Conturbadas Transformações
Vem da França um filme com temas aparentemente simples, mas
até certo ponto enganosos, diante da reflexão da privacidade e as relações em
sociedade pelas suas mudanças comportamentais de leitura sobre os novos lançamentos
dos livros, o que faz desta obra instigante aos cinéfilos atentos. Embora deixe
o enredo correr para um desfecho com um viés de ranço moral machista, o que poderia sucumbir
à boa proposta do cultuado diretor Olivier Assayas, tendo em vista a
complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os
valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e às amizades. Mas
estamos diante do genuíno cinema francês na sua forma cômica e elegante em abordar
situações diversas, com muitos diálogos sociológicos e filosóficos entre
algumas confusões e dissabores dos casais personagens envolvidos. Vidas Duplas é uma mescla de comédia de
costumes, dramática e romântica, ao melhor estilo do mestre Woody Allen, com
alguma conotação da dupla argentina Mariano Cohn e Gastón Duprat, em O Cidadão Ilustre (2016), no que se refere à autoficção literária como inspiração.
O cineasta francês tem uma filmografia digna de um grande
realizador no marcante Horas de Verão
(2008), ao retratar magnificamente as relações familiares e as transformações
no século 20, com o início da globalização, abordou profundamente o fim de uma
era de ouro, onde a cultura e a economia eram fatores sólidos e essenciais da
velha Europa e a França fazendo parte como um sustentáculo consolidado. É
responsável pelo épico Carlos (2010),
enfocando a história da vida de Ilich Ramirez Sanchez, de codinome
"Carlos" o Chacal, tendo por ídolo "Che" Guevara, com
formação marxista, mostra-se um revolucionário que defende a causa da
Palestina. Depois, debruça-se sobre os reflexos e as consequências danosas e
utópicas da juventude sonhadora do pós-maio de 1968 em Depois de Maio (2012), nos anseios pela manutenção da integridade e
do núcleo derrotados por uma expressa vontade dos anos que sucederam aquela
efervescência e os desfazimentos dos sonhos por bens materiais que ainda
afloram, visando um futuro longe da cultura revolucionária almejada e dos
valores plantados num país em derrocada. É dele também o notável drama Acima das Nuvens (2014), ao abordar o
passado num presente atual, com deformações do tempo que passou. Lança um olhar
repleto de inovações para uma candente crítica ao mundo da indústria
cinematográfica mais poderosa do mundo: Hollywood e seus intrincados
acontecimentos sui generis, voltado para
o momento atual e reflexões sobre uma esfera bem próxima das imperfeições do
ser humano e o envelhecimento que não perdoa as grandes divas que perderam o
glamour pelos anos que ficaram para trás definitivamente.
Assayas constrói com bom vigor uma comédia ácida para
dissecar algumas transformações iminentes no mundo literário, tendo como pano
de fundo as relações amorosas com traições, amores e ciúmes em um complexo
painel de jogo de palavras e algumas situações do cotidiano. O famoso editor
Alain (Guillaume Canet) é casado com a popular atriz Selena (Juliette Binoche),
mas tem um caso com uma jovem assistente de marketing, a bela Laure (Christa
Théret), porém sua mulher o trai com um escritor de autoficções, o tenso Léonard
(Vincet Macaigne), que por sua vez namora Valérie (Nora Hamzawi). Vidas Duplas é uma espécie de retorno
para uma nova fase de abordagens, desta vez sobre o futuro do livro. O editor e
o escritor são amigos de longa data, mas a amizade estremece diante da recusa
do primeiro em publicar o novo romance por ser repetitivo (sequer desconfia do affair contado na obra) e pelas
circunstâncias de aceitação do mercado diante da crise na indústria literária. Eles
estão passando por problemas de relacionamentos pessoais com suas respectivas
parceiras e os inerentes entrelaçamentos. Selena é uma atriz que quer se livrar
do papel de investigadora de crimes em um seriado de televisão, mas teme
enfrentar novos desafios por perder a juventude, tópico este abordado em Acima das Nuvens com um bom repertório
de diálogos, cenários deslumbrantes e uma crítica corrosiva ao descarte pela
idade avançada. Ela demonstra uma admiração surpreendente pelo novo livro de
Leonard, o que causa desconfiança no marido, diante da temática bem conhecida e
pessoal do amigo, que também sofre pressão sobre fidelidade de sua atual
companheira.
Vidas Duplas é uma
comédia de afiados diálogos sustentados por com um elenco coeso de atores na
melhor forma de interpretar. Não falta humor para expor as hipocrisias humanas
decorrentes dos casais e as suas ideias sobre as questões presentes. Sem
apresentar soluções definitivas, deixa para o espectador tirar suas conclusões
sobre a revolução tecnológica envolvendo os novos hábitos de leitura da
transformação dos livros físicos de papel vegetal para a digitalização em
e-book com um custo bem menor. Há acaloradas teses para refletir sobre a
diminuição da leitura de jornais e o acesso cada vez maior aos blogs como fontes
de informação, além da facilidade pelo Facebook, Twitter e Instagram entre
outros. É inegável a crítica feita com mordacidade aos costumes no eclético
roteiro, ao fazer analogias entre as verdades do cotidiano com a mera ficção e
o direito à liberdade de livre expressão para relatar histórias de pessoas
próximas, temática esta bem dissecada em O Cidadão Ilustre.
O realizador encontra um espaço fértil para os debates
intelectuais sem que haja uma posição definida, passando por alusões a Star Wars: O Despertar da Força (2015), A Fita Branca (2009), de Michael
Haneke, e O Leopardo (1963), de Luchino Visconti ("mudar tudo para continuar tudo
como está"). Mas ainda há as fantasias e os sonhos contrapondo-se em um contexto
amargo, mas com uma brecha para se buscar a dignidade no conflito de fatores
como ironias finas sem rancores, e no embate do efêmero tempo marcado pelas
mudanças urgentes que afloram com velocidade intensa de um novo público leitor
oposto ao passado que se esvai de maneira melancólica. A harmonia é apenas
paradoxal na essência do transcorrer da trama sobre os relacionamentos
amorosos, principalmente na felicidade rompida do sonho pela trajetória traiçoeira
do destino. Nesta mescla de ficção e realidade, sem grandes surpresas no
enredo, embora haja muitas discussões, citações em abundância, algumas
traições, as reconquistas e as superações, nas quais irão qualificar esta
admirável realização quase tragicômica de Assayas, em que o público absorve com
ingredientes requintados para uma saudável reflexão filosófica.
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