quarta-feira, 15 de maio de 2019

Varda por Agnès



Um Grande Legado

A cineasta belga naturalizada francesa, Agnès Varda, prometeu que o magistral As Praias de Agnès (2008) seria seu último filme, após ganhar o prêmio César de melhor documentário, mas felizmente a promessa não se cumpriu. Era uma narrativa autobiográfica sensível e poética que passeava pelas praias que de certa forma marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida. Além de lançar um olhar breve de lembranças do passado, não deixou de mostrar sua alegria ao dizer “estou viva, e eu me lembro” e na mais bela frase que resumiu seu amor imensurável pela sétima arte, asseverou “o cinema é minha casa”. Realizou depois Visages, Villages (2016) em parceria na direção e roteiro com o fotógrafo JR. Ambos tinham em comum a admiração apaixonante por imagens e o interesse pelos outros, além do questionamento sobre os lugares onde são mostradas as fotografias e a maneira como são compartilhadas e expostas, com entrevistas simples de personagens comuns do povo e sem voz, em especial as mulheres pelo perfil feminista da realizadora. Montaram um roteiro com um plano pré-concebido e até certo ponto aleatório para discutir o espaço de fruição da arte. Partiram com pessoas convidadas para segui-los em sua viagem num caminhão para fazer um documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes.

Depois de prestar um belo tributo ao marido Jacques Demy em As Praias de Agnès, seu grande e único amor, que faleceu em outubro de 1990, autor de obras como Lola, A Flor Proibida (1961), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Duas Garotas Românticas (1967), a legendária autora faz um inventário de sua vida em Varda por Agnès. Despede-se da telona em grande estilo e uma superação invejável. Considerada uma das maiores cineastas do cinema de todos os tempos, morta em 29 de março deste ano, aos 90 anos, um mês após a justa homenagem da Câmara de Ouro no Festival de Berlim. Teve uma carreira de mais de 60 anos, na qual recebeu um Oscar Honorário em 2017 e uma Palma de Ouro Honorária no Festival de Cannes de 2015. Deixou um legado histórico e significativo, com realizações abrangentes e muitas reflexões com críticas pontuais à sociedade e seus preconceitos tolos, mesquinhos e hipócritas. Engendra uma narrativa leve e ao mesmo tempo profunda sobre a morte que se aproxima, como uma premonição do fim que a aguardava pela doença terminal, como no poético desfecho de uma cena não editada do longa anterior e agora aproveitado, em que apenas sorri graciosamente junto à brisa do mar que tanto adorou, deixando a tela iluminada por uma mancha branca e serena diante do sopro do vento que a levará.

Varda foi uma diretora extraordinária e sua participação junto ao marido no antológico Nouvelle Vague, onde é considerada a mãe do movimento, deu uma contribuição valiosa para o cinema, sendo a única voz feminina entre aqueles monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. Disseca um precioso inventário de sua vasta filmografia marcante e recheada de grandes obras numa palestra no palco de um majestoso teatro, fio condutor da narrativa. Conta histórias alegres, ri de seus fracassos comerciais, faz boas tiradas com piadas sutis, através das experiências marcantes que repassa aos neófitos e interessados futuros realizadores. Inicia com imagens passadas num grande telão e relembra seu primeiro filme La Pointe-Courte (1955), montado por Alain Resnais. Explica com riqueza de detalhes as filmagens e edição do inesquecível Cleo das 5 às 7 (1962), sobre uma mulher que aguarda o resultado do exame médico de uma doença fatídica e os personagens folclóricos das ruas que por acaso surgiram durante as gravações. Outro grande achado é o retorno ao cenário rural com a atriz Sandrine Bonnaire, onde filmou Sem Teto Nem Lei (1985), um drama pungente sobre uma moça andarilha rebelde para os costumes da época. Tece comentários e revela aos espectadores- uma espécie de making of- tudo sobre o magnífico Os Catadores e Eu (2000), uma abordagem ácida em uma contundente crítica social sobre os alimentos jogados fora e bens descartados que são recolhidos por pessoas com fome e sem um lugar para morar. Filosofa sobre o desapego e a comida desperdiçada, quando há famintos catando para a sobrevivência do dia a dia.

Varda por Agnès não é somente um documentário autobiográfico testamentário, mas também um mosaico do passado, presente e do futuro, onde aparecem intercalados personagens sofridos por uma sociedade cruel com a humanidade. A diretora enfatiza os três pontos básicos que guiaram sua trajetória artística: criação, inspiração e compartilhamento. Além do retrato fiel de sua vida ao cinema, demonstra todo seu amor à fotografia e à pintura, na qual revela seu apreço pelas artes visuais estampadas nas exposições em galerias e museus. Não foi à toa que dedicou uma bela reverência aos pintores Picasso e Magritte. No filme Jane B, por Agnès V (1988) traça a biografia num autorretrato da atriz Jane Birkin em uma construção de um único momento contemplativo para chegar até um resultado sobre a existência humana. Ou ainda quando encontra uma batata em formato de coração que lhe inspira na instalação da Patatutopia, onde mescla imagens, fotos paradas e movimentos para uma projeção espacial em seu cinema inovador. Menciona a importância da transição para a fase digital, na qual se reinventa e a criação flui ainda melhor. Também faz alusão ao grupo Panteras Negras de 1968, quando residia nos EUA, em que teve um olhar com acuidade reflexiva sobre este movimento tachado de radical.

Uma trajetória dedicada ao cinema, fotografia, artes visuais e o companheiro de todas as horas Jacques Demy como elementos de amor e paixão. Um admirável documentário memorialista dos resultados de trabalhos elaborados em torno de uma temática eclética, que desfila como a busca pelo novo e o interesse genuíno pelo ser humano, embora seja uma artista realizada com sua produção, mas que se despede, embora nunca quisesse parar, pois tinha muito ainda para dar com seus fundamentos relevantes e imensuráveis. Um filme delicioso e leve sobre o sentido existencialista, seus ensinamentos reflexivos e emoções com fino humor decorrente de uma qualidade de vida invejável desta icônica “baixinha fofinha”, mas uma apaixonada colossal por pessoas. Eis uma significativa obra que contribui neste registro importante sobre a arte da criação cinematográfica com simplicidade, amor, dedicação e dignidade. Agnès Varda contou suas histórias e situações típicas, apontando tudo aquilo que achou interessante, onde ela é a personagem autobiografada, que gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares das idiossincrasias da vida. Deixa em seu legado a prova nesta realização derradeira de uma carreira dedicada ao cinema de essência truncada pela insustentável leveza da morte.

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