terça-feira, 30 de abril de 2019

Vidas Duplas













Conturbadas Transformações

Vem da França um filme com temas aparentemente simples, mas até certo ponto enganosos, diante da reflexão da privacidade e as relações em sociedade pelas suas mudanças comportamentais de leitura sobre os novos lançamentos dos livros, o que faz desta obra instigante aos cinéfilos atentos. Embora deixe o enredo correr para um desfecho com um viés de ranço moral machista, o que poderia sucumbir à boa proposta do cultuado diretor Olivier Assayas, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e às amizades. Mas estamos diante do genuíno cinema francês na sua forma cômica e elegante em abordar situações diversas, com muitos diálogos sociológicos e filosóficos entre algumas confusões e dissabores dos casais personagens envolvidos. Vidas Duplas é uma mescla de comédia de costumes, dramática e romântica, ao melhor estilo do mestre Woody Allen, com alguma conotação da dupla argentina Mariano Cohn e Gastón Duprat, em O Cidadão Ilustre (2016), no que se refere à autoficção literária como inspiração.

O cineasta francês tem uma filmografia digna de um grande realizador no marcante Horas de Verão (2008), ao retratar magnificamente as relações familiares e as transformações no século 20, com o início da globalização, abordou profundamente o fim de uma era de ouro, onde a cultura e a economia eram fatores sólidos e essenciais da velha Europa e a França fazendo parte como um sustentáculo consolidado. É responsável pelo épico Carlos (2010), enfocando a história da vida de Ilich Ramirez Sanchez, de codinome "Carlos" o Chacal, tendo por ídolo "Che" Guevara, com formação marxista, mostra-se um revolucionário que defende a causa da Palestina. Depois, debruça-se sobre os reflexos e as consequências danosas e utópicas da juventude sonhadora do pós-maio de 1968 em Depois de Maio (2012), nos anseios pela manutenção da integridade e do núcleo derrotados por uma expressa vontade dos anos que sucederam aquela efervescência e os desfazimentos dos sonhos por bens materiais que ainda afloram, visando um futuro longe da cultura revolucionária almejada e dos valores plantados num país em derrocada. É dele também o notável drama Acima das Nuvens (2014), ao abordar o passado num presente atual, com deformações do tempo que passou. Lança um olhar repleto de inovações para uma candente crítica ao mundo da indústria cinematográfica mais poderosa do mundo: Hollywood e seus intrincados acontecimentos sui generis, voltado para o momento atual e reflexões sobre uma esfera bem próxima das imperfeições do ser humano e o envelhecimento que não perdoa as grandes divas que perderam o glamour pelos anos que ficaram para trás definitivamente.

Assayas constrói com bom vigor uma comédia ácida para dissecar algumas transformações iminentes no mundo literário, tendo como pano de fundo as relações amorosas com traições, amores e ciúmes em um complexo painel de jogo de palavras e algumas situações do cotidiano. O famoso editor Alain (Guillaume Canet) é casado com a popular atriz Selena (Juliette Binoche), mas tem um caso com uma jovem assistente de marketing, a bela Laure (Christa Théret), porém sua mulher o trai com um escritor de autoficções, o tenso Léonard (Vincet Macaigne), que por sua vez namora Valérie (Nora Hamzawi). Vidas Duplas é uma espécie de retorno para uma nova fase de abordagens, desta vez sobre o futuro do livro. O editor e o escritor são amigos de longa data, mas a amizade estremece diante da recusa do primeiro em publicar o novo romance por ser repetitivo (sequer desconfia do affair contado na obra) e pelas circunstâncias de aceitação do mercado diante da crise na indústria literária. Eles estão passando por problemas de relacionamentos pessoais com suas respectivas parceiras e os inerentes entrelaçamentos. Selena é uma atriz que quer se livrar do papel de investigadora de crimes em um seriado de televisão, mas teme enfrentar novos desafios por perder a juventude, tópico este abordado em Acima das Nuvens com um bom repertório de diálogos, cenários deslumbrantes e uma crítica corrosiva ao descarte pela idade avançada. Ela demonstra uma admiração surpreendente pelo novo livro de Leonard, o que causa desconfiança no marido, diante da temática bem conhecida e pessoal do amigo, que também sofre pressão sobre fidelidade de sua atual companheira.

Vidas Duplas é uma comédia de afiados diálogos sustentados por com um elenco coeso de atores na melhor forma de interpretar. Não falta humor para expor as hipocrisias humanas decorrentes dos casais e as suas ideias sobre as questões presentes. Sem apresentar soluções definitivas, deixa para o espectador tirar suas conclusões sobre a revolução tecnológica envolvendo os novos hábitos de leitura da transformação dos livros físicos de papel vegetal para a digitalização em e-book com um custo bem menor. Há acaloradas teses para refletir sobre a diminuição da leitura de jornais e o acesso cada vez maior aos blogs como fontes de informação, além da facilidade pelo Facebook, Twitter e Instagram entre outros. É inegável a crítica feita com mordacidade aos costumes no eclético roteiro, ao fazer analogias entre as verdades do cotidiano com a mera ficção e o direito à liberdade de livre expressão para relatar histórias de pessoas próximas, temática esta bem dissecada em O Cidadão Ilustre.

O realizador encontra um espaço fértil para os debates intelectuais sem que haja uma posição definida, passando por alusões a Star Wars: O Despertar da Força (2015), A Fita Branca (2009), de Michael Haneke, e O Leopardo (1963), de Luchino Visconti ("mudar tudo para continuar tudo como está"). Mas ainda há as fantasias e os sonhos contrapondo-se em um contexto amargo, mas com uma brecha para se buscar a dignidade no conflito de fatores como ironias finas sem rancores, e no embate do efêmero tempo marcado pelas mudanças urgentes que afloram com velocidade intensa de um novo público leitor oposto ao passado que se esvai de maneira melancólica. A harmonia é apenas paradoxal na essência do transcorrer da trama sobre os relacionamentos amorosos, principalmente na felicidade rompida do sonho pela trajetória traiçoeira do destino. Nesta mescla de ficção e realidade, sem grandes surpresas no enredo, embora haja muitas discussões, citações em abundância, algumas traições, as reconquistas e as superações, nas quais irão qualificar esta admirável realização quase tragicômica de Assayas, em que o público absorve com ingredientes requintados para uma saudável reflexão filosófica.

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