terça-feira, 21 de junho de 2022

Está Tudo Bem

 

Direito de Morrer

Um dos mais aguardados lançamento do Festival Varilux de Cinema Francês de 2021 foi o controvertido Está Tudo Bem, com direção do producente François Ozon, nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. O longa-metragem foi visto com algum entusiasmo pela crítica internacional no Festival de Cannes do ano passado. O cineasta tem em sua filmografia realizações com temáticas diversas, tais como O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a linda Paula Beer; o magnífico O Amante Duplo (2017); e o polêmico Graças a Deus (2019), baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, no qual retratou de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia escancarada na Igreja Católica, com denúncia de requintes psicológicos nefastos na sua mais pura essência, mesmo sem grandes pretensões estilísticas.

Ozon, agora, constrói um painel doloroso para contar uma amarga história sobre André (André Dussollier), o industrial de 85 anos de idade é acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado. Ele é um homem totalmente independente, homossexual, e apaixonado pela vida, porém está cansado da situação crítica de sua saúde cada vez mais debilitada, acaba por decidir que não quer mais continuar a viver sequelado e pede à sua filha Emmanuèle (Sophie Marceau), uma romancista realizada na sua vida privada e profissional, para ajudá-lo a terminar com esta agonia. Ela consulta e pede orientação à irmã, Pascale (Géraldine Pailhas), sobre a escolha em aceitar a vontade do pai ou convencê-lo a mudar de ideia. Convivem com a presença indesejada do suposto namorado do pai, que ronda constantemente o hospital, e as irmãs o chamam de “O Canalha”. A ex-esposa de André, mãe das duas mulheres indecisas, Claude (Charlotte Rampling), é uma escultora famosa que tem o Mal de Parkinson, parece não estar entendendo lucidamente o que está acontecendo. O realizador busca no cotidiano familiar a leveza de fatos pitorescos para diluir as emoções sentimentais da jornada dos personagens em cena que transitam do choro quase contido contrastando com aspectos irônicos da vida, porém o espectador assiste de maneira curiosa o desenrolar da trama contada com elegância e sem artifícios da comiseração alheia.

A temática é polêmica por retratar a decisão das filhas sobre direito de morrer do pai pelo método do suicídio assistido na Suíça, uma situação controvertida e bem atual como do ator Alain Delon que optou pela prática diferente da eutanásia ao exigir do paciente ingerir uma cápsula que contenha substância letal, prescrito por autoridades médicas, de maneira discernida e consentida expressamente, mas com o auxílio de terceiros. No longa, o protagonista inicia uma ampla mobilização para conseguir o direito à morte assistida numa clínica na Suíça, mas para isto precisará convencer totalmente as filhas relutantes. Uma profunda abordagem da escolha em continuar vivendo ou não, além de contar a história comovente e surpreendente de uma família em busca de entendimento acerca da existência e o desenlace pela morte com dignidade. Uma reivindicação feita por muitos pacientes, embora ainda seja um assunto tabu na França. O diretor, de forma admirável, não cai em armadilhas fáceis para fisgar o espectador com situações lacrimejantes, mas poderia pelas circunstâncias conduzir a trama para um filme menor com demagogias baratas, faz uma narrativa hábil com um propósito sério para uma realização madura e provocativa, afastando-se das tentações de pieguismos apelativos.

Tanto no suicídio assistido, como na eutanásia onde outra pessoa executa o pedido do paciente, geralmente através de uma injeção letal, eis uma boa contribuição do cinema para esta temática tabu e polêmica, com ótimas obras de abordagem idêntica. O tema por ser indigesto e contraditório fez Marco Bellocchio não se posicionar em A Bela Que Dorme (2012), deixa nas entrelinhas uma contrariedade implícita, possivelmente por não querer se incomodar com a igreja, tudo meio que implícito, completamente oposto a Alejandro Amenábar em Mar Adentro (2004), que aborda diretamente um homem que luta para ter o direito de pôr fim à sua própria vida. Lúcido e inteligente, luta na justiça para decidir sobre seu destino, o que lhe gera problemas religiosos, com a sociedade e até com os familiares. Michael Haneke em Amor (2012) instiga por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia abrupta redentora ao dar um soco no estômago do espectador, deixando-o meio grogue, mas ao mesmo tempo reflexivo sobre métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dá um tapa na cara da morte, como fez o personagem central num ato de desabafo pelo desespero. Stéphane Brizé em Uma Primavera com Minha Mãe (2012) fustiga pela sua essência direta rasgando a alma do espectador numa amostragem sobre a morte e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de uma vida repleta de contratempos e solidão para uma decisão tomada com lucidez pela ausência de perspectiva para o ser humano.

Está Tudo Bem é uma realização sustentada de forma marcante ao retratar com leveza um tema árido e tão controvertido. Há ainda os instrumentos burocráticos de documentos, consultas, viagens, medicações e autorizações para atingir a finalidade desejada em meio a dores, tristezas, lembranças do passado das filhas, e o pai com a ideia fixa e intransigente. Antes, o paciente quer uma despedida de gala da vida que lhe foi tão boa. O roteiro minimiza a finitude, mas aponta a triste ironia de perceber que a opção do velho pai burguês, brincalhão, ranzinza, tirano, e, às vezes violento, passará deixando a vida que segue, como a do neto que se prepara para um recital musical. Um drama significante de uma proposta sincera e crucial para uma análise quanto às posições religiosas e da legalidade abordada na França e na Suíça. O grande mérito de Ozon é retratar com equidistância a polêmica do drama, especialmente a morte, numa narrativa com sutileza e boa dose de desprendimento equilibrado. Afasta-se dos horrores da perda melancólica definitiva, mantendo a lucidez e o desejo como fusão de maneiras dignas do indivíduo pelas suas escolhas. Arrebata com interessantes cenas, como a do jantar de despedida. Um filme maior pelo realismo cênico de um epílogo improvável em nossa realidade para refletir sobre a espera do ocaso sem volta, que cativa pela condução sem arroubos, num roteiro enxuto que aponta dogmas existentes dos defensores da vida a qualquer preço.