sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Elle)


Elle

Um filme aguardado que correspondeu toda a expectativa depositada é o instigante Elle, do festejado cineasta holandês Paul Verhoeven, com o enxuto e seco roteiro de David Birke, que empresta credibilidade para a recepção maravilhosa de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, além da linda fotografia de Stéphane Fontaine, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora assinada por Anne Dudley. Encerrou o Festival de Cannes deste ano e foi indicado pela França para a disputa de uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O realizador dirigiu alguns dos mais importantes títulos do cinema do seu país, tais como: Louca Paixão (1973), Soldado de Laranja (1977) e O Quarto Homem (8ª Mostra, 1983). Deu uma guinada na carreira nos anos de 1980, com os longas produzidos em Hollywood, entre eles: RoboCop-O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), da antológica cena do cruzamento de pernas de Sharon Stone.

Elle tem uma significativa dose de suspense com algumas sacadas de fino humor, o que suaviza a narrativa intensa, escapa com inteligência do tema recorrente do estupro propriamente dito. Não é um filme sobre o trauma específico do ato, como do excelente O Silêncio do Céu (2015), de Marco Dutra. Uma realização com duras cenas de um grau incomum de realismo puro que fascina pelo desdobramento na trajetória para um desfecho nada convencional e com tragicidade explícita. Verhoeven retrata Michèle- na soberba interpretação de Isabelle Huppert, uma atriz talhada para este tipo de papel que se doa com notável senso de profissionalismo, assim já o fizera em A Professora de Piano (2000)-, uma mulher determinada, aos 50 anos, que atrai pessoas que a detestam, mas parece ser indestrutível a executiva que chefia uma importante empresa de jogos de videogame predominantemente de jovens masculinos. É implacável na administração dos relacionamentos amorosos como no trabalho pela eficiente organização, mantém a serenidade apesar de ser atacada e humilhada em sua casa por um suposto assaltante mascarado, no qual seguirá os rastros do seu agressor para um jogo perigoso de sedução que perderá o controle. Mantém por perto o ex-marido, o amante que a despreza e a ignora em ocasiões festivas, além dos subordinados garotos suspeitos.

Há questões pertinentes e indigestas na entrelinhas do enredo, como a hipocrisia bem marcante que serve para dissecar as estruturas de poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da sexualidade, como subtemas há a intrincada interação de trabalho com a família visto como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher se impondo diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião do filho contra a autoridade materna e da pouca participativa presença do pai, bem como a contestação direta do funcionário ao empregador. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência sexual pelo desamor em tempos de solidão e individualismo com os fantasmas e os fetiches.

O impactante drama aborda com profundidade os efeitos da infância sofrida diante dos resquícios maléficos causados pela figura paterna, um serial killer que mata adultos, crianças e estupra mulheres. Embora condenado à prisão perpétua, a protagonista tinha apenas 10 anos, estava na hora errada e no lugar indesejado, ou seja, presente no dia da detenção do pai, com ampla repercussão na comunidade e na imprensa. Carrega com ela este estigma da maldade, que deixou para sempre sequelas, traumas e a agonia da culpa involuntária. Cresceu com problemas sexuais e psicológicos, tornando-se uma mulher fria que se satisfaz pela perversidade, fazendo outras vítimas, principalmente mulheres bem resolvidas e próximas de seu meio no cotidiano. Não há limites para suas investidas cruéis de desejos por relações que descambam para o sadomasoquismo latente que aflora e desperta uma realidade sem alegorias para saciar-se nos subterfúgios. Tem um filho frágil, ingênuo, submisso e dominado pela mulher, que faz gato e sapato com ele. Sua mãe também sofre e torna-se fútil diante do casamento fracassado com o marido preso pelos crimes hediondos cometidos, vira alvo da vingança e do desdém daqueles que nunca a perdoaram por extensão, como se fosse a culpada direta.

A complexidade de Elle vai ao encontro do envolvimento de Michèle com homens do entorno das suas relações com matrimônios desfeitos e a proximidade da tragédia iminente. Culpa e ressentimentos, com doses fortes de repetições de estupros são mesclados com o sadismo e o masoquismo, através de urros de orgasmos que se confundem com a dor da brutalidade selvagem do agressor e estão alinhados como ingredientes indispensáveis para Verhoeven construir este painel perturbador para uma plateia atenta julgar com isenção. Ninguém sai indiferente da sessão, o filme mexe com os espectadores, assim como o gato acinzentado da personagem central que também participa do cotidiano de sua dona. O intimismo da obra traz situações clássicas do suspense bem temperado, para transitar até o drama e selar como um filme marcante pela contundência das cenas arrojadas e bem apimentadas de uma relação violenta e brutal pelo contexto da trama bem urdida de um cineasta irrequieto acima da média para um resultado magnífico.

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