Um Gênio Reverenciado
Empolgante com emoção à flor da pele, assim é o documentário
Ennio, O Maestro que conta a vida e a
carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone (1928-2020). O
artista se tornou um dos mais conhecidos compositores de trilhas sonoras de
filmes, especialmente os faroestes clássicos, além de dramas e sagas
históricas. O diretor é o conterrâneo Giuseppe Tornatore, para quem trabalhou
em Cinema Paradiso (1988) e A Lenda do Pianista do Mar (1998), bem
como escolheu para realizar sua cinebiografia, filmar e entrevistar o
biografado, com o apoio de inúmeros cineastas e parceiros próximos, por cinco
anos, até 2019, um ano antes de falecer, em decorrência de uma queda em casa,
onde fraturou o fêmur. Trabalhou até o fim para a inauguração da nova ponte, em
Gênova, numa peça em memória das vítimas do desabamento da antiga que desabou e
matou 43 pessoas, em 2018. Uma excelente amostragem das observações feitas no
cotidiano, a vida que iniciou com um presente do pai na juventude, um trompete
para se tornar músico, embora pretendesse ser médico. Gostava de inovar, porém
jamais traiu sua origem da música clássica, em especial Stravinsky, que
aprendeu com Goffredo Petrassi, o compositor, professor e principal mentor de
Morricone. Mas, aos poucos foi migrando para a música da sétima arte, buscando
inspiração em Johann Sebastian Bach e Beethoven.
O diretor apresenta com elegância e seu estilo peculiar o
maestro no processo criativo, autor de mais de 500 faixas de música para
cinema, televisão e obras clássicas. Abocanhou por duas vezes o Oscar. O
primeiro como honorário pelo conjunto da obra, e o segundo com Os Oito Odiados (2015), de Quentin
Tarantino, denominado como “hiperbólico” pelo seu exagero contumaz, ao se
derramar em elogios a Morricone. As entrevistas e os depoimentos com artistas
renomados passam pelo já mencionado Tarantino, Sergio Leone, Quincy Jones,
Bruce Springsteen, John Williams, Liliana Cavani, Sergio Corbucci, Clint
Eastwood, Paul Anka, Wong Kar Wai, Marco Bellocchio, Dario Argento e Bernardo
Bertolucci, entre tantos outros. Também traz outros fatos não revelados sobre o
compositor e arranjador, como seu amor por xadrez, que ajudou em suas
composições, seu pensamento e motivos por trás de cada faixa. Para um dos
entrevistados, o maestro era "geométrico, matemático"; para outro,
era "espiritual, transcendental". O personagem central assistiu duas
versões, uma com 6h40min; a segunda, com mais de 4h; mas o longa foi finalizado
com uma duração de 156minutos, que passam voando, com gosto de quero mais.
Há alguma similitude de temática com outro grande compositor
no documentário Aznavour por Charles,
dirigido por Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles
Aznavour (1924-2018). Celebrizado pelo público e pela crítica pelas suas
canções marcantes com uma carreira de 70 anos e mais de mil canções escritas com
participação em dezenas de filmes, inclusive menciona agradecido e carinhosamente
a amizade com o cultuado cineasta François Truffaut, ao ter a oportunidade de
fazer aparições breves em algumas das realizações do mestre francês. Ennio, O Maestro também traz na sua
narrativa a essência do cinema e sua fusão com a música, sendo um filme sensível,
delicioso e leve sobre o sentido existencialista, seus ensinamentos e emoções
com fino humor decorrente de uma vida significativa deste maestro apaixonado
por música clássica e sua derivação monumental para a cinematografia colocada
na tela. É admirável a forma da engrenagem que contribui sobre a arte da
criação musical com reflexos diretos no cinema. Foi construído com um prólogo arrastado
de uma narrativa com quase 30 minutos para as apresentações pessoais do
personagem documentado. Às vezes, com alguma simplicidade; em outras, na
maioria, o amor, a dedicação e a dignidade estampada sobre o emblemático artista
e sua vocação que transcende da música para o cotidiano dos mortais humanos.
Rege harmonicamente com ardor sua orquestra e o grupo de coralistas, que gira em torno da vida
através de suas canções inesquecíveis e seu olhar atento para uma impecável
apresentação.
A realização estampa e foca a maturidade de Morricone para fazer
as duas coisas ao mesmo tempo. A música clássica e a de cinema, esta denominada
de absoluta, termo este que utilizava para falar sobre a produção concebida
como um ato livre, não condicionada a outras expressões artísticas. Criou algumas
das mais marcantes trilhas sonoras do cinema, como nos faroestes de Leone, Por um Punhado de Dólares (1964), Três Homens em Conflito (1966), Era uma Vez no Oeste (1968), e a
obra-prima das trilhas em Era uma Vez na
América (1984); dos filmes histórico-políticos de Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel (1966), Queimada (1969) e Ogro (1979); de Dario Argento, O
Pássaro das Plumas de Cristal (1970) e O
Gato de Nove Caudas (1971); de Terrence Malick, Cinzas no Paraíso (1978); de Roland Joffé, A Missão (1986); de Brian De Palma, Os Intocáveis (1987); de Pasoline, Teorema (1968); de Elio Petri, Investigação
Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970); de Giuliano Montaldo, Sacco e Vanzetti (1971); de Bertolucci, 1900 (1976). E tantos outros que foram
mencionados com ilustrações de cenas inesquecíveis.
Ennio, O Maestro é
um documentário intenso, grandiloquente, sublime e de formato espetacular, que vai muito além de enumerar os sucessos na eficiente montagem que une vários
pontos de uma trajetória em que a música é o foco primordial da história
contada. Admirável a menção especial ao seu grande amor, a esposa Maria Travia,
união que durou 63 anos, a quem submetia as composições como consultora final antes
de repassar para os cineastas. O artista fala com algum resquício de mágoa da
lembrança outrora de quando houve a ocupação da Itália na Segunda Guerra
Mundial, fato que nunca esqueceu diante da humilhação de tocar por um prato de comida.
Também a tristeza de não ter composto para Laranja
Mecânica (1971), embora consultado por Stanley Kubrick. Houve um
dissimulado ruído de comunicação, pois Leone informou ao colega que não podia
liberá-lo, tendo em vista que o longa Quando
Explode a Vingança (1971) ainda estaria sendo realizado, numa pequena
mentira do seu mais fiel parceiro. Eis um retrato pungente documentado da vida
de um gênio e sua fervorosa vocação como compositor e maestro, com todo seu
magnetismo e brilho quase inigualável no universo cultuado da música, em
especial as trilhas sonoras para o cinema. Uma ode para os apreciadores da pura arte na companhia musical saborosa e sedutora neste tributo
arrebatador.