sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Puan

Embates Filosóficos

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, Puan, apelido pelo qual é tratada uma instituição universitária que fica perto da estação do metrô em Buenos Aires, que empresta seu nome. Esta comédia dramática com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz uma obra interessante, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e amizades. Apesar do emprego de um humor pastelão com excessivas cenas escatológicas na parte inicial, mostra-se atual e esclarecedora do meio para o fim, pela valorização do cotidiano de alguns personagens em conflito, tanto pessoal como profissional. A dupla de cineastas María Alché, do longa de estreia Família Submersa (2018) - é a mesma atriz revelada por Lucrecia Martel em A Menina Santa (2004)- e Benjamín Naishtat, diretor dos admiráveis Bem Perto de Buenos Aires (2014) e Vermelho Sol (2018). Foi laureado com dois prêmios no Festival de San Sebastián, na Espanha: Melhor Ator para Marcelo Subiotto e Melhor Roteiro.

Já se tornaram frequentes as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrecia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008); e Mariano Cohn e Gastón Duprat com os ótimos O Homem ao Lado (2008) e O Cidadão Ilustre (2016), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo. Muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise social econômica que ainda perdura. Também se impôs no mercado, entre tantos outros fatores, pela presença do icônico ator Ricardo Darín.

A trama retrata a força cultural do povo argentino diante da crise política e sócio-econômica ao focar a árdua trajetória de um professor de filosofia, aparentemente já ultrapassado. Após a morte por mal súbito do mentor do protagonista, o docente Marcelo Pena (Marcelo Subiotto- em interpretação pouco inspirada) está pronto para assumir a cadeira de professor titular de Filosofia da Universidade de Buenos Aires (UBA). É um homem pouco interessante no dia a dia, com atrapalhações em seu cotidiano com a crise da meia-idade iminente. Embora seja aplicado, demonstra algumas limitações, ainda que se ache apto para a escolha no cargo, seus esforços de anos de labuta podem ter sido em vão. Tudo muda com o retorno inesperado do ex-colega, de Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia- convincente na atuação). O oponente é mais atraente, carismático, dotado de oratória brilhante, leciona na Alemanha, dá cursos em Nova Iorque e namora uma famosa estrela do cinema. Quer a vaga e acaba afetando os planos de Pena, que utiliza exemplos do cotidiano de seus alunos para ilustrar as complexas teorias de Thomas Hobbes, Heidegger e, principalmente, o pensamento do filósofo suíço defensor do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau: “o ser humano é melhor quando está mais próximo da natureza”. A rivalidade entre os dois mestres de filosofia se estabelece para concorrer na substituição do célebre professor titular que morreu. Há as ambições reais que sempre foi e continuará sendo o caminho para discussões e encenações desprovidas de uma boa lucidez.

A comédia é apresentada de forma intercalada por capítulos que se encerram com a câmera com um tempero agridoce na rotina dos dias de ebulição em Buenos Aires que se revelam fragmentos de situações de um caos social com o fechamento prematuro da faculdade por corte de verbas, numa situação bem típica de governantes divorciados do ensino e da educação, que remete para a premonição do governo recém- empossado de Javier Milei. A dupla de realizadores aborda com uma dose de cinismo mesclado de humor escrachado os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado intelectual do exterior, que lembra o retorno do escritor no drama O Cidadão Ilustre, visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Sujarchuk é um galã vaidoso e suscetível às bajulações que deu asas para sua candidatura ao cargo, faz um discurso exibicionista em alemão. Por tudo isto é visto como um oportunista por alguns, mas para outros como um elemento de salvação para um momento de efervescência política do contexto social na qual está inserida.

A inflação galopante e os cortes nos gastos públicos fazem parte do dia a dia da população, que impulsiona os conflitos da história, exibindo as manifestações dos estudantes que tomam as ruas portenhas diariamente e a luta para manter viva a universidade, símbolo poderoso da realidade pelas distorções apresentadas. Puan aponta as contradições e constatações num cenário construído pela mediocridade e ausência de inteligência, como da fútil idosa milionária que paga bem por aulas de filosofia, mas dorme quando está sendo iniciada numa explanação sobre O Estrangeiro, de Albert Camus. Só acorda com o barulho ensurdecedor do aspirador de pó acionado pela empregada. A mesma personagem que simboliza um cenário de decadência, desprovido de interesse maior, contrata um mágico para seu aniversário que acaba rompendo o contrato, mas logo é substituído por um pensador grego, transformado numa figura caricata. Os defeitos e as virtudes oriundos da pretensão dos donos da palavra final estão embutidos na citação no epílogo da última parte de Fédon, um dos Diálogos de Platão, onde é narrada a morte de Sócrates. Disseca sobre a maturidade que poderia chamar-se “da imortalidade da alma”, ou “das ideias”, ou “dos contrários”. Eis um dos grandes momentos deste instigante filme, quando no encerramento de um ciclo e de uma vida, uma pergunta existencial fica sem resposta, porque nada é definitivo e absoluto.

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