Mordaz Tributo ao Cinema
Mais um exemplar da típica produção autoral de Juan José
Campanella, oriunda da Argentina em coprodução com a Espanha, A Grande Dama do Cinema é uma comédia
mordaz e o menos argentino de sua filmografia. Aborda o envelhecimento e a
decadência dos artistas envolvidos com a sétima arte, em um tema universal, mas
o realizador mantém o olhar habitual com ritmo instigante sobre o cotidiano, a
política econômica em frangalhos e as turbulências políticas que se sucedem.
Seu primeiro longa foi a comédia dramática O
Mesmo Amor, A Mesma Chuva (2000), sobre o relacionamento de um casal que se
conhece numa tempestade e por 20 anos há encontros e desencontros. Depois veio
o admirável O Filho da Noiva (2001),
quando enfatiza de maneira significativa a tragicidade familiar da degenerativa
doença do mal de Alzheimer. Após viria Clube
da Lua (2004), onde mostra toda sua paixão pelo Racing Club de Avellaneda,
numa ficção sobre a falência de seu clube querido com um deslumbrante lirismo
de uma época de dança e amor. Com a obra-prima O Segredo dos Seus Olhos (2009), que levou o prêmio de melhor produção
estrangeira no Oscar, o foco recaiu sobre uma investigação que começou 35 anos
após a conclusão e o arquivamento de um processo sem resultado satisfatório
pela burocracia do judiciário e da polícia sobre um assassinato com estupro em
1974, época do período pré-militar, passando pela exaltação dos chefes
militares com a tomada e a defesa das Ilhas Malvinas.
O festejado cineasta está de volta depois de 10 anos,
construindo um sarcástico painel de quatro artistas do cinema em que a idade os
pegou. Eles estão reclusos num bonito casarão antigo no interior de Buenos
Aires, que serviu de set de gravações entre os anos de 1960 e 1970. Ali, naquele
cenário de filmagens que ainda mantém um aspecto daquela época de lembranças de
um passado glamoroso em que as memórias estão bem vivas e redentoras de
momentos sedutores. Um grupo improvável de quatro resistentes convive num
ambiente familiar de vínculos afetivos característicos, embora haja as peculiares
desavenças decorrentes do dia a dia. Formado pela alquebrada diva, a tarimbada Mara
Ordaz (Graciela Borges) que é casada com o ator fracassado Pedro de Córdova
(Luis Brandoni), atualmente em uma cadeira de rodas devido a um acidente que
será revelado na trama as causas que o incomodam tanto, são os proprietários do
imóvel; o frustrado roteirista Martin (Marcos Mundstock); e o astuto diretor
Norberto Imbert (Oscar Martinez).
Os personagens moram naquela mansão e cuidam de todos os
detalhes desta verdadeira fortaleza protegida, embora com dificuldade
financeira, entre alguns resmungos e evidências alusivas de relacionamentos
estremecidos. Os tiros dados por Norberto nas doninhas e nos ratões que
infestam o paraíso deles incomodam a estrela, única mulher naquele espaço, pelo
barulho na madrugada e também durante o dia. Soam como uma alegoria da proteção
dos defensores do cinema com suas idiossincrasias diante do tempo que passa e o
futuro incerto que espreita a soberania reinante naquela casa, bem como uma
premonição para o epílogo inusitado. Os vilões da história estão à espreita,
prontos para darem o bote por uma sorrateira armadilha arquitetada pelo jovem casal
Francisco (Nicolás Francella) e Bárbara (Clara Lago). Eles simulam estar
perdidos na viagem até Buenos Aires para uma suposta reunião. O mal está
chegando, diz um dos moradores, que percebeu a arapuca armada para envolver
sentimentalmente Mara, numa tramoia bem enjambrada para tentar vender a mansão.
Seria um negócio vantajoso aos falsos fãs com suas artimanhas para o grande
blefe, até as máscaras caírem, e a ciranda do faz de conta dos acontecimentos iniciar
de forma mirabolante.
Isolados do mundo, os homens jogam xadrez e bilhar. As mexidas
no tabuleiro ou as tacadas nas bolas adquirem concomitantemente um jogo de
palavras irônicas como uma espécie de aviso ao oponente, pelo indicativo do fio
condutor do enredo. Já a veterana atriz mundial não se desgruda da estatueta
que tanto a faz lembrar do passado de glórias e aplausos numa época de louros
de suas obras antigas consagradas que a levaram à fama. Os ex-famosos tentam
preservar aquele universo lúdico dos anos dourados rememorados, embora o marido
ainda demonstre ciúmes de um ex-galã que contracenou com ela, deixa fluir os
ressentimentos e alguns resquícios de mágoa com seus amigos - roteirista e
diretor- que vetaram o papel de protagonista com a sua mulher, mas a força da
velha amizade deve predominar na superação das questiúnculas pretéritas. Com um elenco coeso e arrebatador, sem
estrelismo, conduzido por uma trilha sonora adequada, A Grande Dama do Cinema é um remake de Los Muchachos de Antes no Usaban Arsénico (1976), de José Martínez
Suárez, um dos filmes prediletos de Campanella, lançado antes do golpe militar
de 1976 na Argentina. Era uma abordagem dos malefícios destruidores do envelhecimento
em consonância com a verdadeira amizade e uma profunda revisitação ao passado
melancólico de consequências sentimentais da existência humana, que acabou
censurado pelo governo ditatorial.
O desenrolar da comédia é provocante ao mostrar um roteiro
complexo pela elasticidade e vigor recheado de surpresas. Satiriza a
perversidade inoculada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites
das celebridades de um universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados.
Uma narrativa que flutua da comédia para o drama, passando pelo suspense
psicológico até chegar à tragédia grega no ato final. O espectador acaba embasbacando-se
diante da forma da sutil vingança. Um epílogo com métodos de justiça incomum é
articulado com astúcia maldosa pelos acuados artistas diante da iminente fúria mercenária
dos agressores, como numa grande ficção de intensidade mesclada com uma
abastecida realidade de solidão, angústia, dor e humilhação. Sem chocar, por
afastar-se do uso de artifícios manjados e ineficazes em realizações
inconsistentes que pululam as mediocridades recorrentes cinematográficas,
cria-se com escárnio uma atmosfera propícia para uma metafórica análise que
recai sobre o descaso aos velhos da classe cultural tão esquecida em um país de
perdas sociais inestimáveis. Eis uma reflexão sobre a solidão do presente oriunda
de um passado auspicioso e um futuro nebuloso corroído por um sistema revelador
de suas nuances de falências e da irresignação do depauperado ser humano
abandonado.