Liberdade Inegocíável
Um dos mais aguardados lançamentos do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano era O Acontecimento, segundo longa-metragem da diretora Audrey Diwan, que também assina o roteiro em parceria com Anne Berest. Uma adaptação do romance homônimo de Annie Ernaux, é a história vivida pela escritora, hoje aos 81 anos, ambientado na França, em 1963. Vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza de 2021, sendo a segunda diretora francesa a receber esse prêmio. Também abocanhou o prêmio da crítica no mesmo festival do ano passado. Antes de se tornar cineasta, trabalhou como editora, jornalista e roteirista. Escreveu vários livros, dentre eles La Fabrication d’un mensonge, que recebeu o prêmio René Fallet, em 2008. Também faz parte do Collectif 50/50, uma ONG francesa que promove a igualdade entre homens e mulheres na indústria cinematográfica.
O drama conta a saga de Anne (Anamaria Vartolomei- de atuação estupenda, recebeu a láurea de atriz revelação no César, o Oscar francês), onde uma estudante promissora de literatura que adora dançar, pobre, acaba por ter uma gravidez indesejada. Resolve abortar, mas seus colegas, amigos e os médicos irão se colocar contra sua decisão irrefutável. Está aparentemente pronta para fazer qualquer coisa para colocar em prática seu desejo, pois entende que não está preparada para a maternidade naquela ocasião fora do contexto programado, tendo em vista que seus estudos são prioridade. Aquela boa aluna começa a desabar e suas notas são cada vez piores diante das fragilidades que povoam sua mente de ser mãe. Entende que uma criança naquele momento iria brecar seus planos para o futuro. Mesmo alegando que é dona de seu próprio corpo, ela busca sozinha seu inarredável objetivo num universo negacionista. Há uma corrida contra o tempo que passa rápido, além do desafio da lei que proibia terminantemente o aborto provocado, exceto o voluntário, como menciona os obstetras. Na França, a interrupção voluntária da gravidez só foi legalizada em 1975.
A realização tem requintadas pitadas de suspense psicológico, dirigido com sobriedade, de maneira nua e crua, vai direto ao ponto, com traços autobiográficos tanto da cineasta como da escritora. A diretora constrói um universo perverso advindo do tempo que passa cronologicamente a cada semana da gestação, até chegar a nove semanas. Tempo este que vai se esgotando, até receber uma indicação de uma colega para procurar uma parteira de um subúrbio. O périplo angustiante da protagonista começa na cama da casa, uma espécie de clínica clandestina de fundo de quintal, passando pelos vasos sanitários do alojamento estudantil da faculdade até ser levada inconsciente para o hospital. O estômago do espectador embrulha por vezes, mas Diwan acompanha a personagem central com dignidade, posicionando a câmera de maneira bem próxima, num panorama com clímax angustiante, dá para ouvir a respiração ofegante que entra na alma para um olhar aterrorizante, tanto do espectador como da jovem.
A temática do drama é polêmica por retratar a decisão da interrupção da gravidez voluntariamente, que irá trazer uma notável contribuição ao cinema, em que já teve ótimas obras de forma semelhante. O tema por ser indigesto e controvertido fez furor com o cineasta romeno Cristian Mungiu em 4 Meses,3 Semanas e 2 Dias (2007), retratou em 1987, nos últimos dias do comunismo, duas jovens que dividem um quarto num dormitório estudantil, quando uma delas descobre que está grávida, mas o aborto é ilegal na Romênia. Consegue uma pessoa que irá fazer o procedimento, mas ao saber do estado adiantado, aumenta as exigências e cobra um preço que as colegas não estão preparadas para pagar. Eliza Hittman dirige com contundência Nunca, Raramente, Ás Vezes, Sempre (2020), sobre duas amigas e primas inseparáveis que viajam pela rural Pensilvânia (EUA), quando uma delas inesperadamente engravida, mas é confrontada com uma legislação conservadora, sem piedade de mulheres que tentam abortar. O realizador argentino Pablo Giorgelli também retrata de maneira crucial o longa Invisível (2017), para contar a história de uma garota de 17 anos que mora com a mãe, em um pequeno apartamento no bairro de La Boca. Descobre que está grávida de um homem bem mais velho, casado e seu chefe, onde terá uma difícil decisão: fazer ou não o aborto.
Um dos grandes méritos de Diwan é não deixa cair no melodrama fácil e apelativo. Deixa transcorrer com imparcialidade as situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente da tensão e da ansiedade se intercalarem lentamente, com a exposição visceral de um filme que mostra a dureza moralista de uma sociedade que se apropria nefastamente dos corpos das mulheres. São os elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado e asfixiante da batalha claustrofóbica de uma mulher livre, mas ao mesmo tempo reclusa pela opinião pública, como visto recentemente no caso de uma atriz global que viu seu nome divulgado nas redes sociais, teve sua privacidade invadida e devastada sem piedade, por querer doar o recém-nascido fruto de estupro. Nos EUA, a Suprema Corte derrubou na última semana de junho deste ano uma decisão anterior que virou lei desde 1973, conhecida como Roe vs. Wade, que permitia a prática do aborto. Também na semana passada, uma menina de 11 anos, que foi estuprada em Santa Catarina, teve negada por uma juíza a interrupção da gravidez, obtendo em grau de recurso o direito de realizar tal prática permitida legalmente pelo Código Penal.
O Acontecimento é uma magnífica obra que transforma uma ácida história de um drama social de resistência e redenção da mulher, muito bem articulada num roteiro enxuto pela marca de uma diretora promissora na carreira, que cria uma digna realização humanista, com tintas dolorosas. Traz uma intensidade de uma narrativa pela ótica de uma mulher, para mesclar situações presentes com um futuro que tanto almejou a protagonista ao tentar driblar as adversidades. Apresenta uma invejável força de seu interior e uma resiliente capacidade emocional que quase se esvai, e quase se desequilibra, por estar angustiada pelos transtornos diante da iminência do rompimento com o amanhã e a probabilidade da perda desta batalha. Uma reflexão magistral sobre a condição humana feminina e sua meta de vida se fragilizando, embora tenha uma pujança feroz estimulante de ser livre e impor sua vontade de um futuro pela escolha pretendida da liberdade inegociável desta obsoleta realidade ainda existente ditada pelos conservadores e moralistas de plantão. Um filme imperdível.
Um comentário:
Pretendo assistir com certeza
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