O Julgamento
Ganhador do prêmio da Federação Internacional dos Críticos
de Cinema (Fipresci) no Festival de Veneza e indicado pela Argentina ao Oscar
de Melhor Filme Internacional, Argentina,
1985, quarto longa-metragem do cineasta Santiago Mitre, busca o
tricampeonato na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 2023, como
fez a seleção de futebol na Copa do Catar neste ano. A História Oficial (1985), de Luis Puenzo, e O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella, foram os
primeiros vencedores do Oscar. O cineasta é reconhecido pelas abordagens dos problemas
sociais, econômicos e políticos de seu país. O diretor estreou em O
Estudante (2011),
ano marcado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa, tendo abocanhado
mais de 20 prêmios em festivais pelo mundo. O segundo longa, Paulina (2015), foi laureado com o
troféu principal da Semana da Crítica em Cannes, retratou a temática da
violência contra a mulher de uma maneira pouco convencional, contextualizou a
trama e jogou luz à história, tendo como subtema a justiça a serviço dos
interesses pessoais de poderosos. Misto de drama político com familiar, A Cordilheira (2017), terceiro longa, é
um instigante painel sobre os bastidores da política mesclado com os problemas
pessoais de um chefe da nação abordados com esmero, bem construídos os
personagens fictícios, mas facilmente identificáveis no cenário da época.
Mitre, de 42 anos, foi também roteirista dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante
Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero. Agora se debruça sobre
os horrores da ditadura militar que deixou sequelas e marcas para sempre em seu
povo. Dividiu o roteiro com Mariano Llinás, assim como já o fizera nas últimas
duas realizações. Baseado em fatos reais, Argentina,
1985, disponível para assinantes do Amazon Prime Vídeo, se inspira na história de dois promotores públicos com uma equipe
de jovens assistentes neófitos que terão a improvável missão de processarem os militares
que comandaram e serviram ao duro regime de exceção estabelecido no país
vizinho, de 1976 a 1983. O famoso Julgamento das Juntas, de meados de 1984 a
setembro de 1985, foi o primeiro no mundo por um tribunal civil contra
comandantes militares que tinham estado no poder. Ocorreu no governo de Raúl
Alfonsin (1927-2009), eleito como primeiro presidente da fase da
redemocratização. O personagem central Julio Strassera, chamado de “Louco” (1933-2015),
brilhantemente encarnado pelo cultuado ator Ricardo Darín, em mais uma
interpretação irretocável, tem na dócil esposa, Silvia (Alejandra Flechner) e no
casal de filhos adolescentes, sua base familiar de sustentação.
Strassera tem dificuldades para montar sua força-tarefa,
diante das negativas recorrentes de seus colegas experientes. Ou por medo ou
por estarem alinhados ao nefasto regime sanguinário com indisfarçáveis
tendências fascistas, com o velho e surrado discurso de eliminarem os
comunistas. Encontra respaldo e apoio no assistente Luís Moreno Ocampo (Peter
Lanzani- de boa atuação), um filho de militar que tem a mãe uma admiradora do
sistema, inclusive ela frequentava as missas com integrantes da alta cúpula
militar. Seu mentor, Alberto (Norman Briski), traz palavras de sabedoria,
embora muito debilitado. O diretor teatral, Carlos Somigliana (Claudio Da
Passano), faz uma dobradinha interessante para a defesa oral do protagonista no
tribunal. A dupla de promotores manda a equipe formada de jovens advogados e
estagiários a pesquisarem os processos com as respectivas provas para tentar
colocar na cadeia os principais líderes da Ditadura Militar. Os promotores sofrem
ameaças e pressões políticas e militares a pararem com as investigações. Mas o
julgamento, finalmente, aconteceu em 22 de abril de 1985, com cerca de 530
horas de audiência, 850 testemunhas, sendo 709 casos julgados e sentenciados
pelos juízes León Arslanian, Ricardo Gil Lavedra, Jorge Torlasco, Andrés
D'Alessio, Guillermo Ledesma e Jorge Valerga Aráoz.
O drama político aborda com clareza e boa didática os
depoimentos das vítimas do regime, com relatos escabrosos de estupros e pessoas
desaparecidas. Mitre conduz com discernimento para contar esta triste história
que traz marcas indeléveis de um passado tingido pelo sangue, marcado pela
desumanidade e o rompimento com os direitos humanos. Entre os acusados,
sentaram no banco dos réus os comandantes do Exército, tenente-general Jorge
Rafael Videla; da Marinha, o almirante Emilio Eduardo Massera; da Aeronáutica,
o brigadeiro-general Orlando Ramón Agosti; e o presidente da República no período
de 22 de dezembro de 1981 a 18 de junho de 1982, general Leopoldo Galtieri.
Embora todos condenados, o sucessor de Alfonsín, Carlos Menem (1930-2021),
concedeu indulto aos militares, que foram anulados posteriormente. Videla, que
nunca se arrependeu do que fez, acabou sendo novamente julgado e preso, tendo
morrido aos 87 anos na prisão, em 2013. As vítimas eram mencionadas como
culpadas pelo descalabro político e social que vivia o país, na visão de seus
algozes travestidos de salvadores da pátria. Jogavam pesado com a bandeira da
corrupção sendo desfraldada, através de artimanhas e malefícios advindos dos
porões palacianos e dos quartéis, tudo a serviço da grande farsa da patriotada.
A construção narrativa é dinâmica e exemplar, dosada com
momentos de emoção, seriedade e um espaço para humor com leveza. As revelações
do passado vêm à tona e explodem como cataclismos de uma convulsão social pelos
segredos guardados como fantasmas enjaulados e amordaçados. No meio do
turbilhão dos processos que se desenvolvem nos tribunais, aparece a degradação
humana que campeava nas cúpulas diretivas de alianças de direita com um governo
ditatorial e genocida, onde mais de 30 mil pessoas desapareceram e milhares foram
mortas. Um ambiente de tensões e desdobramentos escusos onde os mortais ficaram
à mercê e sequer imaginaram os resultados e o quanto lhes custariam. Abafar os
horrores ocorridos seria mais tenebroso ainda. A Argentina e o Brasil têm
muitas semelhanças nos capítulos mais brutais de sua história, mas a justiça
brasileira está longe de adotar o lema “NUNCA MAIS’ para aprender com seus
erros.
Mitre não menciona o perdão judicial de Menem por pressão
das Forças Armadas com leis sendo promulgadas para beneficiar os militares
presos, o que revela uma falha ou opção grosseira no roteiro, embora não invalide a obra.
O longa cumpre seu papel de apresentar as abjetas violações e torturas de um
regime autoritário dos mais cruéis que se tem notícia. Disposto a eliminar a
oposição por se autointitular infalível e eterno no comando, mas que a História
apontará a verdadeira realidade dos ditadores e suas derrocadas, mais cedo ou
mais tarde. Os julgamentos e as condenações perpétuas para alguns dos acusados
são um bálsamo de energia, com a esperança no desfecho da sentença: “Nunca
Mais”. Fica a visão doentia dos homens obcecados pelo poder e seus
envolvimentos com situações escabrosas, dignas de repugnância pelos seus atos
hostis e irascíveis numa sociedade calada pela censura e as barbáries cometidas
nos porões para calar uma sociedade carente de líderes verdadeiros. Um drama contundente na sua conjuntura temática das causas e
efeitos pelas imagens e diálogos com força de grande expressividade, com
rostos e olhares de certa perplexidade diante de algumas surpresas escondidas
pelos militares argentinos em seus crimes hediondos contra a humanidade.