Elle
Um filme aguardado que correspondeu toda a expectativa
depositada é o instigante Elle, do
festejado cineasta holandês Paul Verhoeven, com o enxuto e seco roteiro de
David Birke, que empresta credibilidade para a recepção maravilhosa de público
e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, além da linda fotografia de Stéphane
Fontaine, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora assinada
por Anne Dudley. Encerrou o Festival de Cannes deste ano e foi indicado pela França para a disputa de uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O realizador dirigiu alguns dos mais importantes títulos do
cinema do seu país, tais como: Louca
Paixão (1973), Soldado de Laranja
(1977) e O Quarto Homem (8ª Mostra,
1983). Deu uma guinada na carreira nos anos de 1980, com os longas produzidos em
Hollywood, entre eles: RoboCop-O
Policial do Futuro (1987), O Vingador
do Futuro (1990) e Instinto Selvagem
(1992), da antológica cena do cruzamento de pernas de Sharon Stone.
Elle tem uma significativa
dose de suspense com algumas sacadas de fino humor, o que suaviza a narrativa
intensa, escapa com inteligência do tema recorrente do estupro
propriamente dito. Não é um filme sobre o trauma específico do ato, como do
excelente O Silêncio do Céu (2015),
de Marco Dutra. Uma realização com duras cenas de um grau incomum de realismo puro
que fascina pelo desdobramento na trajetória para um desfecho nada convencional
e com tragicidade explícita. Verhoeven retrata Michèle- na soberba interpretação
de Isabelle Huppert, uma atriz talhada para este tipo de papel que se doa com
notável senso de profissionalismo, assim já o fizera em A Professora de Piano (2000)-, uma mulher determinada, aos 50 anos,
que atrai pessoas que a detestam, mas parece ser indestrutível a executiva que
chefia uma importante empresa de jogos de videogame predominantemente de jovens
masculinos. É implacável na administração dos relacionamentos amorosos como no
trabalho pela eficiente organização, mantém a serenidade apesar de ser atacada e
humilhada em sua casa por um suposto assaltante mascarado, no qual seguirá os
rastros do seu agressor para um jogo perigoso de sedução que perderá o
controle. Mantém por perto o ex-marido, o amante que a despreza e a ignora em
ocasiões festivas, além dos subordinados garotos suspeitos.
Há questões pertinentes e indigestas na entrelinhas do
enredo, como a hipocrisia bem marcante que serve para dissecar as estruturas de
poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da sexualidade, como
subtemas há a intrincada interação de trabalho com a família visto como formas controvertidas
de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher se impondo
diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião do filho contra a
autoridade materna e da pouca participativa presença do pai, bem como a
contestação direta do funcionário ao empregador. É um questionamento da
dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência sexual pelo
desamor em tempos de solidão e individualismo com os fantasmas e os fetiches.
O impactante drama aborda com profundidade os efeitos da
infância sofrida diante dos resquícios maléficos causados pela figura paterna,
um serial killer que mata adultos,
crianças e estupra mulheres. Embora condenado à prisão perpétua, a protagonista
tinha apenas 10 anos, estava na hora errada e no lugar indesejado, ou seja,
presente no dia da detenção do pai, com ampla repercussão na comunidade e na
imprensa. Carrega com ela este estigma da maldade, que deixou para sempre sequelas,
traumas e a agonia da culpa involuntária. Cresceu com problemas sexuais e
psicológicos, tornando-se uma mulher fria que se satisfaz pela perversidade,
fazendo outras vítimas, principalmente mulheres bem resolvidas e próximas de
seu meio no cotidiano. Não há limites para suas investidas cruéis de desejos por
relações que descambam para o sadomasoquismo latente que aflora e desperta uma
realidade sem alegorias para saciar-se nos subterfúgios. Tem um filho frágil,
ingênuo, submisso e dominado pela mulher, que faz gato e sapato com ele. Sua
mãe também sofre e torna-se fútil diante do casamento fracassado com o marido
preso pelos crimes hediondos cometidos, vira alvo da vingança e do desdém
daqueles que nunca a perdoaram por extensão, como se fosse a culpada direta.
A complexidade de Elle
vai ao encontro do envolvimento de Michèle com homens do entorno das suas
relações com matrimônios desfeitos e a proximidade da tragédia iminente. Culpa
e ressentimentos, com doses fortes de repetições de estupros são mesclados com
o sadismo e o masoquismo, através de urros de orgasmos que se confundem com a
dor da brutalidade selvagem do agressor e estão alinhados como ingredientes
indispensáveis para Verhoeven construir este painel perturbador para uma
plateia atenta julgar com isenção. Ninguém sai indiferente da sessão, o filme
mexe com os espectadores, assim como o gato acinzentado da personagem central
que também participa do cotidiano de sua dona. O intimismo da obra traz
situações clássicas do suspense bem temperado, para transitar até o drama e
selar como um filme marcante pela contundência das cenas arrojadas e bem
apimentadas de uma relação violenta e brutal pelo contexto da trama bem urdida
de um cineasta irrequieto acima da média para um resultado magnífico.
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