Cidadão Kane
Revisitado
O eficiente cineasta David Fincher conta a polêmica história
do crítico de teatro e roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman- de
estupenda atuação) sobre os bastidores em Hollywood da obra-prima Cidadão Kane (1941), dirigida pelo jovem
prodígio do rádio e do teatro Orson Welles, aos 25 anos, em seu filme de
estreia, inspirado no magnata William Hearst. Travou-se uma árdua luta pela
autoria do célebre roteiro e o respectivo crédito no longa-metragem, apontado
por uma grande parcela dos críticos como o maior filme de todos os tempos. Mank é uma mescla de drama com
cinebiografia e foi escrito por Jack Fincher, pai do realizador David, que morreria
em 2003. Desenvolveu o projeto ao lado do filho por muitos anos até ser finalmente
bancado pela Netflix. Deverá ter várias indicações ao Oscar de 2021. O enredo segue
com muita engenharia a tumultuada disputa de Mankiewicz- conhecido no meio
cinematográfico como Mank- pela inserção de seu nome nos créditos, chegando a
desistir de receber quaisquer valores previamente acertados com a produção. Eis
um dos filmes mais autorais e intimistas do diretor, que tem em sua filmografia
Seven (1995), Zodíaco (2007), O Curioso Caso
de Benjamin Button (2008) e A Rede
Social (2010).
O lado obscuro de Hollywood quase sempre foi um tema abordado
dentro de um exercício satírico e crítico que já rendeu obras memoráveis de
diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy
Wilder, Assim Estava Escrito (1953),
de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram
alusão ou alguma crítica velada foram
Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas,
o festejado vencedor do Oscar Birdman
ou (A Inesperada Virtude da Ignorância
(2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do
veterano cineasta canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica
a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem
limites das celebridades hollywoodianas, recheado de sarcasmo para dar vida e
consistência devastadora à indústria norte-americana. Recentemente tivemos Era Uma Vez em...Hollywood (2019), do
cultuado Quentin Tarantino, prestando uma homenagem prazerosa à indústria
cinematográfica mais famosa do mundo, ambientada em Los Angeles, no ano de
1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das
profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais.
O realizador coloca de maneira hábil e equilibrada esta
perturbadora trama em que são inoculadas as verdades mescladas com mentiras
relatadas através da magia das grandes fábulas naquele universo fantástico de
sonhos realizados ou frustrados. A desglamourização é acentuada na inventiva subversão
ficcional contrapondo com a realidade de fatos ocorridos de repercussão. Um
retrato significativo de Mank, cujas tendências de esquerda são apontadas para
macular o roteirista quase que marginalizado pelos discursos anticomunistas de
produtores e os responsáveis dos grandes estúdios. Tachado de ser somente um
inveterado alcoólatra e fanfarrão de comportamentos obsessivo-destrutivos por
alguns, visto como um profissional genial por outros, em diálogos marcantes e
profundos de uma narrativa em tom quase que documental. Mas está presente a ironia
embutida pela atmosfera do bom humor com sutilezas nas belas imagens de um
cinema elucidativo, registrado por uma fascinante fotografia em preto e branco,
assinada pelo competente Erik Messerschmidt, plenamente harmonizada com a
atmosfera da época, embora traga um sabor amargo de uma artificial realidade.
Méritos para Fincher que faz com sensibilidade uma revisita à
Era de Ouro em Hollywood fustigada pela crise financeira e ao processo conturbado
do projeto do clássico Cidadão Kane. Num cenário antigo
faz um passeio ao imaginário do espectador, recriando com esmero e fidelidade
através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios que nos remetem
para os anos de 1930. Logo após a Grande Depressão que ocasionou uma forte
recessão econômica atingindo o capitalismo internacional e terminando apenas
com a Segunda Guerra Mundial. Uma autêntica reconexão com o passado para contar
um consistente imbróglio, sem cair na armadilha de prestar falsos tributos. Um
mergulho inexorável num ambiente marcado por fofocas, bizarrices, intrigas e
vaidades, na qual o personagem central tinha dúvidas pelas circunstâncias
afloradas nos confrontos com o então neófito diretor Orson Welles. Lança
reflexões sobre os pensamentos individuais dos personagens envolvidos pelas
batalhas pessoais num contexto de incertezas dos princípios econômicos em jogo. Eram os prazos se
esgotando e o irmão de Mank, Joe, assumindo a finalização do roteiro para
terminar a obra com sérias dificuldades financeiras, que seria celebrizada
posteriormente. Havia preocupação com o povo sem dinheiro para pagar ingresso
no cinema e a proposta para projetar os filmes na rua mesmo.
Mank retrata uma desconstrução
de Hitler e o povo alemão é colocado em xeque, os interesses políticos em
evidência, em especial a ode ao Partido Republicano dos EUA e as falsas
notícias lançadas supostamente pelo Partido dos Democratas na eleição da
Califórnia, em um intrincado confronto entre socialismo e capitalismo, além da
relação com a eleição no Canadá do simpático candidato que agradaria aos
norte-americanos. Entre os interesses políticos, há uma abordagem sobre a
Associação dos Roteiristas por melhores salários em rota de colisão com os
grandes estúdios da MGM e Warner, bem como as aquisições e as trocas de
acionistas, além dos filmes com informações falsas (fake news) para alavancar e proteger
determinado candidato sintonizado com as ideologias defendidas por poderosos
estúdios. Neste contexto, se insere o casamento em ruínas, após 20 anos, de Herman
J. Mankiewicz, embora o filme esteja focado no protagonista e sua fiel
escudeira, a secretária e datilógrafa. Eles estão permanentemente no rancho contrastando
com os bons momentos de Hollywood e sua rotina de grandes tomadas de cavalos, mocinhos
e vilões em verdejantes campos imensos. Porém, o desfecho catártico é revelador
pelos vômitos escatológicos simbolizando as injustiças sociais metaforicamente invocadas
através do imortalizado personagem Dom Quixote no jantar de gala dos poderosos,
entre os quais estava William Hearst, com os astros e estrelas hollywoodianos, em
uma história complexa neste admirável filme de época a ser prestigiado.