Cura Milagrosa
O cineasta baiano Aly Muritiba em seu último filme, Deserto Particular (2021), contava uma
história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de
nossos dias atuais. A sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto, mas
as diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da
atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficaram mais visíveis.
Retratava o envolvimento na construção da trama de amor através dos contrastes
de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens
desencontrados pelas circunstâncias, surgiu a mulher trans criada pela avó,
diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica
pentecostal. Trabalhava durante o dia num centro de distribuição de alimentos,
sonhava em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o
prendiam àquele ambiente retrógrado; à noite se transmutava e vivia um outro
mundo da fantasia, a mulher que mora dentro dele, até encontrar um policial pelo
WhatsApp, que cometeu um erro grave e o coloca numa situação constrangedora e
de iminente risco na carreira.
A promissora diretora e roteirista paulista Carolina
Markowicz, conhecida pelo seu elogiado longa-metragem Carvão (2022), retoma e aprofunda a temática da cura gay em Pedágio. Faz uma crítica mordaz à
opressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+, onde não faltam os discursos conservadores
da moral e dos bons costumes com viés homofóbicos através dos dogmas religiosos,
iguais aos da nossa realidade brasileira. No enredo, Suellen (Maeve Jinkings –
mais um atuação irrepreensível) é uma mãe que leva uma vida simples trabalhando
como cobradora de uma praça pedagiada em Cubatão (SP), onde a solidão e a
frieza da vida estão presentes. Sua colega de trabalho, Telma (Aline Marta
Maia), é uma religiosa ferrenha e carismática, embora seja uma falsa moralista,
facilmente manipulável, fica o tempo todo aconselhando a protagonista a
inscrever seu filho, Tiquinho (Kauan Alvarenga), num curso ministrado pelo
pastor evangélico Isac (Isac Graça), um estrangeiro que propaga milagres com
terapias para converter pessoas fora dos ditos padrões normais. O garoto é um
adolescente que trabalha numa lancheria, usa cores vibrantes e se maquia em
seus vídeos ao dublar divas com muitas plumas e paetês. Embora ainda não tenha
atingido a maioridade, tem o próprio dinheiro para seu sustento e até ajuda a
mãe como pode financeiramente. Mesmo que não seja dependente, ele precisa do
carinho e do afeto maternal daquela que não aceita o filho como ele é ao
depositar toda confiança no milagreiro divino que chegou na comunidade.
A trama aponta as idiossincrasias e as contradições da
colega de trabalho e da mãe, que se julgam corretas, mas distantes de colocar
alguém em um patamar moral, tanto pela ignorância como pela ingenuidade. Suellen
está obsessiva em transformar em heterossexual o filho, que não se abate por
essa rejeição, mostra-se firme e convicto do que quer ao lutar pela própria
liberdade sexual. Logo percebe que pode usar o emprego como uma maneira de
adquirir uma renda extra ilegal ao montar um plano com seu namorado, Arauto (Thomas
Aquino), um homem envolvido em uma gangue de assaltos contumazes. Arrisca tudo,
inclusive sua dignidade, embora esteja decidida de que fará por um motivo justo,
ou seja, arrecadar dinheiro para fazer o caro tratamento para curar o filho. A temática
que trata da homofobia e terapia religiosa com um mergulho na criminalidade desemboca
na crise do microcosmo familiar, transmitida com uma falsa leveza, mas de uma
dura realidade que se torna densa e cruel. Há todos os elementos de uma
experiência amarga, sem ser rasa ou apelativa, embora haja alguns exageros na
linguagem vulgar, fica distante do melodrama barato, fútil, eivado de clichês,
encontrado em obras menos meritórias. Markowicz é ousada e faz questão de mexer
nas feridas abertas da homofobia e dos discursos protagonizados por discípulos
de seitas oportunistas. Ao mesmo tempo em que provoca, lança soluções como no
desfecho, que vai do grave infortúnio pessoal da mãe ao encontro do amor
afetuoso e sem mágoas do filho e suas convicções inalienáveis atenuadas pelas
imagens do reencontro redentor como luzes para um futuro menos amargo, na
reviravolta do roteiro.
Constrói uma relação de vínculos, bem simbolizada sobre as
identidades através de uma obra que espelha as complexidades que habitam os lares
brasileiros. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas
na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo maternal é mantido
nesta metamorfose. Eis um drama familiar com pitadas sociais e religiosas que se
faz necessário por ser importante em um país com forte influência das igrejas
evangélicas, sobretudo pelo enredo para narrar os milagres de um impostor. O
objetivo é desconstruir em doses homeopáticas a obsessão doentia da
protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma
sociedade machista e conservadora. A diretora coloca com sutileza empatia à tolerância
no improvável relacionamento afetuosos de duas pessoas antagônicas, mãe e
filho, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas. Uma
espécie de alegoria de tempos enraizados no reacionarismo de um futuro cada vez
mais sombrio, onde a harmonia familiar pode ser um alento, embora distante por
conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo.
O propósito principal é a transformação interior das pessoas diante dos medos e
anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor
transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros
inesperados que aproximam emoções.
Em Pedágio se pode
visualizar uma essência humana de personagens psicologicamente bem concebidos dentro
de uma realidade brasileira com afetos e desafetos que compõem a existência de
pessoas próximas do nosso cotidiano, sem afastar a empatia, para lutar contra a
intolerância. Há uma atmosfera social míope de uma prática anacrônica de ideias
e imposições ultrapassadas. São situações tóxicas contrastando com o afeto e o
carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Refletem
uma sociedade em que há um intenso processo interno de descoberta para tentar lidar
com seus sentimentos marcados por uma educação rígida de outrora, em alguns
casos. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que
passam despercebidos, no qual a desorientação se estabelece por uma educação
típica familiar que entra em choque diante de revelações e experiências raramente
vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual. Conceitos que
deixam inúmeras perguntas, poucas respostas, para cutucar o espectador mais
distraído, sem insultar ou induzir, deixando a meditação livre, diante das
consequências apresentadas pela história sem tomar partido ou realizar
discursos eloquentes como bandeira de opção sexual. As sutilezas dos diálogos
com frases sucintas, mas com um objetivo puramente reflexivo, porém sempre
atingindo o alvo como o coração e a lucidez, sem a pretensão do didatismo
definitivo. Uma admirável abordagem sobre as diversidades sociais e culturais
na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.