quinta-feira, 23 de maio de 2019

A Grande Dama do Cinema



Mordaz Tributo ao Cinema

Mais um exemplar da típica produção autoral de Juan José Campanella, oriunda da Argentina em coprodução com a Espanha, A Grande Dama do Cinema é uma comédia mordaz e o menos argentino de sua filmografia. Aborda o envelhecimento e a decadência dos artistas envolvidos com a sétima arte, em um tema universal, mas o realizador mantém o olhar habitual com ritmo instigante sobre o cotidiano, a política econômica em frangalhos e as turbulências políticas que se sucedem. Seu primeiro longa foi a comédia dramática O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (2000), sobre o relacionamento de um casal que se conhece numa tempestade e por 20 anos há encontros e desencontros. Depois veio o admirável O Filho da Noiva (2001), quando enfatiza de maneira significativa a tragicidade familiar da degenerativa doença do mal de Alzheimer. Após viria Clube da Lua (2004), onde mostra toda sua paixão pelo Racing Club de Avellaneda, numa ficção sobre a falência de seu clube querido com um deslumbrante lirismo de uma época de dança e amor. Com a obra-prima O Segredo dos Seus Olhos (2009), que levou o prêmio de melhor produção estrangeira no Oscar, o foco recaiu sobre uma investigação que começou 35 anos após a conclusão e o arquivamento de um processo sem resultado satisfatório pela burocracia do judiciário e da polícia sobre um assassinato com estupro em 1974, época do período pré-militar, passando pela exaltação dos chefes militares com a tomada e a defesa das Ilhas Malvinas.

O festejado cineasta está de volta depois de 10 anos, construindo um sarcástico painel de quatro artistas do cinema em que a idade os pegou. Eles estão reclusos num bonito casarão antigo no interior de Buenos Aires, que serviu de set de gravações entre os anos de 1960 e 1970. Ali, naquele cenário de filmagens que ainda mantém um aspecto daquela época de lembranças de um passado glamoroso em que as memórias estão bem vivas e redentoras de momentos sedutores. Um grupo improvável de quatro resistentes convive num ambiente familiar de vínculos afetivos característicos, embora haja as peculiares desavenças decorrentes do dia a dia. Formado pela alquebrada diva, a tarimbada Mara Ordaz (Graciela Borges) que é casada com o ator fracassado Pedro de Córdova (Luis Brandoni), atualmente em uma cadeira de rodas devido a um acidente que será revelado na trama as causas que o incomodam tanto, são os proprietários do imóvel; o frustrado roteirista Martin (Marcos Mundstock); e o astuto diretor Norberto Imbert (Oscar Martinez).

Os personagens moram naquela mansão e cuidam de todos os detalhes desta verdadeira fortaleza protegida, embora com dificuldade financeira, entre alguns resmungos e evidências alusivas de relacionamentos estremecidos. Os tiros dados por Norberto nas doninhas e nos ratões que infestam o paraíso deles incomodam a estrela, única mulher naquele espaço, pelo barulho na madrugada e também durante o dia. Soam como uma alegoria da proteção dos defensores do cinema com suas idiossincrasias diante do tempo que passa e o futuro incerto que espreita a soberania reinante naquela casa, bem como uma premonição para o epílogo inusitado. Os vilões da história estão à espreita, prontos para darem o bote por uma sorrateira armadilha arquitetada pelo jovem casal Francisco (Nicolás Francella) e Bárbara (Clara Lago). Eles simulam estar perdidos na viagem até Buenos Aires para uma suposta reunião. O mal está chegando, diz um dos moradores, que percebeu a arapuca armada para envolver sentimentalmente Mara, numa tramoia bem enjambrada para tentar vender a mansão. Seria um negócio vantajoso aos falsos fãs com suas artimanhas para o grande blefe, até as máscaras caírem, e a ciranda do faz de conta dos acontecimentos iniciar de forma mirabolante.

Isolados do mundo, os homens jogam xadrez e bilhar. As mexidas no tabuleiro ou as tacadas nas bolas adquirem concomitantemente um jogo de palavras irônicas como uma espécie de aviso ao oponente, pelo indicativo do fio condutor do enredo. Já a veterana atriz mundial não se desgruda da estatueta que tanto a faz lembrar do passado de glórias e aplausos numa época de louros de suas obras antigas consagradas que a levaram à fama. Os ex-famosos tentam preservar aquele universo lúdico dos anos dourados rememorados, embora o marido ainda demonstre ciúmes de um ex-galã que contracenou com ela, deixa fluir os ressentimentos e alguns resquícios de mágoa com seus amigos - roteirista e diretor- que vetaram o papel de protagonista com a sua mulher, mas a força da velha amizade deve predominar na superação das questiúnculas pretéritas. Com um elenco coeso e arrebatador, sem estrelismo, conduzido por uma trilha sonora adequada, A Grande Dama do Cinema é um remake de Los Muchachos de Antes no Usaban Arsénico (1976), de José Martínez Suárez, um dos filmes prediletos de Campanella, lançado antes do golpe militar de 1976 na Argentina. Era uma abordagem dos malefícios destruidores do envelhecimento em consonância com a verdadeira amizade e uma profunda revisitação ao passado melancólico de consequências sentimentais da existência humana, que acabou censurado pelo governo ditatorial.

O desenrolar da comédia é provocante ao mostrar um roteiro complexo pela elasticidade e vigor recheado de surpresas. Satiriza a perversidade inoculada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades de um universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. Uma narrativa que flutua da comédia para o drama, passando pelo suspense psicológico até chegar à tragédia grega no ato final. O espectador acaba embasbacando-se diante da forma da sutil vingança. Um epílogo com métodos de justiça incomum é articulado com astúcia maldosa pelos acuados artistas diante da iminente fúria mercenária dos agressores, como numa grande ficção de intensidade mesclada com uma abastecida realidade de solidão, angústia, dor e humilhação. Sem chocar, por afastar-se do uso de artifícios manjados e ineficazes em realizações inconsistentes que pululam as mediocridades recorrentes cinematográficas, cria-se com escárnio uma atmosfera propícia para uma metafórica análise que recai sobre o descaso aos velhos da classe cultural tão esquecida em um país de perdas sociais inestimáveis. Eis uma reflexão sobre a solidão do presente oriunda de um passado auspicioso e um futuro nebuloso corroído por um sistema revelador de suas nuances de falências e da irresignação do depauperado ser humano abandonado.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Varda por Agnès



Um Grande Legado

A cineasta belga naturalizada francesa, Agnès Varda, prometeu que o magistral As Praias de Agnès (2008) seria seu último filme, após ganhar o prêmio César de melhor documentário, mas felizmente a promessa não se cumpriu. Era uma narrativa autobiográfica sensível e poética que passeava pelas praias que de certa forma marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida. Além de lançar um olhar breve de lembranças do passado, não deixou de mostrar sua alegria ao dizer “estou viva, e eu me lembro” e na mais bela frase que resumiu seu amor imensurável pela sétima arte, asseverou “o cinema é minha casa”. Realizou depois Visages, Villages (2016) em parceria na direção e roteiro com o fotógrafo JR. Ambos tinham em comum a admiração apaixonante por imagens e o interesse pelos outros, além do questionamento sobre os lugares onde são mostradas as fotografias e a maneira como são compartilhadas e expostas, com entrevistas simples de personagens comuns do povo e sem voz, em especial as mulheres pelo perfil feminista da realizadora. Montaram um roteiro com um plano pré-concebido e até certo ponto aleatório para discutir o espaço de fruição da arte. Partiram com pessoas convidadas para segui-los em sua viagem num caminhão para fazer um documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes.

Depois de prestar um belo tributo ao marido Jacques Demy em As Praias de Agnès, seu grande e único amor, que faleceu em outubro de 1990, autor de obras como Lola, A Flor Proibida (1961), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Duas Garotas Românticas (1967), a legendária autora faz um inventário de sua vida em Varda por Agnès. Despede-se da telona em grande estilo e uma superação invejável. Considerada uma das maiores cineastas do cinema de todos os tempos, morta em 29 de março deste ano, aos 90 anos, um mês após a justa homenagem da Câmara de Ouro no Festival de Berlim. Teve uma carreira de mais de 60 anos, na qual recebeu um Oscar Honorário em 2017 e uma Palma de Ouro Honorária no Festival de Cannes de 2015. Deixou um legado histórico e significativo, com realizações abrangentes e muitas reflexões com críticas pontuais à sociedade e seus preconceitos tolos, mesquinhos e hipócritas. Engendra uma narrativa leve e ao mesmo tempo profunda sobre a morte que se aproxima, como uma premonição do fim que a aguardava pela doença terminal, como no poético desfecho de uma cena não editada do longa anterior e agora aproveitado, em que apenas sorri graciosamente junto à brisa do mar que tanto adorou, deixando a tela iluminada por uma mancha branca e serena diante do sopro do vento que a levará.

Varda foi uma diretora extraordinária e sua participação junto ao marido no antológico Nouvelle Vague, onde é considerada a mãe do movimento, deu uma contribuição valiosa para o cinema, sendo a única voz feminina entre aqueles monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. Disseca um precioso inventário de sua vasta filmografia marcante e recheada de grandes obras numa palestra no palco de um majestoso teatro, fio condutor da narrativa. Conta histórias alegres, ri de seus fracassos comerciais, faz boas tiradas com piadas sutis, através das experiências marcantes que repassa aos neófitos e interessados futuros realizadores. Inicia com imagens passadas num grande telão e relembra seu primeiro filme La Pointe-Courte (1955), montado por Alain Resnais. Explica com riqueza de detalhes as filmagens e edição do inesquecível Cleo das 5 às 7 (1962), sobre uma mulher que aguarda o resultado do exame médico de uma doença fatídica e os personagens folclóricos das ruas que por acaso surgiram durante as gravações. Outro grande achado é o retorno ao cenário rural com a atriz Sandrine Bonnaire, onde filmou Sem Teto Nem Lei (1985), um drama pungente sobre uma moça andarilha rebelde para os costumes da época. Tece comentários e revela aos espectadores- uma espécie de making of- tudo sobre o magnífico Os Catadores e Eu (2000), uma abordagem ácida em uma contundente crítica social sobre os alimentos jogados fora e bens descartados que são recolhidos por pessoas com fome e sem um lugar para morar. Filosofa sobre o desapego e a comida desperdiçada, quando há famintos catando para a sobrevivência do dia a dia.

Varda por Agnès não é somente um documentário autobiográfico testamentário, mas também um mosaico do passado, presente e do futuro, onde aparecem intercalados personagens sofridos por uma sociedade cruel com a humanidade. A diretora enfatiza os três pontos básicos que guiaram sua trajetória artística: criação, inspiração e compartilhamento. Além do retrato fiel de sua vida ao cinema, demonstra todo seu amor à fotografia e à pintura, na qual revela seu apreço pelas artes visuais estampadas nas exposições em galerias e museus. Não foi à toa que dedicou uma bela reverência aos pintores Picasso e Magritte. No filme Jane B, por Agnès V (1988) traça a biografia num autorretrato da atriz Jane Birkin em uma construção de um único momento contemplativo para chegar até um resultado sobre a existência humana. Ou ainda quando encontra uma batata em formato de coração que lhe inspira na instalação da Patatutopia, onde mescla imagens, fotos paradas e movimentos para uma projeção espacial em seu cinema inovador. Menciona a importância da transição para a fase digital, na qual se reinventa e a criação flui ainda melhor. Também faz alusão ao grupo Panteras Negras de 1968, quando residia nos EUA, em que teve um olhar com acuidade reflexiva sobre este movimento tachado de radical.

Uma trajetória dedicada ao cinema, fotografia, artes visuais e o companheiro de todas as horas Jacques Demy como elementos de amor e paixão. Um admirável documentário memorialista dos resultados de trabalhos elaborados em torno de uma temática eclética, que desfila como a busca pelo novo e o interesse genuíno pelo ser humano, embora seja uma artista realizada com sua produção, mas que se despede, embora nunca quisesse parar, pois tinha muito ainda para dar com seus fundamentos relevantes e imensuráveis. Um filme delicioso e leve sobre o sentido existencialista, seus ensinamentos reflexivos e emoções com fino humor decorrente de uma qualidade de vida invejável desta icônica “baixinha fofinha”, mas uma apaixonada colossal por pessoas. Eis uma significativa obra que contribui neste registro importante sobre a arte da criação cinematográfica com simplicidade, amor, dedicação e dignidade. Agnès Varda contou suas histórias e situações típicas, apontando tudo aquilo que achou interessante, onde ela é a personagem autobiografada, que gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares das idiossincrasias da vida. Deixa em seu legado a prova nesta realização derradeira de uma carreira dedicada ao cinema de essência truncada pela insustentável leveza da morte.