segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (A Rede)


A Rede

A Rede é, talvez, o melhor filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Com a estupenda direção do sul-coreano Kim Ki-duk, também autor do fascinante roteiro que sustenta uma narrativa sólida e equilibrada. Da sua filmografia destaca-se o sensível e comovente Primavera, Verão, Outono, Inverno e...Primavera (2003); depois realizou Casa Vazia (2004, 28ª Mostra), sobre um jovem sem rumo que costumava invadir casas estranhas quando os donos estavam fora, mas tudo muda quando encontra a proprietária no local; ousou de forma contundente com Pietá (2012), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, obra vigorosa sobre a interação da família como núcleo e base contextualizada, o sadismo sem limites, o prazer pela dor, o sofrimento cruel do próximo e o papel da mãe em xeque, além do avanço brutal do capitalismo e da crise de valores.

O filme é uma aula de cinema pela maestria de um dos mais expressivos cineastas em atividade. A trama centraliza o foco num prosaico pescador (Ryoo Seung-Bum) que mora na Coreia do Norte com a mulher e uma doce criança. Mas num dia qualquer vê seu barco sofrer uma pane, após a rede se enrolar no motor, fica à deriva e vai parar em águas da Coreia do Sul, ultrapassando a fronteira dos dois países. Uma alegoria premonitória para o terrível drama que lhe espera, pois irá conhecer as profundezas do poder e os métodos de mecanismos pouco convencionais para uma nação capitalista democrática. Ao ser detido no país vizinho, é acusado de espião, passará por sessões de tortura com agressão explícita, física e psicológica. É obrigado a escrever várias vezes nos mínimos detalhes, à exaustão, o que fazia no seu país de origem. A busca do suicídio é uma tentativa desesperada de saída para escapar daquele martírio, ao relutar em dizer o que sabia, tendo vista que prestou serviços militares numa corporação do Exército.

Apenas seu segurança pessoal designado pelo governo acredita nele e cria-se uma relação estreita de cumplicidade e solidariedade. A forjada fuga não tem seu respaldo, pelo contrário, coloca-se contra e aposta na inocência de seu pupilo. O pescador conhece os encantos da deslumbrante Seul e seus avanços tecnológicos. Encontra uma prostituta em situação difícil, mas antes terá um fortuito encontro com um acusado de espionagem, que lhe passará uma missão para encontrar a filha e entregar um aparente e singelo poema. O enredo é instigante e não perdoa nenhum dos lados, fica neutro entre o capitalismo e o comunismo. Após ser submetido a severas investigações, sem provas cabais convincentes, o personagem central é enviado de volta para casa. Nestas alturas o caso já havia virado um incidente diplomático de grandes proporções entre as duas nações, com repercussão na imprensa internacional.

O drama com alta dosagem de suspense pela narrativa fiel, dura e seca, segue o caminho da dolorosa luta daquele homem simplório que perde a liberdade, mas não a dignidade até ser deportado com um motor novo no barco pesqueiro, um ursinho que recebeu de presente para dar à filha e alguns dólares do amigo guardião, o que lhe trará dissabores e mais encrencas. O calvário de tormentos continua no seu retorno tão desejado para os braços dos familiares. Novamente vira alvo de investigação por ter cedido às tentações do capitalismo, sendo mais uma vez interrogado com os mesmos, ou até piores, métodos de um ritual rigoroso, tendo que reescrever todo seu itinerário durante o período preso para averiguações e as ofertas para desertar. Até a esposa aparece com marcas da violência durante o período de ausência do marido. Nada se altera, tudo se repete e se copia. Tanto faz se é democracia ou regime de exceção, pelo olhar pessimista de Kim Ki-duk. O filme escancara a corrupção dos temidos militares norte-coreanos, que não perdem tempo em enfiar no bolso as notas verdinhas confiscadas do pescador e oriundas dos irmãos sulistas separados pela guerra.

O drama explicitado em A Rede comove o espectador como um míssil na boca do estômago, perturba pela exuberante narrativa das idiossincrasias dos governantes e seus poderes ilimitados que irão ao encontro da bestialidade humana, suplantando as feras selvagens das florestas intransponíveis. O desfecho violento, sem esperança e com tintas trágicas do indivíduo simples e honesto, como um marisco entre o rochedo e o mar, sendo a grande vítima, pois nunca mais será o mesmo, é um claro exemplo da desconstrução e da derrocada do indivíduo dentro da coletividade. A guerra entre países vizinhos afastados por um capricho de governos pedantes que deixam a arrogância sem freios invadir o universo da paz e das relações humanas civilizadas sendo atropeladas. O filme promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar a reveladora mentira dos opressores. Uma mini obra-prima que contextualiza a amargura e o pessimismo sobre as instituições cada vez mais desacreditadas.

domingo, 30 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Para Onde, Senhora?)


Para Onde, Senhora?

A Índia está de volta cinema indiano está de volta à 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo com Para Onde, Senhora?, direção e roteiro da cineasta alemã Manuela Bastian, nascida em Munique, estudou artes em sua cidade natal e na Academia de Cinema Baden-Württemberg. Em 2011, viajou à Índia e completou o primeiro documentário Pink Struggle. Também dirigiu os curtas Sandy Lost in Space (2013) e Remis (2013), além do média-metragem Papa Africa (2015). Mostrou todo seu vigor nas discussões acaloradas sobre o machismo enraizado nos indianos, com o viés típico de censura à mulher vanguarda que tenta se libertar das amarras fortemente conservadora na sociedade e na cultura milenar de um povo convicto pelos aspectos religiosos.

Tornar-se motorista profissional é o maior sonho de Devki, neste misto de documentário com drama realizado em coprodução com a Alemanha. Retrata o dia a dia de uma jovem que quer ser taxista, custe o que custar. Mas para isto terá que enfrentar diversos tabus numa sociedade eminentemente com predomínio da cultura dos homens. O longa de 83 minutos está dividido em três partes: Pai, Marido e Filho. A personagem central terá que passar por diversos obstáculos, a começar pelas provas e as dificuldades na autoescola para adquirir a carteira de habilitação.

O docudrama começa com a sua recente separação e retorno à casa dos pais, num ambiente hostil e pouco convidativo para recepcionar uma filha separada de um homem nada carinhoso e compreensível. Devki não é acomodada, quer logo seguir uma carreira e escolhe a profissão sonhada de condução de um táxi na barulhenta Nova Delhi de motos, automóveis e os famosos tuk tuks, uma espécie de triciclo, competindo nas ruas de forma desordenada com grandes congestionamentos. A figura paterna entra em ação, o azulejista tenta disuadi-la sob oforte argumento da falta de segurança à noite na capital cosmopolita e perigosa para todos.

Sua teimosia lhe custa a expulsão da casa pelo pai, tão logo sabe que a filha passou nos testes da autoescola. Começa a andar como uma mulher adulta e liberal no comando do veículo. Seus percalços não terminam aí, terá que enfentar na segunda etapa o namorado, um rapaz do interior que lhe pede em casamento e faz juras de amor. Mudam-se para uma região rural, local da família dos parentes de seu novo marido, que também não vê com bons olhos sua profissão. Com o nascimento do filho, outro ingrediente novo que surge, vem à tona a opressão do sogro que impede seu retorno à capital. Antes de tudo, terá que se adaptar à cultura diferente da sua, tentando entender as tradições milenares dos rituais de usos e costumes paradoxais ao que conhecia.

A protagonista não desiste de voltar a Nova Delhi, busca forças do interior da alma e, com sangue e suor retirados do fundo das entranhas, segue persistente na trajetóra pretendida quase que intransponível na saga obsessiva de um futuro traçado obstinadamente. Embora a casta machista ache estranho e tentem ridicularizá-la por ser a única presença feminina entre os condutores de táxi no trânsito da cidade, tanto no diurno como no período noturno. Mas ela é forte, quase como um carvalho sendo golpeado por um machado, por isto se sustenta firme contra os empecilhos que surgem no cotidiano.

Para Onde, Senhora? é uma boa dissertação sobre história e antropologia, pelas lentes da bela fotografia de Jan David Günther, em que o documentário tem um tom de diálogos em forma de drama, para depois serem ouvidos os personagens para abrir com sinceridade seus corações para a câmera. Os dissabores e as complexidades das relações estão no contexto e faz uma desassombrada declaração de insubordinação. O filme é leve e transita com boa naturalidade narrativa, mostrando fatos pitorescos e os contrastes do interior com o urbano, passando pelo caos metropolitano e do sufoco intransigente das tradições rurais. São registros interessantes de contribuição pela visão feminista naquele universo de submissão das mulheres aos seus intitulados donos de uma legião masculina predominante e repressora que não aceita diálogos e nem concessões.

sábado, 29 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Treblinka)


Treblinka

Vem de Portugal o decepcionante filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Treblinka, com direção e roteiro do paulistano Sérgio Tréfaut, ex-assistente de vários diretores portugueses. Viagem a Portugal (2011) foi seu único longa-metragem ficcional. Estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004), A Cidade dos Mortos (2009) e Alentejo, Alentejo (2014, 38ª Mostra), o melhor deles, ao fazer um retrato digno de dezenas de grupos amadores que se reúnem regularmente na cidade que dá título ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiam antigos cantos polifônicos e improvisam modinhas contemporâneas, numa curiosa viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes, através da bela fotografia de João Ribeiro, novamente presente em sua última realização sobre os horrores do nazismo.

Um documentário que retrata o presente, o passado e o futuro misturados nos vagões de um trem fantasma que cruza o Leste Europeu no século 21, por Polônia, Rússia e Ucrânia, países que vivenciaram o drama fatídico do holocausto. Foram palcos dos traumáticos efeitos humilhantes aos judeus, que para uns deve ser esquecido; para outros, relembrar é imperioso para a memória dos sobreviventes. O slogan do pós-guerra “Nunca novamente” soa ainda hoje como um conto de fadas. Treblinka fica na Polônia e foi o quarto campo de extermínio, em que milhares dos descendentes semitas foram mortos em câmaras de gás alimentadas por motores de explosão localizados nos arredores da cidade ocupada pelos alemães. Foi também o primeiro campo onde ocorreu a cremação dos cadáveres para ocultar o número de pessoas vítimas do genocídio.

Neste lugar foi criado um sistema de trabalho dos integrantes dos Sonderkommandos para que eliminassem alguns vestígios comprometedores, no qual os judeus eram incumbidos de receber os comboios de trens que chegavam para conduzir os deportados para as câmaras de gás, retirar os cadáveres, extrair os dentes e ouro e proceder a cremação. Este campo foi dividido pelos alemães em dois terrenos menores, onde em um deles os prisioneiros somente se ocupavam do extermínio e recuperação de objetos, e um segundo campo onde os prisioneiros só se ocupavam da retirada dos cadáveres e cremá-los. O filme O Filho de Saul (2015), com direção do jovem cineasta húngaro László Nemes, faz uma abordagem bem mais profunda e meticulosa sobre a temática, o que está ausente no documentário redundante e raso do brasileiro Tréfaut.

Eis uma realização repetitiva que se utiliza dos depoimentos de Isabel Ruth e Kirill Kashlikov, através de imagens distorcidas pela câmera, em um retorno ao passado para contar as artimanhas didaticamente rememoradas para escapar da morte no inferno daqueles campos de banheiros químicos. Mas falta a contundência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração, durante o período da II Guerra Mundial. Ou em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, no registro fabuloso de uma defesa intransigente para uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações, na qual as vítimas são todas aquelas que não participaram diretamente, faz o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade.

Treblinka é um filme menor, sem consistência, embora haja um certo esforço do diretor em transformá-lo num documentário sério e histórico, porém pouco contribui para um registro interessante sobre a realidade cruel do nazismo e seus efeitos destruidores e reprováveis cometidos contra o povo judeu. Quanto à estética utilizada, não há inovação, pouca originalidade num tema recorrente, embora sempre instigante sobre todos os indiscutíveis aspectos. Um filme sem interesse pela monotonia, chato e arrastado nos intermináveis 61 minutos de projeção. Está longe de qualquer interesse mais aprofundado, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um passado brutal para uma solução adotada como prática abjeta por Hitler para resolver e limpar os milhares de exterminados em massa. Como se fosse uma fábrica que tem de manter as máquinas funcionando a todo vapor, era necessário estar sempre aptas as câmaras de gás para receber mais e mais vítimas. Os corpos deveriam ter um destino, entre eles as valas comuns que já não davam mais resultado prático, pois não poderiam ser simplesmente empilhados como numa grande lixeira humana. O horror estava impregnado em todas as vítimas e algozes que faziam parte da terrível paisagem putrefata. Estes são os relatos contados pelos dois personagens, porém tudo já foi visto no excelente filme de László Nemes, o premiado O Filho de Saul.

Mostra de Cinema São Paulo (Paterson)


Paterson

A 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo já tem um filme extraordinário, um dos melhores da cuidadosa seleção de 322 produções de vários países do mundo. Trata-se de Paterson, do cultuado diretor norte-americano Jim Jarmusch, responsável pelo bem elaborado roteiro enxutíssimo, com a maravilhosa fotografia de Frederick Elmes. O cineasta é um dos realizadores mais aclamados pela crítica e pelo público, tem em sua filmografia importantes títulos do cinema. Trabalhou como assistente de Nicholas Ray enquanto escrevia o roteiro de seu primeiro longa Férias Permanentes (1980). Dirigiu filmes como Estranhos no Paraíso (1984), vencedor do prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes e do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, Daunbailó (1986, 11ª Mostra), Trem Mistério (1989), Homem Morto (1995), Flores Partidas (2005) e Amantes Eternos (2013).

Com uma narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano simples de um casal, no qual Paterson (Adam Driver) que leva o nome da cidade, em Nova Jersey, dirige um ônibus sempre na mesma rota e vai observando a paisagem que se revela pela janela, ouvindo fragmentos de conversas pitorescas que o rodeiam de segunda a sexta-feira. Folga sempre nos sábados e domingos, levantando-se diariamente entre 6h e 6h30min, para deslocar-se ao trabalho nesta metódica rotina, como manusear a caixa de fósforos e pronunciar uma repetitiva frase. O motorista faz poesia nas horas vagas, escrevendo suas inspirações num pequeno caderno de anotações que guarda com carinho e todo o cuidado no porão da casa, para num futuro publicar um livro, tal qual seu conterrâneo famoso sempre citado com emoção. Sua mulher é a jovial Laura (Golshifteh Farahani- a linda atriz iraniana de À Procura de Elly e Dois Amigos) que fica em casa fazendo minibolos com coberturas também repetitivas, conhecidos como cupcakes, além de pintar tecidos artesanalmente em preto e branco. O casal não tem filhos, somente a presença do atento cachorro da raça buldogue inglês, que irá aprontar para seu dono com estragos irreversíveis.

Jarmusch é um artesão na construção de personagens sofridos na vida e em situações que beiram o abismo. Em Paterson, a rotina é rigorosamente a mesma naquela semana filmada com sobriedade na forma de desconstrução de sonhos e ambições. O filme inicia numa segunda-feira para ter seu desfecho na próxima semana, no mesmo dia. O condutor do coletivo segue seu ritual diário, levanta cedo, observa a mulher dormindo candidamente, às vezes ela conta seus sonhos noturnos repletos de fantasias juvenis, em outras nem o vê sair. Ao retornar à noite para casa, pega o cão para passear nas proximidades, vai sempre ao mesmo bar boêmio na penumbra para beber sua cerveja no balcão, ao som de jazz ao fundo. É lá também que ouve algumas lamúrias de casais desencontrados, assiste a discussões mais acirradas, dentre as quais a de um rapaz negro apaixonado e desprezado pela namorada, apelidados pelo proprietário de Romeu e Julieta.Volta para casa para encontrar Laura, que aprova seu cheiro de álcool para agradá-lo. Ao contrário do marido, ela busca mudanças e sonha com algo melhor e pouco convencional, embora não seja uma transformadora na essência, tem seu apoio, pois ela o encoraja e vislumbra algum talento na poesia.

O filme tem uma trama simples, construído para uma reflexão sobre a existência e os aspectos da solidão. A trilha de Sqürl reflete com precisão na melodia que embala os notívagos, em que o silêncio da noite dos frequentadores só é quebrado por algum lamento, ou uma eventual invasão de um desafortunado do amor, a mesmice diária atordoante. Há vitórias e derrotas da vida cotidiana, pelos detalhes da singeleza de uma poesia que ainda teima em permanecer para evidenciar a razão de continuar a se viver com pureza. Eis um espetacular drama alicerçado com sobriedade das tintas sombrias da razão e da emoção contida dos dias que passam sem um objetivo maior no futuro do casal de pouca perspectiva. Há o inusitado fato após a volta de uma sessão de cinema, mas nem tudo está perdido, nem tudo é só pessimismo e só desesperança.

Há uma saída para a dolorosa tristeza, surge um misterioso japonês de Osaka na praça como um elemento de luz no fim do túnel, que trará um alento com a sábia doação de um bloco em branco, sem escrita, para incentivar a reabilitação do poeta anônimo desestruturado e perdido no tempo pelo incidente caseiro. A naturalidade é o elemento básico e pontual neste drama de cenas repetitivas propositalmente no transcurso do enredo, seguindo o mestre genial da reiteração Abbas Kiarostami, que se consagrou com a obra-prima Gosto de Cereja (1997), ganhadora da Palma de Ouro em Cannes. Paterson é um filme imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com o tédio visceral, mas pelo contexto amargurado, o pessimismo sombrio, mas com uma brecha para se continuar na busca da dignidade humana.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Elle)


Elle

Um filme aguardado que correspondeu toda a expectativa depositada é o instigante Elle, do festejado cineasta holandês Paul Verhoeven, com o enxuto e seco roteiro de David Birke, que empresta credibilidade para a recepção maravilhosa de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, além da linda fotografia de Stéphane Fontaine, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora assinada por Anne Dudley. Encerrou o Festival de Cannes deste ano e foi indicado pela França para a disputa de uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O realizador dirigiu alguns dos mais importantes títulos do cinema do seu país, tais como: Louca Paixão (1973), Soldado de Laranja (1977) e O Quarto Homem (8ª Mostra, 1983). Deu uma guinada na carreira nos anos de 1980, com os longas produzidos em Hollywood, entre eles: RoboCop-O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), da antológica cena do cruzamento de pernas de Sharon Stone.

Elle tem uma significativa dose de suspense com algumas sacadas de fino humor, o que suaviza a narrativa intensa, escapa com inteligência do tema recorrente do estupro propriamente dito. Não é um filme sobre o trauma específico do ato, como do excelente O Silêncio do Céu (2015), de Marco Dutra. Uma realização com duras cenas de um grau incomum de realismo puro que fascina pelo desdobramento na trajetória para um desfecho nada convencional e com tragicidade explícita. Verhoeven retrata Michèle- na soberba interpretação de Isabelle Huppert, uma atriz talhada para este tipo de papel que se doa com notável senso de profissionalismo, assim já o fizera em A Professora de Piano (2000)-, uma mulher determinada, aos 50 anos, que atrai pessoas que a detestam, mas parece ser indestrutível a executiva que chefia uma importante empresa de jogos de videogame predominantemente de jovens masculinos. É implacável na administração dos relacionamentos amorosos como no trabalho pela eficiente organização, mantém a serenidade apesar de ser atacada e humilhada em sua casa por um suposto assaltante mascarado, no qual seguirá os rastros do seu agressor para um jogo perigoso de sedução que perderá o controle. Mantém por perto o ex-marido, o amante que a despreza e a ignora em ocasiões festivas, além dos subordinados garotos suspeitos.

Há questões pertinentes e indigestas na entrelinhas do enredo, como a hipocrisia bem marcante que serve para dissecar as estruturas de poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da sexualidade, como subtemas há a intrincada interação de trabalho com a família visto como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher se impondo diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião do filho contra a autoridade materna e da pouca participativa presença do pai, bem como a contestação direta do funcionário ao empregador. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência sexual pelo desamor em tempos de solidão e individualismo com os fantasmas e os fetiches.

O impactante drama aborda com profundidade os efeitos da infância sofrida diante dos resquícios maléficos causados pela figura paterna, um serial killer que mata adultos, crianças e estupra mulheres. Embora condenado à prisão perpétua, a protagonista tinha apenas 10 anos, estava na hora errada e no lugar indesejado, ou seja, presente no dia da detenção do pai, com ampla repercussão na comunidade e na imprensa. Carrega com ela este estigma da maldade, que deixou para sempre sequelas, traumas e a agonia da culpa involuntária. Cresceu com problemas sexuais e psicológicos, tornando-se uma mulher fria que se satisfaz pela perversidade, fazendo outras vítimas, principalmente mulheres bem resolvidas e próximas de seu meio no cotidiano. Não há limites para suas investidas cruéis de desejos por relações que descambam para o sadomasoquismo latente que aflora e desperta uma realidade sem alegorias para saciar-se nos subterfúgios. Tem um filho frágil, ingênuo, submisso e dominado pela mulher, que faz gato e sapato com ele. Sua mãe também sofre e torna-se fútil diante do casamento fracassado com o marido preso pelos crimes hediondos cometidos, vira alvo da vingança e do desdém daqueles que nunca a perdoaram por extensão, como se fosse a culpada direta.

A complexidade de Elle vai ao encontro do envolvimento de Michèle com homens do entorno das suas relações com matrimônios desfeitos e a proximidade da tragédia iminente. Culpa e ressentimentos, com doses fortes de repetições de estupros são mesclados com o sadismo e o masoquismo, através de urros de orgasmos que se confundem com a dor da brutalidade selvagem do agressor e estão alinhados como ingredientes indispensáveis para Verhoeven construir este painel perturbador para uma plateia atenta julgar com isenção. Ninguém sai indiferente da sessão, o filme mexe com os espectadores, assim como o gato acinzentado da personagem central que também participa do cotidiano de sua dona. O intimismo da obra traz situações clássicas do suspense bem temperado, para transitar até o drama e selar como um filme marcante pela contundência das cenas arrojadas e bem apimentadas de uma relação violenta e brutal pelo contexto da trama bem urdida de um cineasta irrequieto acima da média para um resultado magnífico.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (The Stopover)


The Stopover

Um filme que é uma agradável surpresa na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este drama de guerra The Stopover, segundo longa das irmãs francesas Muriel Coulin e Delphine Coulin, que são responsáveis pelo bom roteiro. Muriel iniciou a carreira no cinema como fotógrafa e assistente de câmera, Delphine também é escritora. Elas começaram filmando em 1997 o curta Il Faut Imaginer Sisyphe Heureux e estrearam na direção de longas com 17 Girls (2011). A coprodução é da França com a Grécia, com a bela fotografia assinada por Jean-Louis Vialard no estonteante cenário de mar azul e rochedos, sendo vencedora do prêmio de roteiro da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano.

As diretoras se utilizaram de uma realidade dolorida e triste, para demonstrar o cinismo francês, que em nome da União Europeia intromete-se em questões alheias, como no caso do Afeganistão em guerra civil, além das frequentes disputas territoriais nas fronteiras com Irã e Iraque. Ao final da temporada de serviços prestados para o Exército no país invadido, um trio de jovens militares femininas: Aurore (Ariane Labet), Marine (Soko) e Fanny (Ginger Roman), ganham três dias de licença para retirar o estresse num fascinante resort cinco estrelas na República do Chipre, a paradisíaca ilha situada no mar Egeu oriental, a terceira maior e mais populosa no Mediterrâneo, ao sul da Turquia, e ao leste da Grécia. A ideia é a realizar uma descompressão com o restante do batalhão de homens em meio aos turistas, mas todos sofrem censura e não podem contar tudo que aconteceu, inclusive abafam seus dilemas pessoais. Mas as dificuldades se agigantam e não será fácil esquecer a guerra e deixar os traumas e a violência explícita para trás.

Estampa-se uma situação de embates pós-guerra com lembranças de um passado torturante para os personagens e seu impacto para o mundo que deverão voltar em breve, após se submeterem a sessões de terapia coletiva com a ajuda da tecnologia da realidade virtual em 3D para simular a guerra e iluminar o âmago e a alma, recuperar o físico e a mente, com o intuito da glorificação nacional no retorno com a pretensa missão cumprida. Tudo balela e hipocrisia dos comandos superiores. “O importante é vencer, o que se vai ganhar não importa”, diz um soldado para a colega mulher, ao dançar com a cabeça colada dividida apenas por uma laranja que não pode cair, num jogo de faz de conta. A serpente sob os cuidados de Marine simboliza a traição que se dará na emboscada que explode dos próprios companheiros enciumados do pelotão, quando a linda Aurore se relaciona amorosamente com o nativo Max (Karim Leklou), mas a cobra ao ser solta na natureza representa uma espécie de libertação às três moças naquela delicada missão de homens rudes. Uma metáfora que é bem manuseada pelas cineastas para lançar um olhar humano sob o ponto de vista feminista das atrocidades hostis sofridas pelas três mosqueteiras num universo machista.

O filme começa bem, ao se debruçar com os fantasmas dos conflitos bélicos que foram envolvidos os soldados franceses. Os delírios da guerra são bem captados pela câmera na primeira parte do longa. Mas aos poucos, o clímax se esvai com o contorcionismo do roteiro, ao abandonar as mazelas e as cicatrizes deixadas num ambiente inóspito para a busca do relaxamento do entretenimento naquele lugar paradisíaco. Porém com a entrada dos dois nativos, o atropelamento da cabra com desdém e as cenas de ciúmes, faz com que The Stopover enverede para uma realidade abordada com superficialidade, ou seja, a presença das mulheres num batalhão eminentemente de homens com os brios feridos no ego do macho preterido. A autoestima afetada dos super-heróis desdenhados sob a ótica da força em detrimento da inteligência do galanteio do galã da região.

Um drama bem fiel de um país que sofre frequentes atentados, tendo em vista suas trapalhadas na esfera da política internacional. É razoavelmente esmiuçado com boa dose de sutileza pelo caminho de violência com rastros de mortes estúpidas daqueles relatos comoventes, como do rapaz que morreu ao sentar no lugar que sempre fora de um outro colega, por uma coincidência do destino, naquele dia inesquecível para o sobrevivente, mas que levará para sempre as lembranças da tragédia. A narrativa está bem equilibrada e coerente, através de uma história contada com uma paradoxal suavidade, embora embrutecida por um panorama do horror dos relatos que deixou feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos líricos doloridos, faz deste drama um apreciável manifesto coerente, sem cair no maniqueísmo de outras realizações. É um filme reflexivo pelas imagens com força de grande expressividade, com bons diálogos, embalados por uma trilha sonora fidedigna e saborosa na essência dos rostos e olhares de perplexidades mesclados com surpresa e indignação do passado.