sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Pedágio

 

Cura Milagrosa

O cineasta baiano Aly Muritiba em seu último filme, Deserto Particular (2021), contava uma história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de nossos dias atuais. A sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto, mas as diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficaram mais visíveis. Retratava o envolvimento na construção da trama de amor através dos contrastes de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens desencontrados pelas circunstâncias, surgiu a mulher trans criada pela avó, diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica pentecostal. Trabalhava durante o dia num centro de distribuição de alimentos, sonhava em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o prendiam àquele ambiente retrógrado; à noite se transmutava e vivia um outro mundo da fantasia, a mulher que mora dentro dele, até encontrar um policial pelo WhatsApp, que cometeu um erro grave e o coloca numa situação constrangedora e de iminente risco na carreira.

A promissora diretora e roteirista paulista Carolina Markowicz, conhecida pelo seu elogiado longa-metragem Carvão (2022), retoma e aprofunda a temática da cura gay em Pedágio. Faz uma crítica mordaz à opressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+, onde não faltam os discursos conservadores da moral e dos bons costumes com viés homofóbicos através dos dogmas religiosos, iguais aos da nossa realidade brasileira. No enredo, Suellen (Maeve Jinkings – mais um atuação irrepreensível) é uma mãe que leva uma vida simples trabalhando como cobradora de uma praça pedagiada em Cubatão (SP), onde a solidão e a frieza da vida estão presentes. Sua colega de trabalho, Telma (Aline Marta Maia), é uma religiosa ferrenha e carismática, embora seja uma falsa moralista, facilmente manipulável, fica o tempo todo aconselhando a protagonista a inscrever seu filho, Tiquinho (Kauan Alvarenga), num curso ministrado pelo pastor evangélico Isac (Isac Graça), um estrangeiro que propaga milagres com terapias para converter pessoas fora dos ditos padrões normais. O garoto é um adolescente que trabalha numa lancheria, usa cores vibrantes e se maquia em seus vídeos ao dublar divas com muitas plumas e paetês. Embora ainda não tenha atingido a maioridade, tem o próprio dinheiro para seu sustento e até ajuda a mãe como pode financeiramente. Mesmo que não seja dependente, ele precisa do carinho e do afeto maternal daquela que não aceita o filho como ele é ao depositar toda confiança no milagreiro divino que chegou na comunidade.

A trama aponta as idiossincrasias e as contradições da colega de trabalho e da mãe, que se julgam corretas, mas distantes de colocar alguém em um patamar moral, tanto pela ignorância como pela ingenuidade. Suellen está obsessiva em transformar em heterossexual o filho, que não se abate por essa rejeição, mostra-se firme e convicto do que quer ao lutar pela própria liberdade sexual. Logo percebe que pode usar o emprego como uma maneira de adquirir uma renda extra ilegal ao montar um plano com seu namorado, Arauto (Thomas Aquino), um homem envolvido em uma gangue de assaltos contumazes. Arrisca tudo, inclusive sua dignidade, embora esteja decidida de que fará por um motivo justo, ou seja, arrecadar dinheiro para fazer o caro tratamento para curar o filho. A temática que trata da homofobia e terapia religiosa com um mergulho na criminalidade desemboca na crise do microcosmo familiar, transmitida com uma falsa leveza, mas de uma dura realidade que se torna densa e cruel. Há todos os elementos de uma experiência amarga, sem ser rasa ou apelativa, embora haja alguns exageros na linguagem vulgar, fica distante do melodrama barato, fútil, eivado de clichês, encontrado em obras menos meritórias. Markowicz é ousada e faz questão de mexer nas feridas abertas da homofobia e dos discursos protagonizados por discípulos de seitas oportunistas. Ao mesmo tempo em que provoca, lança soluções como no desfecho, que vai do grave infortúnio pessoal da mãe ao encontro do amor afetuoso e sem mágoas do filho e suas convicções inalienáveis atenuadas pelas imagens do reencontro redentor como luzes para um futuro menos amargo, na reviravolta do roteiro.

Constrói uma relação de vínculos, bem simbolizada sobre as identidades através de uma obra que espelha as complexidades que habitam os lares brasileiros. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo maternal é mantido nesta metamorfose. Eis um drama familiar com pitadas sociais e religiosas que se faz necessário por ser importante em um país com forte influência das igrejas evangélicas, sobretudo pelo enredo para narrar os milagres de um impostor. O objetivo é desconstruir em doses homeopáticas a obsessão doentia da protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma sociedade machista e conservadora. A diretora coloca com sutileza empatia à tolerância no improvável relacionamento afetuosos de duas pessoas antagônicas, mãe e filho, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas. Uma espécie de alegoria de tempos enraizados no reacionarismo de um futuro cada vez mais sombrio, onde a harmonia familiar pode ser um alento, embora distante por conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo. O propósito principal é a transformação interior das pessoas diante dos medos e anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros inesperados que aproximam emoções.

Em Pedágio se pode visualizar uma essência humana de personagens psicologicamente bem concebidos dentro de uma realidade brasileira com afetos e desafetos que compõem a existência de pessoas próximas do nosso cotidiano, sem afastar a empatia, para lutar contra a intolerância. Há uma atmosfera social míope de uma prática anacrônica de ideias e imposições ultrapassadas. São situações tóxicas contrastando com o afeto e o carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Refletem uma sociedade em que há um intenso processo interno de descoberta para tentar lidar com seus sentimentos marcados por uma educação rígida de outrora, em alguns casos. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que passam despercebidos, no qual a desorientação se estabelece por uma educação típica familiar que entra em choque diante de revelações e experiências raramente vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual. Conceitos que deixam inúmeras perguntas, poucas respostas, para cutucar o espectador mais distraído, sem insultar ou induzir, deixando a meditação livre, diante das consequências apresentadas pela história sem tomar partido ou realizar discursos eloquentes como bandeira de opção sexual. As sutilezas dos diálogos com frases sucintas, mas com um objetivo puramente reflexivo, porém sempre atingindo o alvo como o coração e a lucidez, sem a pretensão do didatismo definitivo. Uma admirável abordagem sobre as diversidades sociais e culturais na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.

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