Alerta Climático
Vem da Letônia, um pequeno país situado no Mar Báltico entre a Lituânia e a Estônia, a leste da Rússia, o vencedor do Oscar deste ano na categoria longa de animação. Dirigido por Gints Zilbalodis, que também assina o roteiro em parceria com Matīss Kaža,. Flow teve um orçamento muito baixo, aproximadamente 3,7 milhões de dólares. Concorreu e superou outras produções gigantes do gênero, como Divertida Mente 2 (2024), de 200 milhões de dólares; Moana 2 (2024), orçado em 150 milhões; Robô Selvagem (2024), em torno de 78 milhões; e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (2023), bateu nos 100 milhões de dólares. O filme começa com o um simpático gatinho preto sendo perseguido por uma matilha de cachorros e outros animais silvestres em disparada de algum movimento estranho na atmosfera que afetou o meio ambiente. Parece o fim do mundo, coberto apenas por vestígios da presença humana, como belas edificações abandonadas e monumentos suntuosos sem a presença de sequer uma pessoa por perto. O solitário felino mia desesperadamente em busca de socorro, mas depois se cala, enquanto é perseguido. Logo se depara com seu domicílio devastado por uma grande enchente que tem proporções destruidoras, como se fosse um tsunami que inunda tudo pela frente.
O protagonista enfrenta diferentes ameaças na sua sobrevivência, até que encontra refúgio em um barco, uma espécie de Arca de Noé, ou seja, a clássica referência de Gênesis, na Bíblia, que narra como Deus ordenou a Noé que construísse uma arca para salvar sua família e animais do dilúvio. Enquanto tenta fugir do infortúnio, outros animais se aglomeram na embarcação, como o cachorro bobão e empolgado em busca de paz; a enorme ave de rapina serpentário com suas garras afiadas; o primata lêmure com suas atitudes pouco convencionais ao recolher tudo para armazenar; e a dócil capivara sonolenta com demonstrações de pura alienação da realidade, sofre com seu sobrepeso para fugir, acaba causando cenas de suspense e tensão no precipício do qual tenta se safar. Mais adiante surgirá a enorme baleia que terá papel importante no inesperado epílogo, além dos multicoloridos peixinhos, que irão propiciar os inusitados mergulhos do gatinho para abastecer e alimentar seus companheiros, num gesto fraternal e de muita solidariedade, que demonstra empatia no qual muitas vezes falta nos ditos civilizados seres terrestres.
O passeio forçado que o barco povoado dá ao navegar com os animais em pânico, por paisagens místicas e transbordantes na busca da bonança. São os desafios perigosos para uma adaptação de um novo mundo em ebulição num cenário apocalíptico após a tormenta. Um alerta do nosso ecossistema atingido, decorrente das geleiras derretendo, das florestas com desmatamentos e ardendo em brasa. A natureza pune e se vinga das atrocidades que acompanham uma aventura nas ruínas de um planeta inundado e destruído. O filme mostra a ausência dos predadores humanos, restando os sobreviventes animais à deriva e se ajudando na tênue esperança de cada um. Encanta os espectadores ao mostrar um enredo impactante com boa proposta e sobriedade. Mesmo de forma simples, sem grandes retóricas, há o alerta climático, especialmente para a extinção de vidas, tanto no reino animal como dos terrestres solenemente alijados do contexto do diretor. Há o brado ecológico no sinal lançado de que muita coisa tem que ser feita, para se evitar uma tragédia ainda por vir sem precedentes, numa ironia fina e mordaz, contada com alguma ternura e situações típicas do cotidiano dos bravos bichinhos.
Flow faz um libelo contra a destruição de nosso planeta ao colocar na tela uma visão amarga da realidade presente ao flagrar com precisão as reações dos animais em apuros na luta pela sobrevivência. Uma narrativa magnífica dos problemas no qual o realizador dá asas à imaginação ao transformar uma situação de uma catástrofe ambiental numa envolvente história para o nosso futuro. Há significativa mudança de rumo para um surrealismo sutil numa construção alegórica que beira por vezes a inverossimilhança para perceber alusões e referências ao nosso tempo. Eis um dos grandes momentos do gênero, quando se opta pela ausência de diálogos, apenas com o gato miando, os cães latindo, sem personagens de clichês imitando os humanos, nesse aspecto há uma sintonia de universalidade. As exceções são dos sons dos rugidos do próprio meio ambiente convulsionado, valorizados pelas fascinantes imagens que soçobraram da tragédia planetária. Méritos para os ausentes discursos e recursos panfletários, embora haja contundência neste manifesto sobre a fúria devastadora da revolta implacável da natureza.
Uma aventura distópica que transmite um sinal vermelho urgente de preocupação pelos sentimentos e emoções dos personagens animais, sem aquele ranço das caricaturas recorrentes nas produções da Disney e da Pixar. O realizador mostra que todos têm um dever único de união, apesar de suas diferenças, caso contrário, a morte é iminente. São situações marcantes de um realismo incomum nos maneirismos das diversas espécimes, onde o olhar diz muito, com suas peculiaridades inerentes que envolvem a vida de um gatinho e sua desesperada luta para sobreviver após a grande calamidade. As avalanches das águas, os violentos ventos, as chuvas torrenciais, situações estas bem familiares de nossos tempos atuais, retratam um universo climático inóspito prestes a explodir, diante do cenário selvagem apresentado. Tudo conduz para um desfecho catártico e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos dos animais decorrentes do ecossistema, diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos do egoísmo e da intransigência de nossos governantes avessos ao diálogo conciliador. A resiliência felina surge como metáfora da luta de uma pequena esperança em uma minguada confiança no fim do túnel. Um futuro a ser debatido para se tentar salvar o planeta como recompensa de um período de muito sofrimento. Mesmo que pela fantasia criada pelo cineasta na relação do protagonista ao interagir com os outros animais e suas plurais diferenças. As referências, independente de espécie, ficarão ali marcadas pelo tempo e pelas adversidades inevitáveis nesta admirável obra com tintas fortes da tragicidade, passando pela solidariedade e resistência.
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