que foi companheira pessoal e profissional, embora com uma relação de forma atribulada na carreira do biografado. Dividiu com Sylvie a vida amorosa de Dylan com seus vacilos e hesitações do cotidiano no triângulo, mas que não o impediram de partir para o topo das paradas. O enredo foca a trajetória dos pequenos bares, salas de concertos, culminando na inovação com o rock and roll elétrico no Festival Folclórico de Newport em 1965, mesmo com a controvertida apresentação, foi um dos cruciais momentos transformadores da música do século XX.

Eleito em 2004 pela revista Rolling Stone o sétimo maior cantor e o segundo melhor artista da música de todos os tempos, ficou atrás somente dos Beatles. A canção Like a Rolling Stones (1965) foi escolhida como a melhor de todos os tempos de um dos maiores fenômenos da história da música. Vendeu mais de 125 milhões de álbuns, recebendo, em 2012, a mais alta honraria civil dos EUA, a Medalha Presidencial da Liberdade. Primeiro e único artista na história a ganhar o Nobel da Literatura em 2016, o Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro. Não é uma cinebiografia definitiva, sequer dá toda esta riqueza de detalhes e fatos mencionados. É para sorver as canções fascinantes de Dylan, e também degustar as canções de Baez, especialmente quando a dupla canta It Ain’t Me Babe (1964). O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador, fã ou não, nesta imersão que beira ao sensorial nos 140 minutos que passam voando. Há uma reflexão daquele período turbulento nos EUA, com os assassinatos do presidente John Kennedy, em 1963, e do líder ativista e pacifista Martin Luther King, em 1968, na defesa dos direitos civis e da causa dos negros, na qual as canções são mostradas dentro de um contexto social conflitado.

O epílogo não apresenta grandes surpresas pirotécnicas, mas tem um desfecho digno de um comovente filme com cenas marcantes de diálogos significativos que não se deixa levar por pieguismos baratos. Tem um clímax que funciona muito bem através de um elenco coeso e com atuações encantadoras, em especial, da dupla central, com um alto nível de refinamento que solidificam as atuações como admiráveis, e sem reparos. Um filme para todas as gerações, que humaniza a posição do protagonista numa época difícil. Há uma árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose rumo à fama. Sem os estereótipos dos grandes ídolos vistos em várias realizações, sendo outro ponto importante a ser destacado. Outro ingrediente meritório está no cardápio apresentado de belos hits e algumas figuras folclóricas apresentadas. Advindas das inquietações constantes, há uma quebra de paradigmas de comportamentos, cultura, subversão e evolução neste registro histórico da sincronia importante do legado do artista. Um passeio pela trajetória de fatos que marcaram a existência de um gênio entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades das celebridades numa narrativa intensa e arrebatadora.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Emilia Pérez

 

Melodrama Insosso

O diretor francês Jacques Audiard ganhou a Palma de Ouro em Cannes com o drama social Dheepan- O Refúgio (2015), no qual fez uma abordagem seca do multiculturalismo e da triste sina dos imigrantes na velha Europa invadida por causa dos conflitos internos de países do terceiro mundo dominados pelas execráveis ditaduras. Ambientou sua trama num condomínio de classe baixa da periferia dominado pelos traficantes numa gris e sorumbática Paris, contrapondo com as belezas naturais dos glamourosos cafés, bistrôs e do romantismo da Cidade Luz. São situações clássicas retratadas na imigração por um olhar atento do cineasta que tem em sua filmografia os razoáveis Nos Meus Lábios (2001), De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005) e Paris, 13º. Distrito (2021). Com o perturbador O Profeta (2009), trouxe uma visão profunda dos grupos mafiosos e da criminalidade escancarada dos guetos islâmicos que fervilhavam naquele ano, bem como o preconceito com o mundo árabe. No instigante Ferrugem e Osso (2012), focou no corpo mutilado de uma adestradora de orcas para aprofundar uma reflexão sobre as lutas de uma selvagem violência de classes sociais tensionadas pelos estigmas entre pares excluídos da sociedade.

Agora retorna com o polêmico Emilia Pérez, eivado de declarações racistas e xenófobas da atriz principal entre 2020 e 2021 no antigo Twitter. Todos os diálogos e canções são em espanhol, numa coprodução da França com o México, mesmo assim representa os franceses na disputa pelo Oscar deste ano. O filme tem uma direção dispersiva e com um minguado interesse cultural das mazelas mexicanas onde é ambientado. Incrivelmente conseguiu 13 indicações: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, direção, atriz (Karla Sofía Gascón- primeira atriz trans indicada ao Oscar), atriz coadjuvante (Zoe Saldaña), roteiro adaptado, fotografia, edição, maquiagem, som, música original e canção original (El Mal e Mi Camino). Talvez leve alguns prêmios técnicos na melhor das hipóteses. Nas principais categorias é quase que impossível desbancar o brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, por ser infinitamente inferior nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e de melhor atriz em que Fernanda Torres tem uma atuação antológica.

Audiard pega carona na onda dos musicais e segue a mesma estética arriscada que optou Todd Phillips em Coringa: Delírio a Dois (2024). Gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se aventurou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clímax de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo. A realização tem uma estrutura de lógica fácil e lucrativa voltada para o streaming. Bem diferente do competente cineasta canadense Denis Villeneuve que explorou os limites amorais do ser humano no estupendo drama policial Sicário- Terra de Ninguém (2015), que abordou a triste e dolorosa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA ao preparar uma audaciosa operação para deter o grande líder de um cartel de drogas mexicano.

A trama do diretor, que também é um dos roteiristas, mostra Rita (Zoe Saldaña), uma advogada qualificada e insatisfeita com sua carreira em uma firma que encobre grandes crimes. Encontra uma boa oportunidade de mudar de vida, pois entende que está desperdiçando seu talento. Quando recebe uma proposta de um poderoso chefe de um cartel, Manitas, que deseja se aposentar, sumir, e deixar para trás sua identidade criminosa. Porém, o plano é muito mais complexo do que se imagina. Além de fugir das autoridades, pretende se metamorfosear em uma nova pessoa, ou seja, numa mulher que possivelmente sonhou ser e que terá o nome de Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón). A ajuda da profissional é importante nesse processo de transformação para que ele liberte-se de sua vida pregressa num plano de alto risco e, talvez, fazer o bem ou, pelo menos, tentar se redimir das atrocidades causadas. O realizador faz um retrato pouco elucidativo sobre os imigrantes diante da burocracia e da xenofobia estampadas para se regularizarem, no qual foi magnificamente enfatizado em Dheepan- O Refúgio.

O filme não teve boa recepção no México por tratar de assuntos como feminicídio, violência policial, pessoas desaparecidas, e principalmente o narcotráfico, de maneira artificial. A bizarrice começa quando o magnata do tráfico pede para que a advogada sustente a hipótese de suicídio. Segue com Rita andando pela cidade e cantarolando numa atmosfera sem consistência em que as pessoas ficam ouvindo atônitas: “Amemos as mulheres, perdoemos os homens, abracemos a miséria”, enquanto há um coro de faxineiras que responde em versos: “a derrota da má-fé” e "o triunfo do amor". A ironia e a revolta contra a hipocrisia soam como um mero mergulho num discurso vazio, que não convence ninguém diante de temas profundos e nada singelos. O diretor sequer se debruça na importante situação da troca de sexo. Também o feminicídio é tratado com uma distância sem elevação, que em nada contribui para um tema tão crucial e recorrente de nossos dias atuais em que as mulheres são vítimas diariamente. Outra temática valiosa é a dos desaparecidos, que também se perde no emaranhado de assuntos ao ficar distante da realidade. A relação amorosa no mesmo gênero também não tem um mínimo de aprofundamento, deixa transparecer apenas alguns olhares furtivos que logo desaparecem do cenário.

Manitas quer se tornar Emilia Pérez para não deixar pistas para os rivais ou deseja ser mesmo uma mulher? Eis uma questão que envolve pessoas transgênero. Fica sem resposta e é tratada com absoluto descaso, embora a canção com a palavra vaginoplastia sugira a segunda opção. Já sua esposa, Jessi (Selena Gomez), imagina que está viúva e protegida na Suíça com os dois filhos pequenos. De volta ao México, os dois personagens principais são surpreendidos por uma mãe aflita que procura o filho. A virada do confuso roteiro está mais para um novelão mexicano previsível recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês de Hollywood, como a explosão do carro e a guarda judicial das pobres crianças, do que uma obra com magnitude. Existem momentos mais solenes, e outros nos quais o espectador fica em dúvida se é pra rir ou silenciar. Emília Pérez é um melodrama musical insosso que abusa dos estereótipos ao abordar diversos temas num mosaico anacrônico. Desperdiça a oportunidade de aprofundar questões essenciais, deixando a violência brutal do narcotráfico com milhares de mortos passar em branco em tom musical, sem uma resolução contundente, com ausência de realismo e um desfecho de solução simplória com ausência de criatividade nesta realização rasa.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A Semente do Fruto Sagrado

 

Regime Paranoico

O festejado iraniano Mohammad Rasoulof é o diretor da pequena obra-prima Não Há Mal Algum (2020), vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. Não pôde receber o prêmio porque estava proibido de sair para o exterior. Em 2010, foi preso, enquanto trabalhava ao lado do cineasta conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017. Foi detido novamente em 2022 ao criticar as autoridades que reprimiram os manifestantes na cidade da Abadan no trágico desabamento de um edifício com dezena de mortos. Mesmo com todas as dificuldades de filmar em sua terra natal, realizou este instigante drama sociopolítico em coprodução com a Alemanha e a República Tcheca para abordar uma temática pouco explorada, que é o perfil dos verdugos que aplicam a pena de morte. Retratava a escolha de quatro homens para serem os carrascos, divididos em quatro episódios. Não importava a decisão tomada, pois iria transformar os aspectos psicológicos dos executores e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles. Direta ou indiretamente, uma história fragmentada e retumbante na complexidade da essência cinematográfica esmiuçada para uma aprofundada reflexão aterradora dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

Rasoulof dirigiu outros importantes títulos: O Crepúsculo (2003), A Ilha de Ferro (2005), e Adeus (2011), no qual levou o prêmio de melhor diretor no Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É dele também Manuscritos Não Queimam (2013) e A Man of Integrity (2017), obra que foi premiada como melhor filme da seção Um Certo Olhar. O realizador, que também assina o roteiro, retoma o tema das execuções sumárias com os conflitos e dramas familiares em A Semente do Fruto Sagrado, título que remete a uma figueira na qual as raízes crescem e sufocam outras árvores, em uma magnífica metáfora do regime teocrático ditatorial imposto no Irã. Recebeu o prêmio especial do júri em Cannes, foi laureado pela Federação Internacional de Críticos, premiado pelo público no Festival de San Sebastian, na Espanha, e apontado nos EUA como melhor título internacional, além de ser indicado pela Alemanha para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Pega o gancho da turbulência política de Teerã desencadeada pela morte da jovem Mahsa Amini, detida pela Polícia da Moralidade em 13 de setembro de 2022, pelo simples fato de deixar alguns fios de cabelos mechados aparecerem, com imagens reais captadas por celulares na época. Houve muitos protestos na capital iraniana com a bandeira feminista de “Mulheres, Vida e Liberdade” diante da estúpida declaração governamental de que a moça morrera de infarto, embora a causa tenha sido o bárbaro espancamento por infringir o código de vestimenta feminina ao usar incorretamente o hijab, o véu islâmico que cobre a cabeça, o pescoço e as orelhas das mulheres muçulmanas.

A filmagem foi clandestina entre dezembro de 2023 e março de 2024 no Teerã com financiamento alemão. O diretor e as atrizes que interpretaram as filhas fugiram do Irã numa saga de 28 dias de percalços até a Alemanha. O casal de atores que interpretou os pais ainda está no país. A trama aborda Iman (Missagh Zareh), um juiz de instrução promovido recentemente no Tribunal Revolucionário apenas para assinar as sentenças de morte sem conhecer ou ler os motivos das penas dos acusados. Não poderia questionar o processo sumário, para em troca receber um polpudo salário, apartamento luxuoso para a família composta por sua esposa submissa Najmeh (Soheila Golestani), a filha universitária Rezvan (Mahsa Rostami) e a jovem adolescente Sana (Setareh Naleki), porém agravado pela presença de Sadaf (Niousha Akhshi), uma estudante agredida pela polícia que ali estava escondida. O protagonista, que inicialmente mostrava alguma resistência ao novo cargo para qual fora promovido, aos poucos adere aos ensinamentos e normas ditadas pelo regime autoritário que segue rigorosamente os preceitos religiosos. Inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão. Enfrenta uma batalha no microcosmo familiar contra as próprias filhas que o questionam, e depois, com a anuência da mãe que muda sua posição. Elas se sentem mais fortes e acabam se encorajando para lutar contra o pai paranoico e visivelmente com esgotamento mental, na pele do juiz executor que sofre pressão em sua nova posição, na qual estão os eventos que o cercam e o empurram para um estado de vigilância constante.

A implosão familiar e os esfacelamentos das relações transformam a dinâmica harmônica em uma crise doentia sem precedentes, que se estabelecem quando a arma pessoal some misteriosamente. Segredos serão revelados com efeitos corrosivos pela mania de perseguição do personagem central. A desconfiança recai sobre todos os membros do núcleo da residência. Iman adota regras rígidas e medidas extremas que rapidamente minam os laços afetivos já fragilizados. Levará todos ao limite de um delírio de loucura, fuga e insubordinação com impactos psicológicos que deixam sequelas existenciais com resultados devastadores diante de algumas escolhas. Principalmente na metamorfose de um pai em uma figura patética pela sordidez. A narrativa começa ao melhor estilo dos realizadores iranianos, entretanto, se esvazia do meio do filme em diante, quando opta por outros caminhos que pouco dialogam com o prólogo. Dá uma guinada e parte para uma intensa perseguição na estrada, que remete, sem brilho, ao suspense O Encurralado (1971), de Steven Spielberg. No epílogo, tenta reeditar o clímax inesperado ao buscar subsídios no clássico labiríntico de terror O Iluminado (1980), de Stanley Kublick, transportando o público a uma sequência sem saída, porém bem frustrante, com resultado pouco inspirado e nada impactante.

A Semente do Fruto Sagrado é um drama que flutua do documentário para o suspense ao retratar a claustrofóbica vida de uma família dentro de uma residência com portas e janelas fechadas. Há alguma semelhança estética com o extraordinário drama brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, embora seja inferior. Mesmo assim, apesar das derrapadas, não deixa de ser uma obra importante de denúncia das arbitrariedades praticadas principalmente contra as mulheres. Explora com méritos as questões de opressão política, religiosa, moral, e um judiciário parcial, sem legitimidade, no Irã contemporâneo. Cabe ressaltar o papel atuante das redes sociais em revelar verdades ocultas. Conecta o choque de gerações exposto, na qual os mais jovens estão na batalha pela liberdade em um regime repressivo numa atmosfera asfixiante que reflete o aprisionamento físico e emocional dos personagens. A violência toma o lugar da disciplina e a brutalidade supera a busca de diálogos esclarecedores. O registro meritório do realizador está nos efeitos do rosto de uma filha no interrogatório, feito por um suposto amigo no papel de um burocrata indiferente ao medo da menina ameaçada. As distorções são transformadas em rituais permitidos por leis sem direito a ampla defesa. Distante de maniqueísmos e superficialidades banais, reforça a agressividade desde o começo pelo sistema dentro de um contexto essencialmente autoritário com métodos evidentes de despotismo sem limites que contrariam os direitos humanos universais de uma civilização.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Marcello Mio

 

A Reverência

O cultuado cineasta francês Christophe Honoré tem em sua filmografia obras de pouca relevância, tais como: Bem Amadas (2011), Metamorfoses (2014), Os Desastres de Sofia (2016), Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2017) e Guermantes (2021). Porém, tem sua fase mais exitosa como Em Paris (2006), sobre o relacionamento de dois irmãos que moravam com o pai, que acabara de se separar da mãe, convivendo com a tragédia da irmã e da depressão profunda com tendências suicidas do irmão mais velho que rompera com a noiva. No excelente A Bela Junie (2008), uma garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe e o suicídio aflora outra vez como temática contundente. Talvez o melhor de todos seja Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009) ao retratar uma mãe de dois filhos, recém-separada, larga o emprego num hospital e vai morar com os pais e os irmãos na Bretanha, interior da França, onde passou sua infância. Os prazeres da vida e os seus incômodos restritos nas suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo a figura materna da falsa moralista, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo. Recentemente emplacou com Inverno em Paris (2022), um drama familiar surpreendente em uma viagem carregada de luto que acaba se tornando uma oportunidade de autodescoberta. Acertou em cheio com um elenco coeso, intenso e em sintonia harmoniosa numa trama sensível sobre um longo inverno frio, sombrio e doloroso.

Marcello Mio é o seu mais novo filme com méritos bem peculiares nesta comédia com viés existencial, ambientada em Paris e Roma, que participou da seleção oficial do Festival de Cannes de 2024. Debruça-se com sensibilidade nas lacunas e os conflitos da temática que faz parte essencial de seu estilo humanista com os elementos decorrentes do núcleo familiar. O enredo é conduzido por Chiara (Chiara Mastroianni), filha dos artistas icônicos Marcello Mastroianni (1924-1996) e Catherine Deneuve interpretando ela mesma. A protagonista é uma promissora atriz que vive um verão de intensa crise existencial e sua carreira. Mesmo que insatisfeita com os rumos da própria existência, começa a se questionar sobre sua identidade, resolve viver a vida de seu lendário genitor no cinema- completaria 100 anos em 2024-, ao invés de enfrentar a dura realidade. Imita o pai em tudo, como vestir-se, procura falar e respira como ele, de maneira decisiva. O longa-metragem enfatiza a obsessão quase que doentia, que acaba convencendo todas as pessoas em seu redor a entrar nessa estranha metamorfose ao reencarnar a identidade paterna. A comédia vira um perigoso jogo de espelhos entre passado, presente e futuro na busca pela descoberta de quem ela é na verdade. Consequência do fruto de um legado deixado, e da fama na vida pessoal, quando tenta fazer o papel da filha que vive à sombra do ator morto. Cercada por todos os lados pela presença constante daquela figura mitológica, faz de tudo para trazê-lo de volta à vida e à convivência com seus melhores amigos.

O realizador, além da reverência proposta, mergulha na psicanálise, na nostalgia, no amor familiar e dos amigos, às vezes de forma conturbada, como da diretora em questão Nicole Garcia que procura uma atriz, mas Chiara se rebela e refuta seus desejos. O parceiro no filme fictício seria Fabrice Lucchini, que acaba se convencendo e se rende à nova identidade proposta, em homenagem ao amigo que sempre desejou ter: Mastroianni. Uma jornada de desafios para se adaptar a uma nova realidade. Decide encarar as dúvidas que lhe tem atormentado, como a semelhança física. Busca recuperar seu sentido existencial de vida para encontrar um novo caminho. Ainda preocupada com a mãe, que custa a entender toda aquela parafernália de metamorfose, talvez não tenha absorvido ou entendido o significado da perda do pai para a filha. Um processo longo para curar as mazelas do tempo e da imensa saudade para um relacionamento familiar fragilizado pela carência de amor, diante da solidão recorrente, pela ausência paterna e da distância física e emocional da mãe. Tenta encontrar um subterfúgio para as mudanças sobre o rumo de sua vida diante de situações novas da representação masculina como elementos que darão passagem à vida como a liberdade.

O microcosmo familiar é debatido e questionado, mesmo que não haja profundidade. A falta de personalidade própria é reveladora ao demonstrar os seus propósitos de relações profissionais como uma maturidade atingida pela mescla do equilíbrio narrativo na abordagem direta, sem grandes metáforas. O sofrimento e a angústia da perda de si mesma associados como fator de desagregação na espera para resgatar seus suplícios e aflições de semelhanças estão ancorados numa realidade hipotética. Ao encarar a construção de elos perdidos que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um relato como válvula de escape através de uma sublime aparência física, que são entendidas como indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. Por toda a sua complexidade e seu dinamismo de abordagem, Honoré mostra estar maduro e com boa criatividade nesta comédia, embora seu potencial maior seja o drama, com temas atuais, acarretando em análises psicológicas dignas para um mundo perverso em suas cobranças. Assistir seus filmes dá prazer e a mesmice passa longe, desabrocha a finesse e suavidade, mesmo que ocorra pela forma de mexer com o espectador mais desatento ou aquele que busca somente o entretenimento.

Eis uma ideia da ressurreição de um mito, que tenta mostrar com boa dose de criação, na qual Chiara convence ser uma cópia feminina fiel do velho pai, embora não tenha sobrado praticamente nada da mãe. Deneuve se esforça para tentar convencer a filha de que ela tem seu talento inato e que há um lugar no cinema para ela brilhar, como já o fizera em Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar. Há boas passagens nas cenas da trama, como o surgimento de Melvil Poupaud, que teme pela sanidade mental da personagem central, bem como do programa televisivo em que Stefania Sandrelli a escolhe como uma sósia perfeita do ator reverenciado. Marcello Mio é uma admirável realização com leveza para começar o ano de 2025, nesta homenagem recheada de nostalgia de um tempo em que o cinema europeu foi marcante. Há uma atmosfera saudosista, como nas imagens da famosa fonte Fontana di Trevi, monumento que foi o cenário da antológica cena do filme A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, protagonizada por Anita Ekberg ao entrar na água e convidar Mastroianni a fazer o mesmo. Longe de filigranas e de emoções superficiais, deixa o espectador livre para refletir neste longa de contrariedades, indefinições e busca da identidade como resgate da vida nesta construção de personagens conflitados com suas características inerentes.